A cena projetada na parede da sala mostrava a seca nordestina. Era o curta Passadouro, do diretor paraibano Torquato Joel, sendo exibido para uma plateia de 30 jovens que participavam das oficinas do Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa (Cineport). Ao final da sessão – com outros curtas feitos na Paraíba -, o comentário de um dos espectadores: “Eles poderiam ter sido feitos em Cabo Verde”. Tambla Almeida, o jovem cineasta cabo-verdiano, se dizia “impactado”. “A seca traz isolamento. Numa ilha, nós podemos não ter a seca, mas compreendemos bem o que é o isolamento.”
No dia seguinte, na mesma sala, a turma assistiu L.A.P.A., documentário do diretor Cavi Borges, mostrando o hip-hop carioca. A sessão – com o tema “olhar da periferia” – foi seguida por um debate. Descontraído, Cavi comentou como fez o filme – sem planejamento e com muita vontade, gravou mais de 200 horas, gastou mais do que podia e teve trabalho dobrado na edição. A plateia não o poupou de perguntas. “Nós não imaginamos que fosse possível pegar uma câmera qualquer, filmar simplesmente as pessoas, seus depoimentos, e isso virar cinema, como foi nesse filme”, diziam animados Ivan Khan e Natercia Chicane, ambos de Moçambique.
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Esses dois momentos são suficientes para explicar por que o principal resultado do Festival, realizado entre 1o e 10 de maio, em João Pessoa (PB), foi o lançamento da Rede Cineport de Cooperação Audiovisual. “Não se faz nada sem referências. As pessoas precisam conhecer o que é feito nos outros países, o que há de alternativo ao cinema globalizado – esse que restringe a criatividade, a originalidade e que empastela as culturas. Só o nosso convívio aqui já traz conhecimento”, defendeu o diretor brasileiro Neville d’Almeida.
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Nesta quarta edição do Cineport foram exibidos, entre curtas e longas, mais de 160 filmes de ficção ou documentários. O festival teve ainda as oficinas, mesas-redondas e debates, abordando a formação de identidade por meio do audiovisual, das novas mídias eletrônicas e de redes criativas, entre outros temas. “As mídias colaborativas serão cada vez mais essenciais para criação, produção e difusão do audiovisual. E foi muito importante termos ampliado o seu conceito, mostrando iniciativas totalmente incomuns. Nós observamos que há uma visão limitada do audiovisual. Em Portugal, por conta de uma formação muito clássica, e na África, por falta de informação, pelo fato das pessoas acharem que só existe o ‘cinemão’ ou o documentário feito de fora, em que a África entra como um personagem estereotipado”, afirma César Piva, curador do Festival e um dos organizadores da rede. Segundo ele, a Rede Cineport – composta inicialmente por 45 integrantes de diferentes países de língua portuguesa – será uma central de informação e comunicação. “É um espaço de trabalho, onde o grupo estará conectado”, explica. Nela, constarão editais, agendas e um núcleo gestor que irá organizar as atividades e encontros presenciais. “A rede é facilitadora, potencializadora, mas é claro que o contato pessoal também é importante”, disse Piva. Um exemplo dessa relação é a parceria nascida nos intervalos do festival entre o cineasta Geraldo Damasceno, de Fortaleza, e Tambla. “Eles decidiram fazer uma coprodução mostrando as sacoleiras que levam a moda brasileira para a África, voando de Fortaleza a Cabo Verde”, conta.
Ainda que tenha surgido totalmente independente de qualquer apoio governamental, a rede também poderá ter um papel estratégico na articulação e formulação de políticas públicas que viabilizem maior integração dos países de língua portuguesa. “Nós tivemos de fazer adaptações no nosso projeto inicial em função das dificuldades enfrentadas, mas estamos aqui, reafirmando nosso protagonismo”, disse Mônica Botelho, presidente da Fundação Ormeu Junqueira Botelho, que promove o evento. Para ela, o festival é “um momento de provocação intelectual que sempre resulta em práticas muito positivas”. Também presente, o diretor Gabriel Mondlane, da Associação Moçambicana de Cineastas (Amocine), defendeu que a rede deve criar um diálogo com o Estado. “Nós temos de continuar a investir no cinema, a despeito do desprezo dos governos, mas podemos também pressioná-los ou influenciá-los. A Amocine conseguiu isso. Hoje, temos um fundo que permite a produção de seis documentários por ano”, disse. Ele ainda reforçou a importância do Cineport para os jovens. “Eles voltam para os seus países com uma vontade muito grande de fazer, manifestar, produzir, realizar.”
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