Está escrito na história que o surgimento da videoarte se deu em 1965, quando o coreano Nam June Paik usou uma Sony Portapak – a primeira câmera de videotape portátil – para registrar a visita do papa Paulo VI à cidade de Nova York. Alguns críticos afirmam que esse relato seria apenas a vontade de se criar uma mitologia fundadora, mas a verdade é que essa história contém um fato sobre a videoarte: a necessidade de documentar. E são exatamente as histórias, do Brasil e do mundo, que a mostra Memórias Inapagáveis – Um Olhar Histórico no Acervo do Videobrasil pretende contar por meio de 18 obras, entre vídeos e videoinstalações, selecionadas pelo curador espanhol Agustín Pérez Rubio.
Em cartaz no SESC Pompeia a partir do dia 31 de agosto, a exposição trará trabalhos que foram pinçados de um arquivo de mais três mil obras – da década de 1980 aos dias atuais – sobre o qual Pérez Rubio, atual curador do Malba, de Buenos Aires, se debruçou praticamente durante todo o ano de 2013. Essa é a primeira exposição realizada pelo Videobrasil a ser comandada por um curador convidado. “Creio que é interessante recuperarmos a ideia de uma história como memória, que muitas vezes não quer ser lembrada pela história oficial”, ressalta Pérez Rubio, em entrevista por telefone à ARTE!Brasileiros.
Essa memória renegada, à qual o curador se refere, trata-se do olhar político proposto conceitualmente por diferentes artistas do Sul geopolítico que passaram pelo Videobrasil nesses últimos 30 anos de Festival. Artistas da África, do Oriente Médio e da América do Sul, zonas de conflito e tensões sociais, retrataram suas experiências desses diferentes contextos de maneira intimista e, por vezes, em tom de denúncia. Esse é o caso, por exemplo, do trabalho Unforgattable Memory (2009), do chinês Liu Wei, que, inclusive, parece inspirar diretamente o nome da mostra. Nos cerca de 9 minutos de vídeo, Liu Wei tenta resgatar a experiência inapreensível – por meio de fotos de participantes e registro em áudio – do fatídico Massacre da Paz Celestial, quando militares abriram fogo contra militantes que protestavam pacificamente contra o governo chinês no ano de 1989.
Outros destaques entre os trabalhos internacionais são Four Selected Videos from The Mapping Journey Project, da marroquina Bouchra Khalili; e The Loudest Muttering is Over: Documents From The Atlas Group Archive, do libanês Walid Raad, que neste ano também participa da 31a Bienal deSão Paulo. Raad é conhecido por usar recursos ficcionais para narrar a crise política de seu país. Em Loudest Muttering is Over, de 2003, o artista reúne os documentos e arquivos relativos ao Grupo Atlas, do qual fez parte, e que por meio da arte realizava pesquisas relativas à história libanesa. Usando mídias mistas, como anotações, slides fotográficos, vídeo, entre outros, Raad revisita a trajetória de personagens envolvidos com a guerrilha e o terrorismo tão presentes naquele país.
Já o trabalho de Bouchra Khalili é focado nas histórias das minorias, em especial a dos imigrantes ilegais. Produzido entre é 2008 e 2011, Four Selected Videos from The Mapping Journey Project, é uma série de quatro vídeos apresentados no formato de videoinstalação, em que, por meio de mapas geopolíticos, imigrantes são convidados a retraçar suas rotas de fuga em diferentes lugares do mundo. “Essas obras são essenciais no contexto da mostra. Elas trazem a história contada pelo acervo do Videobrasil. É preciso recordar que quando o vídeo nasceu, na década de 1960, sua missão era documentar”, afirma Pérez Rubio.
Durante a mostra, o público poderá não apenas se debruçar sobre a história do mundo sob a ótica da poética do vídeo, mas também ter a experiência de imersão na visão de diferentes gerações de artistas sobre a história do Brasil. Um marco curatorial é o trabalho Vera Cruz, da mineira Rosângela Rennó. Realizado em 2000, efeméride na qual o Brasil completou 500 anos de Descobrimento, Rennó propõe um documentário/ficção sobre a chegada dos portugueses em Terra Brasilis. Na tela, um diálogo fictício é sobreposto a imagens em branco, ressaltando a impossibilidade de memória da nossa história.
Na obra, tenta-se simular os dez primeiros dias de chegada dos portugueses, tendo apenas como referência a carta de Pero Vaz de Caminha. “Acho que o vídeo é uma das expressões artísticas mais eficientes para lidar com a memória, e o acervo do Videobrasil é basicamente um acervo político. E, hoje, há um retorno ao documental de maneira mais poética, um tanto diferente de seu sentido clássico. As obras estão mais ligadas aos cotidianos e as vivências do artista”, observa Solange Farkas, diretora da Associação Cultural Videobrasil.
Nesse sentido, o trabalho de Rennó não diz apenas sobre as linhas guias da proposta de curadoria de Pérez Rubio, mas sobre a própria, digamos, história da videoarte brasileira e do próprio Festival Videobrasil. O vídeo O Sangue da Terra, de Aurélio Michiles, apesar de produzido no início da década de 1980, trabalha a questão atual que é a dos conflitos indígenas. A obra, que fez parte do 2o Festival Videobrasil, em 1984, usa a linguagem mais tradicional do documentário para narrar a luta política travada pelos índios Sataré-Mawé contra uma multinacional francesa, que invadiu o território demarcado dos Sataré no ano de 1981.
Nesse recorte pequeno, porém significativo do acervo, é possível perceber incidentalmente as mudanças que o próprio conceito de vídeo sofre por meio da poética política de vários artistas. Em seu surgimento, a videoarte trazia uma vontade de fazer com que seu meio fosse reconhecido como forma legítima para se fazer arte e por isso havia ênfase nas especificidades do meio e linguagens. Com a chegada do digital, isso mudou: fotografia, vídeo, cinema se convergem e a ênfase política tem sua poética cada vez mais fluída e coadunada a essa espécie de poética das memórias políticas presentes nessa mostra.
Serviço – Memórias Inapagáveis – Um Olhar Histórico no Acervo do Videobrasil
De 31 de agosto a 30 de novembro
SESC Pompeia – Rua Clélia 93, São Paulo
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