Depois de uma longa batalha para captação independente de recursos – iniciada com uma intensa semana de filmagens no Rio de Janeiro, em que nosso repórter Marcelo Pinheiro esteve infiltrado, cobrindo os bastidores (leia aqui) – decola, no próximo fim de semana, nos palcos do Teatro Oficina, em São Paulo, o espetáculo Sinfonia de Jards – meditação pela cosmobaba. Espécie de “cine-show”, como define seus criadores, Gregorio Gananian e Chico França, o projeto multimídia, que teve início em janeiro, entrelaçará música, cinema, teatro e performance. Em uma experiência sensorial, o histórico palco do Oficina ganhará seis projetores audiovisuais que vão interagir com Macalé, as canções interpretadas por ele, seus convidados e o próprio público.
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Leia, a seguir, a entrevista com Gananian e França, concedida na última semana, em São Paulo. As apresentações acontecerão no sábado e no domingo, dias 26 e 27 de novembro, às 19h30, com a participação do guitarrista Lanny Gordin e de Zé Celso Martinez Corrêa, entre outros.
Mais detalhes no site do Teatro Oficina
Brasileiros – Como surgiu o conceito do espetáculo Sinfonia de Jards?
Gregorio Gananian – Montamos uma pequena produtora em 2009, a Caixa de Signo, ao lado de um terceiro amigo, Diego Arvate, que não trabalha mais conosco. Lembro que tudo começou quando, ao sairmos de um show do Macalé, o Diego me falou: “Me senti meio incomodado”. E esse incômodo – ele se referia a uma certa previsibilidade do show – ficou no ar. Pouco depois, conversando via Skype com o Macalé, comentamos que seria legal ele experimentar um outro tipo de show, com mais interatividade, e ele nos intimou: “Ora, então porque vocês não o fazem?!”. Eu já vinha, há algum tempo, pensando nos processos do cinema e em uma coisa que eu chamo de “cinemapa” – uma ideia de cinema caleidoscópico, algo que o Glauber previu em A Idade da Terra: ‘Imagino que o cinema do futuro será um cinema que vai ter lasers, o público vai estar em movimento…’ – conversávamos sobre todas essas coisas, quando surgiu essa provocação do Macalé e propus ao Chico adaptarmos alguns conceitos do cinemapa com um novo projeto de show para ele, um “cineshow”. Imaginamos uma apresentação em que o Macalé estivesse cercado de imagens e sons, cantando diante de várias telas e interagindo com seus múltiplos.
Brasileiros – E como se deu a aproximação com o Macalé?
Chico França – A aproximação veio por conta de um amigo nosso, Ivon Patrocínio, produtor musical, que teve papel fundamental. Tínhamos um projeto anterior de fazer um programa de televisão, inspirado em uma ideia do Torquato Neto, protagonizado por essas figuras da Tropicália – Melodia, Mautner, Macalé. O Ivon achou a ideia incrível, tinha o contato deles e fomos ao Rio ao encontro dos três. Ele foi o pivô disso tudo, não somente no sentido de proporcionar os contatos, mas principalmente, por acreditar muito em nosso projeto e nos motivar.
Brasileiros – E como foi feita a escolha do repertório?
G.G. – Começamos a falar com o Jards e a produtora dele, Maria Braga, nos primeiros dias de janeiro e tudo aconteceu muito rapidamente. Alguns poucos telefonemas se transformaram em um compromisso de uma semana de filmagens no Rio. Mostramos algumas músicas para ele ao telefone e, por fim, acabamos decidindo nós mesmos o repertório do espetáculo. Algumas músicas eram obrigatórias, pedra de toque, como Vapor Barato e Hotel das Estrelas, mas há também canções menos óbvias, como Soluços e Luz, música que não poderíamos deixar de incluir – um poema do Confúcio, traduzido por Ezra Pound de que gostamos muito – e Errare Humanun Est do Jorge Ben Jor.
Brasileiros – E como foi a experiência de codireção?
C.F. – Eu e o Gregorio temos o que eu chamaria de uma “diferença complementar”. Eu, sozinho, nunca teria essa ideia e nunca teria tomado certas atitudes. O Gregorio sempre esteve mais envolvido com o cinema do que eu, que trabalho mais com desenhos e ilustrações. Se você pensar na questão das linguagens, concluirá que elas são completamente diferentes. Desenhar é um processo mais introspectivo e meu envolvimento com esse projeto me exigiu uma outra postura. Tomei decisões que jamais tomaria.
