Ntando Cele tem uma risada deliciosa. Ela ri alto, frequentemente, e seus olhos, no instante em que ri, parecem expressar um comentário irônico sobre a situação a seu redor. Ntando é sul-africana e, sabendo disso, eu, que nunca pus os pés na África, logo comecei a pensar que ela ri “com a alegria dos africanos”. Assim, quase sem perceber, entrei no território conflagrado em que a dramaturga, atriz, cantora e dançarina de 36 anos recolhe os elementos do seu trabalho – o território dos estereótipos raciais.
Ntando esteve em São Paulo no mês passado, como uma das convidadas da Mostra Internacional de Teatro. Ela fez quatro apresentações. Por obra da propaganda espontânea, a fila para conseguir os ingressos gratuitos do Itaú Cultural cresceu exponencialmente a cada noite. Quem conseguiu entrar viu um espetáculo que mistura comédia, música e experimentação visual. Black off (literalmente, negro fora, mas que pode ser lido também como alusão à expressão back off, que significa recuar, ficar longe) expõe uma versatilidade que poucos artistas seriam capazes de reproduzir no palco. Isso tudo embalando um conteúdo crítico raramente visto no Brasil.
A montagem que Ntando apresentou na Mostra se divide em três partes. Na primeira, pintada com tinta branca, e usando peruca loira e lentes azuis, ela encarna Bianca White, uma branca sul-africana com sotaque de rica que se dispõe a ajudar os negros a serem mais felizes, encontrando a sua brancura interior. “Feche os olhos”, ela diz. “Pense nos seus ossos, nos seus dentes, sinta a sensação deliciosa da brancura. Não é maravilhoso”? O riso emerge aos borbotões da audiência incomodada. Sim, porque, além de fazer piadas, Ntando provoca diretamente a plateia de “morenos”, forçando as pessoas a confrontar os seus próprios estereótipos, quando não a sua identidade. A personagem Bianca White representa uma crítica visceral aos racistas sul-africanos, mas, ao mesmo tempo, é ela mesma um deplorável estereótipo. A faca de Ntando corta dos dois lados.
“O meu propósito último como artista é ser vista de uma forma diferente daquela que me veem”, diz ela, dois dias depois da apresentação, enquanto conversa comigo no banco de trás de um táxi. “Quero ser percebida como um ser humano de múltiplas camadas. Eu posso ser um estereótipo, claro, mas eu sou muito mais do que isso. As ideias sobre quem eu sou, sobre o que cada um de nós é, frequentemente são falsas. Mas às vezes são verdadeiras. Há uma luta constante entre estereótipos e realidade. Eu me interesso por essa contradição. Eu sou essa contradição”.
O falecido James Baldwin, talvez o escritor negro mais influente da história americana, protagonista do documentário Eu não sou seu negro, escreveu algo semelhante. Ele dizia que o problema dos estereótipos raciais é que eles capturam parte da verdade sobre as pessoas, mas apenas uma parte, que não configura um ser humano completo. Ntando leu Baldwin. Ela o cita num texto-depoimento chamado Strange, publicado no blog dela. É uma referência ao ensaio mais famoso de Baldwin – Strange in the Village – publicado em 1953. Nele, o escritor conta como foi viver numa vila Suíça de 300 habitantes que nunca haviam visto um homem negro. Sua conclusão é que os moradores, apesar de meses de convívio cordial, nunca conseguiram percebê-lo como um ser humano de verdade. Ntando vive na Suíça, casada com um homem branco suíço, pai do seu filho de dois anos. Os três visitaram o mesmo vilarejo onde Baldwin viveu, 60 anos depois, e Ntando conta uma experiência que sugere que o mundo não mudou o suficiente. Ela tem uma crise de choro na piscina porque as pessoas não param de olhar para o seu corpo, acintosamente, como se ela fosse um objeto, uma atração, não uma pessoa. Baldwin entenderia perfeitamente.
