“Sempre tive grande respeito pelos leitores que procuram a realidade escondida por trás de meus livros. Em Aracataca, onde eu nasci, isso parece ser um ofício diário”, escreveu Gabriel García Márquez em Uma Jornada em Macondo. De fato, a cidade colombiana, que serviu de inspiração para Macondo, se alimenta da ficção de seu filho pródigo para atualizar sua história. Lá é possível encontrar não só o Gabito que desenhava nas paredes e roubava a bola das outras crianças, como diversos personagens eternizados nas páginas de Cem Anos de Solidão. Na cidade, todos sabem quem é o senhor que inspirou Pietro Crespi que afinava pianos, a senhora na qual foi baseada a concubina Petra Cotes, o eletricista imortalizado como o Mauricio Babilonia das borboletas amarelas e o verdadeiro Aureliano Buendía, que fabricava peixinhos de ouro…
Durante muito tempo, em algum ponto da estrada que leva a Aracataca, lia-se na placa do portão de uma fazenda qualquer o nome Macondo. Foi em uma viagem de trem que Gabo se encantou pelo nome com que mais tarde batizaria a aldeia construída “à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”. A semelhança natural entre o povoado de Cem Anos de Solidão e sua cidade natal, situada à margem do Rio Aracataca, onde ainda se pode contemplar as inconfundíveis pedras enormes, não é a única referência biográfica na obra do Nobel de Literatura.
Tantas vezes citadas em sua obra-prima, as amendoeiras empoeiradas à frente da casa onde nasceu, em 1927, são um dos muitos indícios dessa mistura entre realidade e ficção. A casa é a mesma de madeira com teto de zinco descrita no romance e, entre os cômodos, está a oficina de prataria onde o avô fabricava peixinhos de prata, assim como os de ouro de Aureliano Buendía, personagem que inspirou, além da famosa varanda das begônias. “Nas tardes de chuva, bordando com um grupo de amigas na varanda das begônias, perdia o fio da conversa e uma lágrima de saudade lhe salgava o céu da boca”, escreveu Gabriel García Marquéz sobre a macondiana Amaranta.
No plano real, diz Jaime García Márquez, o mais novo de seus dez irmãos, aquele era o lugar onde a mãe Luisa Santiaga, a avó Tranquilina – a quem chamavam carinhosamente de Mina e claro arquétipo da personagem Úrsula, de Cem Anos de Solidão – e as outras mulheres da família se reuniam após o relâmpago das três da tarde, para beber café, costurar e ouvir histórias. “Ele não tinha permissão para participar, mas ficava escondido, estirado no chão ouvindo as histórias, geralmente sobre nosso tataravô, a guerra, fofocas da cidade e mitos”, conta Jaime sobre o que possivelmente foi um dos primeiros elementos de realismo mágico na vida do autor, que mais tarde escreveria sobre crianças nascidas com rabo de porco.
Jaime também conta que Gabo lia, no mesmo chão, As Mil e uma Noites, livro que encontrou sem a capa em um velho baú da casa e cujo título foi descobrir muito tempo depois, quando confessou ao avô tê-lo pegado. Este, contudo, dificilmente o teria reprimido. “Papalelo, como o chamávamos, deixava que Gabo desenhasse nas paredes. Depois as pintava de branco para que nossa avó não descobrisse”, conta Jaime. Mais tarde, segundo ele, o avô se cansou e deu papel ao menino, fazendo surgir a primeira história que Gabriel García Márquez escreveu na vida, “sobre um cowboy”.
Transformada em Casa-Museu, a construção comprada pelo avô Nicolás Márquez, em 1912, passou por uma renovação, entre 2006 e 2010, por correr perigo de desabamento. A única parte original restante é o quarto localizado no fundo do quintal, onde viviam os três índios uaiús comprados por Nicolás, tratados como parte da família. Seus nomes eram Apolinar, Alírio e Remedios. No romance, Apolinar Moscote é o delegado da cidade, Alírio Noguera é o médico e Remedios, a Bela, é a inocente menina que sobe aos céus.
