Hoje não é véspera de um dia qualquer. É um dia em que perdemos León Ferrari, um dos mais íntegros, criativos e profícuos artistas do nosso tempo. No passaporte está carimbada sua cidadania argentina, mas ele se sentia também brasileiro. Quando nos conhecemos, logo descobri que tínhamos muito em comum. Fomos plantados em solo fertilizado pela sede de justiça social, contra atitudes arbitrárias da igreja e contra as ditaduras militares. Sua poética, carregada de indagações, se sentia livre para errar com algumas verdades provisórias e muitas certezas definitivas. León tinha uma filosofia de vida que refletia em seu trabalho como um ponto de inflexão da insistência sobre a vida terrestre e “divina”, recheados de posições heréticas e agnósticas. Por isso, alguns quiseram silenciar sua arte, mas ela é mais forte e universal, tanto que foi reconhecida mundialmente ao ser premiada com o Leão de Ouro na Bienal de Veneza em 2007.
A história mostra como alguns países foram enriquecidos culturalmente com a imigração de intelectuais e artistas perseguidos politicamente em sua terra natal. O deslocamento reconstrói nosso lugar no mundo, e muitas vezes nos faz crescer e melhorar a sociedade que nos acolheu. A arte brasileira ganhou e muito com a presença de León Ferrari, artista plástico multimídia, poeta e militante político. León chegou a São Paulo fugindo da ditadura militar de seu país. O golpe de 24 de março de 1976, aplicado pela Junta das Forças Armadas Argentinas, tinha vários objetivos em mira, como afastar a presidente Maria Estela, viúva do general Perón, e promover a caça tanto da esquerda marxista como da esquerda peronista.
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León Ferrari transcendeu, em grandeza humana, qualquer uma de suas obras. Parafraseando Hanna Arendt, o que salva os dons realmente grandes é que os que arcam com esse ônus permanecem superiores ao que fizeram, pelo menos enquanto estiver viva a fonte de criatividade. Ferrari trabalhou vertiginosamente em seu ateliê no bairro paulistano de Vila Madalena, alternando viagens a Buenos Aires à procura do filho e nora, desaparecidos durante a ditadura argentina. Sua produção, diferenciada e provocante, denunciava um criador vivo que naturalmente se incorporou à produção de arte brasileira, sendo convidado como tal para várias exposições de arte contemporânea. Antes de desembarcar em São Paulo ele fazia política e, mais do que isso, arte política. No Brasil sua obra cresceu ainda mais e sem concessões.
Durante o período que morou em São Paulo entre 1976 e 1991, retomou as esculturas de aço abstratas do início dos anos 1960. Inquieto, navegou em todas as águas e experimentou técnicas e suportes diversos como a xerox, o videotexto, a arte postal, microfichas, livros de artista, heliografia, uso da letra-set e instalações sonoras. Estamos falando da década de 80, quando começou a série de Releituras Bíblicas, o Brasil vivia o final de sua ditadura política, e ele continuava a fazer suas ácidas críticas.
León não ficou imune ao impacto que a cultura popular brasileira e o sincretismo religioso exerceram sobre sua arte. Crítico sobre o papel da igreja católica ele dizia que Dante, Pisano e Bosch, por exemplo, são de certa foram responsáveis pelo imaginário imagético sobre o inferno e seu personagem central, o diabo.
Sem nunca baixar as armas contra a ditadura, ao voltar a Buenos Aires inicia uma série de colagens que foram publicadas em 1995/96 no jornal argentino Pagina/12, acompanhadas com listas de desaparecidos políticos, vítimas do regime militar argentino. As obras mesclam a ditadura, o nazismo e a Igreja.
Em maio de 2010, na edição 4 da revista ARTE!Brasileiros, a historiadora e curadora argentina Andrea Giunta publicou um perfil de Ferrari. Leia aqui.
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