Na segunda parte da peça, vestindo shorts e uma camiseta, descalça, ela desfila no palco como uma “africana típica”, levando água na cabeça diante de uma paisagem ensolarada da savana. É outro estereótipo, outra redução simplista e falsa, que ela combate, primeiro, com uma maravilhosa sequência de expressões faciais e caretas, como se montasse máscaras de si mesma diante do público. Depois, Ntando canta em xosa – idioma falado por sete milhões de pessoas na África do Sul – uma canção pungente que parece dizer: sim, eu sou africana, uma pessoa complexa como você, moderna, não apenas o complemento visual a um cenário ocupado por leões, girafas e antílopes.
Ntando tinha 10 anos quando Nelson Mandela saiu da prisão, em 1990, e assumiu a liderança política da África do Sul. Ela foi da primeira geração de crianças negras sul-africanas a entrar na escola dos brancos. Eram quatro ou cinco em cada turma, e ela descreve a situação como “difícil”. “As crianças brancas estavam acostumadas a ver os negros apenas como serviçais domésticos, não como colegas. Essa situação perdura até hoje”, ela diz. Classe média, filha de pai policial e mãe professora, ela é a mais velha de quatro irmãos. A responsabilidade que isso carrega está explícita no significado do seu nome: God’s will, a vontade de deus. “Imagine o peso desse nome sobre uma criança”, diz ela, antes de rir gostosamente. Ntando fez colégio, depois estudou arte dramática na faculdade. Aos 21 anos, depois de atuar em algumas peças e criar espetáculos solitários de arte e dança, estava “morta de tédio”. Então, descobriu o teatro de vanguarda europeu e foi atrás dele. Na Holanda primeiro, onde estudou, depois na Suíça, onde se fixou e casou. Na África do Sul, diz que vivia “sob exclusão, abaixo dos padrões de uma pessoa normal”. Ela acredita que a situação melhorou pouco para os negros depois de Mandela, embora ninguém goste de admitir isso. O país do arco-íris racial é uma peça de propaganda. Na vida real, a maioria negra é pobre e discriminada. A discussão, o avanço em direção ao que ela chama de “humanidade”, é dolorosamente lento: “Eu me sento num restaurante na Cidade do Cabo e ainda sou a única cliente negra. Os outros negros estão servindo, varrendo ou lavando os pratos. Vocês sabem como é isso no Brasil”.
Na Europa, onde chegou em busca de conhecimento e liberdade pessoal, Ntando descobriu que estava confinada a um espaço de “criatura primitiva”. “Como mulher africana, as pessoas assumem que não estudei, que não sei o que estou fazendo e que, provavelmente, sou uma prostituta. Por isso estou lá, não é? Eu simplesmente não existo. As pessoas cumprimentam quem está ao meu lado e não me dirigem a palavra. É chocante, mas real”. Como ainda não fala alemão – idioma de Berna, a cidade onde mora – ela não tem a desenvoltura necessária para lidar à altura com esse tipo de situação. “É a mesma experiência de exclusão que eu tinha na África do Sul, mas agora de outra forma”, diz ela.
E o Brasil? Ela sorri, como quem pede para não responder a essa pergunta, mas eu insisto, e digo a ela que seja franca. E ela é. “O fato de que a maioria das pessoas aqui seja mestiça me parece algo lindo. Acho as pessoas muito bonitas”, diz ela, com um sorriso. “Ao mesmo tempo, o fato de que vocês ainda estejam preocupados com quem é branco ou preto, ou quem é branco o suficiente ou preto o suficiente, me parece bizarro”, continua. “Assim que eu cheguei ao Brasil percebi que não há brancos aqui. A brancura é só um conceito. Claro que existem pessoas brancas, mas, como a vasta maioria é mestiça, a abordagem do assunto deveria ser outra. O fato de que a discussão, aqui no Brasil, continue sendo a respeito de quem é mais branco, me parece muito estranho, e muito frustrante”.