Personagens reais
“Para mim, é certo que as pessoas daqui inspiraram os personagens de Cem Anos de Solidão. Ler o livro é recordar minha infância – as pessoas,
o modo de falar, as casas, a rua dos turcos, as rifeiras, o italiano que tocava piano, que é como Antonio Daconte… Tudo é escrito à perfeição. É de admirar que uma criança tenha guardado tanta coisa”, diz Yolanda Marcos, 73, dona da lanchonete La Hojarasca, nomeada em homenagem ao livro homônimo de Gabo (A Revoada). Antonio Daconte, a quem se refere, foi um velho italiano que tocava piano, tal qual o personagem Pietro Crespi de Cem Anos de Solidão. “Meu pai morreu com 105 anos, ele era amigo do avô de Gabo”, diz a filha do pianista, Maria Gracia Daconte, 94. “Conheci Gabito pelado. Ele vinha se banhar aqui com sua tia Wenefrida, que era minha madrinha.”
Outra personagem do livro que, diz a lenda, foi inspirada em um morador de Aracataca, é a amante de Aureliano Segundo, Petra Cotes. Trata-se de Juana Bolívar, que recebia Gabo em sua casa, segundo ela, “a antiga casa da sociedade nos anos 1970 e 80”, quando o escritor trabalhava com seu marido em Bogotá. Contudo, descarta a ideia de que tenha sido fonte de inspiração. “A minha casa era de todos, para tomar cerveja e comer sancocho. Quando Gabo vinha, falava sobre as pessoas da cidade e quase todas sabem que ele as pegou para colocar no livro. Mas não sei, eu só fazia o sancocho”, diz, referindo-se à tradicional sopa colombiana.
Andando o suficiente pela cidade de 40 mil habitantes, é possível achar um morador de Aracataca análogo a cada personagem de Macondo. “A professora Aura Ballesteros é a Fernanda del Carpio do livro porque é a ‘cachaca’ da história”, dirá um, empregando a gíria usada para denominar pessoas do interior do país. “Quer saber quem é a Rebeca, que comia terra? É uma senhora chamada Francisca, que vivia na rua de baixo”, dirá outro. “A mulher de Gabo, Mercedes, é a farmacêutica Mercedes da história. Ela namora um Gabriel, vê?”, dirá um terceiro. Mas, apesar de saberem de cor as histórias de Cem Anos de Solidão, que tratam não como uma transposição poética da realidade, mas sim sua própria história, muitos nunca leram um livro de Gabriel García Márquez.
É o caso de Maria Magdalena Bolaños, 97, babá de Gabito até os 8 anos. “Essa bola é minha! Esse guarda-chuva é meu!”, imita ela, sorrindo. “Ele queria todas as coisas dos outros. Eu dizia: ‘Não é seu!’. E ele: ‘É meu!’. Quando veio para Aracataca nos anos 1980, depois de ganhar o Nobel, ele não me reconheceu. Alguém falou pra ele: ‘Essa era a sua babá quando você era pequeno’. Então, ele me deu um abraço. Falei que era encrenqueiro, e ele: ‘Eu?’. Respondi: ‘Sim, você’. Mas ele era muito amável e dócil, me chamava de Nana. Todo mundo gostava dele. Para toda a família, ele era especial.”
Herança
Para Gabo, havia um membro da família que era um tanto mais especial. “Em meio àquela tropa de mulheres, o avô era para mim a segurança completa. Somente com ele desaparecia a confusão e eu me sentia com os pés sobre a terra e bem estabelecido na vida real”, recorda na autobiografia Viver para Contar. Nicolás Márquez, coronel na Guerra dos Mil Dias (1899-1902), serviu de inspiração para ao menos dois personagens do livro: o também coronel Aureliano Buendía, dos peixinhos de ouro, que lutou em 32 rebeliões armadas, e José Arcadio, patriarca da linhagem e fundador de Macondo, onde chegou depois de matar Prudencio Aguilar em Riochacha – Nicolás chegou a Aracataca depois de matar um homem em La Guajira.
Nicolás foi responsável pela experiência que viria a se transformar na célebre abertura do romance: a sita à casa de gelo, grande barracão construído em 1923 onde eram levados 200 blocos semanais trazidos pelo comprido trem amarelo que ainda passa diversas vezes ao dia por Aracataca. Hoje, o local sedia uma empresa eletrificadora, mas não é difícil encontrar alguém que conte que foi ali o primeiro contato de Gabo com o gelo, replicado nas primeiras linhas do livro: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Na trama, José Arcadio diz que aquilo é “o maior diamante do mundo”, mas, para a sabedoria popular de Aracataca, quem fez a confusão foi o menino Gabito.
