Indigestão social

Ana Maria Maiolino em seu estúdio, São Paulo
Ana Maria Maiolino em seu estúdio, São Paulo. Foto: Silvia Zamboni

Grande parte da produção da artista Anna Maria Maiolino, dos anos 1960 e 1970, foram feitos em um fundo de quintal, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Esse também é o caso da xilogravura Glu… Glu… Glu, realizada em 1967, com uma versão em cartaz na mostra Por um Museu Público – Tributo a Walter Zanini, no Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC), com curadoria de Cristina Freire, até dezembro deste ano.

“Eu cheguei ao Brasil em 1960, vinda da Venezuela, e me deparei com movimentos importantes, como a Nova Objetividade, a mostra Opinião 1965, o manifesto neoconcreto, e percebi que a Literatura de Cordel poderia me ajudar a buscar uma identidade que eu não tinha”, conta Maiolino, 72, revelando a influência por trás de Glu… Glu… Glu.

A xilogravura, além de ser uma prática simples e comum, especialmente no Nordeste, era de execução doméstica: “Eu usava uma colher para espalhar a tinta e entalhar a madeira,nãotinha grandes custos, conta a artista, hoje instalada em uma ampla e recém-construída casa próxima à Universidade de São Paulo, no Butantã.

Nascida em Scalea, uma pequena cidade da Calábria, no sul da Itália, Maiolino emigrou, aos 12 anos, com parte da família para a Venezuela, em 1958, saindo de um país em dificuldades de reconstrução após a guerra. Antes, já tinham se fixado em Bari, mas não foi um período agradável. “Passamos muita fome lá”, recorda-se.

Foi em Caracas que Maiolino começou a estudar arte, em um período de grande efervescência cultural no país, liderada por artistas como Jesús Rafael Soto (1923-2005), Alejandro Otero (1921-1990) e Carlos Cruz-Diez, com quem estudou durante um breve período. “Foi lá que percebi que a arte poderia me dar um território que até então eu não tinha”, afirma.

Em 1960, com um dos irmãos tendo alcançado estabilidade econômica no Rio, seus pais decidem se mudar novamente, e Maiolino acaba no país que vai se tornar seu território definitivo. Na então capital nacional, ela vai estudar na Escola de Belas Artes e encontra também no ambiente carioca um momento de grande experimentação, tendo como professores, entre outros, Ivan Serpa e Adir Botelho. “Eu comi em vários peitos”, brinca referindo-se às muitas influências que teve.

O uso da boca para a representação do ato de comer, uma ação que também une as pessoas – especialmente as famílias italianas –, éalgo muito presente em suas obras. Éassimna icônica Por um Fio (1976), uma foto onde ela, sua mãe e sua filha são unidas por uma corda que sai da boca de cada uma delas, e é assim também em Glu… Glu… Glu. “Por minha própria experiência, percebi como o alimento é mal distribuído. Muitos comem demais e cagam demais, essa obra também trata disso”, conta Maiolino, para quem “as questões sociais que atravessavam o País”, naquele período, foram ainda um impulso a mais para a realização desse trabalho. 

Glu Glu Glu, 1967_Artista Ana Maria Maiolino
Glu… Glu… Glu, Anna Maria Maiolino, 1967, Xilogravura, 66 X 48 cm

Ao mesmo tempo, Glu… Glu… Glu, já no título, indica outro aspecto da obra da artista, que ela considera como “o resgate do ancestral, quando o homem ainda não usava a linguagem falada, mas as mãos para se comunicar e sobreviver”.

Dessa forma, é como se Maiolino procurasse uma forma de comunicação mais direta, anterior à fala, que torna suas obras aparentemente ingênuas, mas estão repletas de uma pulsão vital, também caso de Glu… Glu… Glu, que se utiliza da onomatopeia como recurso pré-linguagem oral.

Dessa forma, a artista trabalha com certos aspectos arquétipos da cultura e, entre eles, a boca, de fato, ganha destaque. “Gosto de lembrar que a gente foi criado por um sopro divino e, por outro lado, venho de uma família na qual era na mesa que se bebia conhecimento”, diz Maiolino.

Toda essa poética, sintetizada na xilogravura de 1967, e que agora faz parte da mostra dedicada a Walter Zanini, porque foi Prêmio de Aquisição da 2a Jovem Arte Contemporânea (JAC), uma das grandes ações do curador, consagrou Maiolino como uma das grandes artistas do País nos últimos anos.

5-Ana Maria Maiolino_Galeria Hauser & Wirth©Genevieve Hanson
Instalação de Anna Maria Maiolino, na Galeria Hauser & Wirth. Foto: Silvia Zamboni

Ela fez parte da dOCUMENTA de Kassel, há dois anos, com a instalação Aqui e Lá, ocupando a antiga casa do jardineiro do Parque Karlsaue com uma série de intervenções em barro, reiterando esse caráter artesanal de construir narrativas. Com repercussão altamente positiva, Maiolino foi chamada para expor na filial de Nova York da galeria suíça Hauser & Wirth, o que fez agora entre maio e junho, conquistando assim uma das mais importantes e influentes vitrines no mundo das artes, figurando junto a nomes como Louise Bourgeois, Dan Graham e Mira Schendel.

Maiolino, contudo, não se deslumbrou com sua participação em Kassel: “Eu sempre digo que bienais e a dOCUMENTAsãocomo caramelos, e como dadOCUMENTA eu nunca tinha participado, esse era um caramelo que eu queria provar”. Ironias à parte, mesmo tendo conquistado tamanha repercussão, ela se mantém fiel a procedimentos utilizados em períodos de orçamento menos generoso. “Eu comecei a trabalhar com cimento porque era barato e aprendi com o Sérgio Camargo, que devia produzir obras que eu mesmo possa levantar”, conta sobre seu método.

Outra estratégia mantida é fazer projetos em pequenos cadernos. “Isso foi uma dica do Hélio Oiticica, quando nós vivíamos em Nova York, nos anos 1970, e ele testemunhou como era difícil para mim, com duas crianças, ter tempo para me dedicar à arte”, lembra-se.

Apesar de sua obra circular internacionalmente, de estar representada em galerias importantes – no Brasil, acaba de aderir à Luisa Strina, onde expõe em outubro –, Maiolino continua reclusa em sua casa. “O meu equilíbrio é fazer arte”, sintetiza sua maior motivação.

Serviço – Por um Museu Público, Tributo a Walter Zanini
MAC Usp Ibirapuera (Avenida Pedro Álvares Cabral, 1301)
Entrada gratuita
Até 30 de dezembro
 


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