Parte importante do que Ntando sabe sobre o Brasil – o N do nome dela se pronuncia com a língua atrás da arcada superior dos dentes, como um nhhhhhh – ela aprendeu no contato com os alunos do workshop que conduziu durante duas manhãs, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, no bairro do Bom Retiro. Eram cerca de 20 jovens, selecionados pela organização da Mostra de Teatro entre atores, professores e artistas de rua. Formavam um grupo heterogêneo, com todas as cores e caras paulistanas, mas com acentuada predominância de brasileiros mestiços, aqueles mais comuns na periferia da cidade do que no centro abastado. Com eles, conversando em inglês, com auxílio de uma tradutora, Ntando ouviu falar de racismo, sexismo, homofobia, descriminação e violência, e de como funciona a hierarquia social brasileira, baseada em gênero, cor e renda. Durante o workshop – do qual eu participei no segundo dia – ela usou seu próprio trabalho para sugerir aos jovens a possibilidade de fazer arte com sentimentos de exclusão e injustiça, mas sem se deixar tomar pela raiva. Insistiu, também, que é preciso encontrar uma forma de atrair a atenção das pessoas, de fazer com que elas parem, escutem e prestem atenção no que o artista está tentando contar. “Nosso desafio é transformar o invisível no visível, falar daquilo que não é falável”, disse a eles. “Temos de ser sedutores”.
Transformar o invisível no visível – e falar daquilo que não é falável – talvez resuma o que Ntando faz no palco. Na terceira parte do seu espetáculo, ela se transforma numa roqueira raivosa e sensual, que dança e canta vestindo um maiô de couro preto, arrastando com ela os olhares perplexos da plateia. A banda que a acompanha – três músicos suíços, guitarra, teclados e percussão – produz um barulho de fazer inveja às bandas do punk rock. As letras das canções, todas de Ntando, exploram o universo da raiva. “Eu estou aqui e eu sou negra/ Mas eu não estou aqui para ser negra”, diz um refrão. O que ele significa? “Ser negra está associado a um monte de coisas, e elas têm muito pouco a ver com a maneira como eu me vejo”, ela explica. “Eu não estou aqui para satisfazer as ideias alheias sobre quem eu sou e o que posso fazer. Ao encarnar a persona de uma mulher negra raivosa eu pareço familiar, mas não há mulheres negras no punk, e isso desafia o estereótipo”.
Ao ler esse tipo de coisa, alguém pode imaginar por trás das frases uma mulher dura e agressiva, mas Ntando é o inverso disso. Há muita gentileza nela, um sorriso que brota fácil e uma maneira calorosa e acessível de lidar com as pessoas. Durante o workshop, aconselhou os jovens mais de uma vez a que não se levassem tão a sério, que tentassem se divertir com o seu trabalho, que procurassem equilíbrio entre combatividade e paz interior. “Estou soando meio exotérica, né”? Ao final do trabalho, um a um, os alunos vieram se despedir com um abraço afetuoso, que ela retribuía sem hesitar. Comigo, assim que começamos a conversar, passou longos minutos contando das delícias do convívio com seu filho Valentin, e da dificuldade que é estar longe dele. “Agora eu não sou mais inteiramente absorvida pelo meu trabalho, pela arrrrte, e esse sentimento é muito bom: saber que há mais na minha vida do que eu mesma”, diz ela. Perguntei em seguida se ela era feminista e a resposta, inesperada, foi um “não”, qualificado. “Eu tento falar como mulher negra, numa sociedade racista, essa é a minha questão. O debate sobre feminismo, tal como eu vejo, só tem um lado, o das mulheres brancas”, diz ela. “Por causa desse ângulo, eu não digo nada no meu trabalho a respeito de feminismo. Talvez pareça contraditório, mas é assim que eu sinto no momento”.
Como os espectadores de Black off puderam perceber, há muito de contraditório e visceral no trabalho de Ntando Cele. Mas há nele, sobretudo, uma enorme vitalidade, uma força extraída das coisas mais essenciais e mais contemporâneas, que tem tudo a ver com o que acontece no Brasil. Ser mulher, ser negra, ser mãe. Ter nascido na África, viver na Europa, viajar o mundo. Conhecer a exclusão num país de maioria negra, sentir-se excluída na Europa como minoria, entrar em contato com a esquizofrenia morena do Brasil. É dessas contradições, e de um talento enorme, que se alimenta a arte dela. Uma arte complexa que, nas palavras de Bianca White, sua personagem racista, apenas as pessoas brancas e instruídas, “que não são boas de cama”, são capazes de fazer e entender. Ou não.
Confira mais fotos do workshop com Ntando na site do MITsp.
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