Alegria do povo

Há quem diga que o futebol brasileiro anda meio por baixo. No campeonato brasileiro seguem-se empates atrás de empates, nenhum clube empolga e pouca gente parece jogar por prazer. Quando o assunto é o escrete nacional, as decepções são ainda maiores. Meio de campo congestionado e pouca criatividade. É um futebol pesadão, troncudo, que nos faz suspirar: onde foi parar a genuína alegria canarinho? Se ela ainda existe, anda encoberta por muita maquiagem, muito cálculo e exatidão, muita vontade de aparecer, muito glamour e pouca glória. Houve um tempo, no entanto, em que os dribles eram dados de improviso, um tempo em que o objetivo principal do futebol era a diversão e não o espetáculo.

O escritor João Antônio, em carta a Mylton Severiano, mostrava que esse tempo já era razão de melancolia em sua época – tanto a missiva quanto o poema que a segue foram publicados na biografia Paixão de João Antônio, assinada por Severiano.

Quero que v. consiga de Otoniel Santos Pereira autorização para que eu publique o poema dele “Explicação do Inexplicável” sobre o nosso Aleijadinho dos campos de futebol, São Mané Garrincha, o Generoso, a Alegria da Gente, aquele que, passando por débil mental, entendeu, sem retóricas e sem palavras vãs, a nossa carência gigantesca de alegria coletiva. Santo, puro santo: o Brasil em pessoa. Ele se doava todo.

Pelé, a gente admira; Garrincha, a gente ama.

Não é necessário discussão sobre pessoas diferentes. Pelé, um apolíneo; Garrincha, um dionisíaco, um rapaz de Pau Grande, pouco se lhe dava a glória ou o que fosse. Ele queria ver aquele povo desdentado e parecido com ele rir, gozar, explodir com a revolução geométrica que fazia nos campos de futebol. Santo.

O poeta e jornalista Otoniel Santos Pereira, ao ouvir o apelo de João Antônio, não hesitou:

Garrincha, o poema
Garrincha anda em círculos,
a distância mais curta entre duas pontas.
Garrincha escreve, desenha, pinta e borda
com linhas de Picasso, tintas de Miró.
Como se o retângulo de grama fosse tela.
Mesmo num campo minado de adversários, a horda
de cores opostas parece um homem só.
Garrincha
rabisca com os pés frases tortas,
garranchos.
Ninguém entende a letra de criança,
os traços abstratos.
nas chuteiras de Garrincha a bola pasta
enquanto finta a lógica e a geometria.
Cálculos matemáticos não o detêm.
ele descarta Euclides e Descartes
apenas com um lance de poesia.
Calígrafo louco, a escrita é uma loucura.
Garrincha mente à esquerda e à direita.
São ilusões, não jogadas. Nem o acaso
abolirá o azar do jogador
de joelhos diante de Garrincha.
Garrincha passa o tempo.
Ajoelhado,
o condenado ao drible pensa em Deus.
Tarde demais.
Garrincha atira e o gol é uma pintura.
17 jan 94

Eu não vi Garrincha jogar, mas sei, desde pequeno, que sua vida cheia de desventuras teve como único objetivo a alegria do brasileiro. Dizer mais soaria presunção, melhor é se calar diante desta poesia, das palavras de João Antônio e das pernas tortas de Garrincha. Só gostaria de acrescentar mais uma coisa: amistoso ou não, que estes textos sirvam de inspiração para nossa seleção tão desacreditada.


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