[94 de 100] A sensibilidade poética da violência, segundo Boris Vian

coluna94Em conversa com o editor francês Jean d’Halluin, o escritor Boris Vian (1920-1959), autor de “A Espuma dos Dias” – considerado “a mais pungente história de amor de nosso tempo”, segundo o crítico Raymond Queneau (1903-1976) –, ouviu um “suspiro” de lamento do amigo. Em dificuldade financeira, ele se queixou: “Ah, se eu pudesse descobrir um best-seller americano!” Vian, que ganhava a vida como engenheiro e adorava romances policiais, sem vacilar, disse que poderia escrever um. A conversa ficou séria e, pouco depois, durante os quinze dias de suas férias, ele escreveu uma história de violência como raramente se viu até então, temperada com erotismo, bebedeiras e sadismo. O local da trama: Estados Unidos. Como pano de fundo, o problema do racismo. “Vou Cuspir no Seu Túmulo” foi o título criado por ele para representar a vingança arquitetada pelo protagonista Lee Anderson. Para assinar a obra, bolou o pseudônimo Vernon Sullivan – o sobrenome em homenagem a Joe Sullivan (1906-1971), considerado um dos melhores pianistas de jazz. O primeiro nome era uma brincadeira com Paul Vernon, amigo de Vian, que estudava para ser dentista.

Em tom farsesco, Boris Vian assinou a tradução do inglês para o francês. Era quase um garoto, de apenas 26 anos, profundamente culto e inteligente, respeitadíssimo no meio intelectual francês, por onde circulava o casal Jean-Paul Sartre (1906-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986), que virou seu amigo. Não fazia ideia do quanto seria explosivo o livro, pela ousadia temática contra a opressão aos negros e a violência exarcebada, que não se via nos livros e filmes noir americanos, devido ao controle feito por uma série de códigos de conduta moral vigentes na indústria do entretenimento. Foi um escândalo sem que descobrissem a verdadeira autoria da obra.

O próprio autor o adaptou para o teatro três anos depois, enquanto o livro era condenado e proibido pela justiça francesa, também pelas sequências de intenso erotismo. Nada impediu, porém, que cópias fossem exaustivamente lidas e repassadas clandestinamente. Em 1959, pouco depois da morte prematura de Vian – aos 39 anos, por causa de uma crise cardíaca, quando assistia a um filme no cinema –, o romance ganhou sua primeira versão para as telas. Nesses 13 anos, Vernon Sullivan assinou quatro outros romances policiais, dentro da tradição americana.

Na apresentação de “Vou Cuspir no Seu Túmulo”, como se não passasse do tradutor, Vian afirma, com certo exagero, que o livro foi escrito em apenas dois dias. E previu que seu conteúdo certamente traria resistência e até mesmo censura dos franceses: “Aqui, nossos bem conhecidos moralistas o reprovarão em certas páginas… o realismo um pouco avançado! Parece-nos interessante sublinhar a diferença fundamental que existe entre estas páginas e as narrativas de (Henry) Miller (1891-1980); este não hesita, em nenhum caso, em recorrer a um vocabulário mais duro; e parece, ao contrário, que Sullivan prefere sugerir, por meio de insinuações e construções estilísticas, a utilizar a palavra crua; sob esse aspecto, ele se aproximaria de uma tradição erótica mais latina”.

Por outro lado, prossegue ele, encontra-se no romance “a influência extremamente nítida de (James M.) Cain (1892-1977) e igualmente dos mais modernos (James) Chase (1906-1985) e outros adeptos do horrível”. Quanto a esse aspecto, em sua opinião, deve-se reconhecer que Sullivan se mostra “realmente mais sádico do que seus ilustres predecessores”. Segundo ele, por pura invencionice sua, “não é de surpreender que sua obra tenha sido recusada na América: apostamos até seria proibida no dia seguinte ao de sua publicação”.