G.G. – O França tem essa coisa mais introspectiva, mas ao mesmo tempo sempre admirei essa questão de ele ser centrado, pé no chão…
C.F. – Mas estou, aos poucos, aprendendo a tirar os pés do chão e acho que o projeto foi determinante para essa transformação, pois ele foi basicamente feito “sem os pés no chão”. Fico feliz em saber que ele aconteceu e vai, enfim, decolar.
Brasileiros – Olhando em retrospectiva, desafios superados, como se sentem…
G.G. – Sempre acreditei que o projeto aconteceria. Na hora em que o Jards tocou Let’s Play That, no primeiro dia de filmagens, confesso que fiquei arrepiado. Foi ali que percebi que a coisa toda aconteceria mesmo e tive a resposta para meu desejo de criar. Hoje em dia, ouço essa música, lembro desse momento e penso que saí daquela interpretação rasa de que “desafinar o coro dos contentes” é provar uma “paudurescência” muito recorrente. “Desafinar o coro dos contentes” é muito mais provar que é possível fazer as coisas acontecerem, torná-las táteis.
C.F. – Criar, inventar, tem de ser uma coisa feliz. Existe o combate, porque existe o reverso, algo necessário, mas que não parte unicamente da recusa, embora eu acredite que existem recusas que são necessárias. Estou lendo um artigo do Paul Valéry, sobre o Mallarmé, onde ele afirma que Mallarmé é um autor estéril, um criador que recusa muito, ao contrário do Victor Hugo, um autor fecundo. Mas, se tudo que veio ao Victor Hugo viesse ao Mallarmé, ele certamente teria recusado uns 85%, o que seria para ele uma recusa necessária. Não seria uma recusa de denúncia, acusatória, seria uma recusa de criação.
Brasileiros – Nos dias em que estivemos juntos, no Rio, testemunhei grande afinidade entre vocês e Macalé…
G.G. – O que me fez admirar ainda mais o Macalé é que, desde o primeiro momento, ele nos tratou de igual para igual, como se percebesse em nós alguma vitalidade necessária a ele. Quando digo vitalidade não digo vida em oposição a morte, pois vejo a vida como amor e morte. Não quero apenas viver o presente, quero mesmo é estar a altura dos acontecimentos. Quero para minha vida a serenidade de perceber uma gota caindo, prestar atenção no outro, sabe…
C.F. – Acho que essa aproximação veio do fato de não termos sido tão reverentes. Se a gente pretende operar uma quebra sintática dentro de um texto, de um show ou de uma música, não podemos reproduzir o contrário disso, que é corroborar com a hierarquização em outros âmbitos. Como é que você vai se comportar de uma forma reverente e reproduzir a hierarquia que teoricamente está combatendo?! Também gosto dessa ideia de “artevida”, de assumir na vida o combate a hierarquia, ao autoritarismo de certas coisas.
Brasileiros – Estruturalmente, esse espetáculo sugere ser sem parâmetros, o que esperar do show?
G.G. – Minha expectativa é de que o show será uma experiência incrível, mas esse processo todo, de janeiro até aqui, já fez valer tudo a pena. O que interessa em um show desses é a vida, a existência e a experiência. Não tivemos a pretensão de criar para “A Revolução de Outubro”, mas para a revolução vital, para a revolução de nossas vidas. Hoje, sou outro cara, que ainda é aquela mesma pessoa de janeiro, mas que foi transformado. Parafraseando o Jards, também “aprendi a nadar”, mas também me pergunto: pra que serve um show?! Ao fim, todos dirão: “Ah, foi maravilhoso, foi incrível!”. Mas para que servirão esses dois dias do show? O que vai mudar no planeta terra o fato de o Macalé vir tocar dois dias no Teatro Oficina em São Paulo? Nada, obviamente, mas é justamente esse o valor da experiência, ela não precisa servir para nada! Para que serve a música, para que serve a poesia se não para a experiência?! É essa magia da troca que queremos e esperamos proporcionar.
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