O avô foi também fonte de uma informação que mudaria livros de história depois de ganhar as páginas de Cem Anos de Solidão: o número de mortos no famoso episódio, conhecido como Massacre da Banana, ocorrido nas fazendas da estrada que leva a Aracataca. No incidente, os funcionários da americana United Fruit Company, que usava as terras para a plantação de banana, foram assassinados pelas forças armadas de seu próprio país após entrarem em greve. Mesmo tendo acontecido em dezembro de 1928, quando Gabo tinha apenas 1 ano e 9 meses, virou incidente crucial do romance. Embora não haja um número comprovado de mortos, na época um comunicado oficial citou nove, a imprensa falou em cem e o cônsul dos EUA em Bogotá teve “a honra de informar” mais de mil. Em Cem Anos de Solidão, porém, vale a versão de Nicolás: três mil mortos ordenados num trem amarelo – o mesmo que levava gelo a Aracataca.
Reminiscências
Não é só nos personagens macondianos que os eventuais turistas que pela cidade se aventuram encontram resquícios da vida do escritor. Há a Casa do Telégrafo, onde seu pai trabalhou por muitos anos, a Escuela Montessori, onde estudou, a Paróquia San José de Aracataca, onde foi batizado, a biblioteca nomeada Remedios, La Bella, em alusão à personagem que sobe aos céus, e o cemitério, onde estão enterrados seus familiares e no qual em uma das primeiras tumbas lê-se o sobrenome Ternera, como na personagem Pilar, dona do prostíbulo de Macondo. Há também uma tumba simbólica para o personagem do cigano Melquíades. “Sepultaram-no numa tumba erigida no centro do terreno que destinaram ao cemitério, com uma lápide onde ficou escrita a única coisa que se soube dele: MELQUÍADES”, lê-se em Cem Anos de Solidão.
Quem a construiu foi Tim Aan’t Goor, holandês que foi procurar em Aracataca o realismo mágico do livro em uma viagem de alguns dias que se estendeu por cinco anos, tempo durante o qual manteve o único local da cidade que hospedava turistas, fechado em fevereiro passado, devido à baixa procura e uma dívida de 40 milhões de pesos colombianos (cerca de R$ 48 mil). “Uma cidade como essa precisa que as pessoas percebam o valor de sua história e cultura”, protesta o europeu que havia pintado no chão das ruas pequenas borboletas amarelas que levavam ao seu hostel, evocando as do romance. “Não permitiu nem sequer que ele passasse da porta, que um momento depois teve de fechar, porque a casa estava cheia de borboletas amarelas”, escreve Gabo sobre o personagem Mauricio Babilonia, aprendiz de mecânico – supostamente, o que já não é surpresa, inspirado num eletricista que ia à sua casa em Aracataca e que, como lhe dizia a avó, sempre trazia para dentro uma borboleta amarela.
“Gabo era um tipo aberto, uma pessoa simples e gentil. Ele se interessava pelas pessoas”, diz Nicolas Ricardo Arias, 75, primo de Gabo e morador da cidade, mostrando com orgulho um livro autografado pelo primo e algumas fotografias tiradas em reuniões familiares. Na última ida a Aracataca, em 2007, conta que o escritor foi recebido por um mar de gente. “Tive de me esforçar para vê-lo de longe”, conta Anibal Fidel Calle, 94, vizinho de frente da casa em que Gabo nasceu. “Seu avô me chamava para dentro da casa para brincar, colher cigarras do chão e comer goiabas e mangas. Também faziam doce com leite e coco e davam a panela pra gente raspar. A tia dele, Francisca, fazia hóstias para a igreja, que ela cortava e dava pra gente comer – nem sabíamos o que era!”, diz, sorridente e cheio de lembranças. “Mas eu era oito anos mais velho que ele, um bebê. Não dava para a gente conversar. Com o tempo, ele desapareceu daqui. Se foi”, diz.
Em resumo, para conhecer a essência do realismo mágico e de Aracataca há de se desprender da afeição à lógica. Ali não interessa o que é verdadeiro ou falso, mas o que faz sentido. “Felizmente, Macondo não é um lugar, mas um estado de espírito que nos permite ver o que queremos, do modo como queremos”, escreveu Gabo em Uma Jornada em Macondo. Gabriel García Márquez se foi, é verdade. Mas fica imortal nas milhares de páginas que deixou. Fica também nas borboletas amarelas que esvoaçam sob as amendoeiras empoeiradas de Aracataca, prenunciando a chuva das três da tarde.
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