O que tinha de tão impactante no primeiro livro da série de Vernon Sullivan? A história começa nos Estados Unidos, na década de 1940. Lee Anderson é um homem negro de pele clara e cabelo louro, com pouco mais de 20 anos de idade, que se muda para uma pequena cidade chamada Buckton. Graças a um amigo de seu irmão, ele consegue um emprego como gerente em uma livraria, com salário de alguns poucos dólares por semana. Ele gosta do trabalho que faz, adora ler e se relacionar com os clientes. Parece um bon vivant. De aparência atlética, toca violão e não demora a despertar a atenção dos adolescentes da cidade. Em troca de sexo e diversão, Lee se torna fornecedor de álcool desses garotos que querem curtir a vida adoidado. Até conhecer uma garota que desperta seu interesse de modo intenso. “Ela se colou ao meu corpo deixando-me quase sem ar. Seu cheiro era o de um bebê depois do banho. Ela era magra e pude alcançar seu ombro direito com minha mão direita. Levantei meu braço e deslizei meus dedos sob seu seio. Os outros dois jovens nos olharam e começaram a dançar também”.

O que ninguém sabe ali, porém, é que Lee esconde um segredo que é o real motivo por ter se mudado para Buckton. Vian cria uma atmosfera inebriante, envolvente, em que dá a impressão de que o livro seguirá mostrando uma vida de curtição baseada no sexo e no álcool entre os jovens. Até chegar aos capítulos finais, quando se revela o que Lee pretende de fato: vingança. Sua vida havia mudado drasticamente quando decidiu cobrar a morte do irmão mais novo, assassinado por ter feito sexo com uma mulher branca. “Só há uma coisa que conta, se vingar, e se vingar da maneira mais completa possível”. 

E então a história toma outro rumo em que “as páginas ganham tons de vermelho com um nível de brutalidade que chega a nos repulsar”, segundo descrição de seu editor. “Quando voltei, andava com dificuldade e comecei a me desabotoar antes de alcançá-la. Naquele momento, vi o clarão do disparo do revólver e, no mesmo instante, tive a impressão de que meu cotovelo esquerdo explodia, meu braço caiu para baixo. Por pouco não me acertara nos pulmões”, diz Lee. “Percebi que estava agora tomada por uma cólera tão grande que poderia tê-la esfolado. Então me ergui e passei a chutá-la e coloquei todo o meu peso sobre o pé que lhe esmagava o pescoço”. 

Ainda um romance vigoroso quase 70 anos depois de seu lançamento, o livro mostra Lee como um sujeito amoral, sedutor e que se vê em paraíso, com muito blues, emprego e adolescentes de seios pontudos que transam para matar o tédio. A imagem de um negro besuntado de alcatrão, enforcado e depois incendiado é o eixo central dessa trama impressionante. Outro aspecto destacado que impulsiona a história é a atração que o protagonista tem por elementos da cultura americana, como a música de Duke Ellington, Miles Davis e Charlie Parker e a técnica literária de Dashiell Hammett (1895-1961) e Raymond Chandler (1888-1959). 

Para a crítica, que celebra a obra a cada geração nova de leitores, por trás da violência e do cinismo do livro está presente toda a sensibilidade poética do artista múltiplo que foi Boris Vian, visto hoje como mito do existencialismo francês – além de romancista, ele foi poeta, músico, compositor, cantor, dramaturgo e ator, sempre de vanguarda. Em uma época em que o linchamento de negros nos Estados unidos ainda era uma prática constante, escrever um livro que retrata o racismo e o preconceito na sociedade, não deixa de ser curioso que quem o escreveu não foi um escritor nascido naquele país, mas um francês. Só que apaixonado por literatura policial americana.

Não foi somente o cinema policial e de suspense americano, das décadas de 1940 e 1950, que encantou os intelectuais e cineastas franceses – Louis Malle (1932-1995) e François Truffaut (1932-1984) foram além e o celebraram com filmes hoje clássicos como “Ascensor para um Cadafalso” (1958) e “Atirem no Pianista” (1960). O mesmo aconteceu com a ficção escrita. Enquanto escritores do gênero eram ignorados em casa, os franceses lhes rendiam generosos artigos e ensaios para ressaltar seu valor artístico. Boris Vian foi além.


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