Em um jantar com amigos, nas ruas, nos espaços independentes, entre alunos das escolas de arte. O olhar de um curador precisa estar sempre atento a novos talentos, obras reveladoras ou exposições de circuitos à margem. Valem eventos de arte, vale também uma conversa de bar ou qualquer outro universo para além das galerias.
Curadora há quase 40 anos, Lisette Lagnado confessa que até o Instagram hoje serve como fonte de busca. Com uma carreira consolidada e muitos contatos em mente, a curadora de ensino e programas públicos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, afirma que os artistas chegam a ela naturalmente ou por indicação. “Uma sorte que tenho, acho.” Mesmo há muito tempo no circuito da arte, Lagnado mantém o olhar afiado e investe tempo e paciência para conhecer novos artistas. “Leio os folhetos que chegam, ainda que ruins. Se não conheço o artista, uma ferramenta essencial é a busca por entrevistas ou depoimentos na Internet”, explica.
Assim como Lagnado, o paulistano Cauê Alves, atual curador do MuBE (Museu Brasileiro da Escultura), busca por nomes menos óbvios e garante que até mesmo os trabalhos não selecionados por um júri podem despertar interesse. “Participei este ano do prêmio Marcantonio Vilaça, em Brasília, com 800 inscritos, e me chamaram atenção trabalhos que não foram premiados, mas que foram vistos por um grupo de curadores. Muitos artistas nem imaginam que, mesmo sem estar em destaque, eles podem aparecer”, comenta.
Thaís Rivitti não só concorda como cita a mesma situação. Curadora e diretora do Atêlie 397, em São Paulo, Rivitti participa com regularidade de júris de salões. “É legal falar disso, pois muitas vezes o artista envia um portfólio para um edital e acaba não passando na seleção, mas isso não quer dizer que seu esforço tenha sido inútil”, explica. A curadora circula também em museus e centros culturais, sobretudo em programas ligados a jovens artistas. “Há inúmeros programas nesse sentido. A temporada de projetos do Paço das Artes e o programa anual do Centro Cultural São Paulo são dois bons exemplos”, afirma Rivitti.
Talentos brutos
Alves e Rivitti também concordam que a sala de aula pode ser um celeiro de boas ideias. Professor do curso de Arte da PUC, em São Paulo, Alves conta que tem muito contato com os artistas e suas produções na fase de origem. No mesmo sentido, Rivitti observa que “a situação de aula, independentemente do tipo de curso, é sempre uma oportunidade de troca”.
Membro do grupo de estudo no Centro Universitário Maria Antônia, Alves lembra os encontros quando Lorenzo Mammì era o diretor do centro e recorda-se também da revista Número, que era feita ali, em meados dos anos 2000. “Foi no centro universitário, por exemplo, que tive contato com os trabalhos da Equipe 3 – Genilson Soares, Francisco Iñarra e Lydia Okumura. Lembro que Genilson enviou um portfólio e acabei sendo convidado para escrever um texto sobre eles”, comenta o curador. “Hoje, Lydia Okumura está participando de uma mostra no MuBE, e o Reino Sofia acaba de adquirir uma obra dela”, observa.
Responsável pela curadoria do Instituto Tomie Ohtake, Paulo Miyada também é pesquisador de arte contemporânea e tem como única regra não ficar restrito a um grupo ou um entendimento único do que seja arte. “Isso às vezes passa por criar projetos como o Estou Cá, realizado no último ano no Sesc Belenzinho. Passa também pelo corpo a corpo com os alunos artistas na Escola Entrópica do Instituto Tomie Ohtake.” Recentemente, Miyada levou os artistas Lia Chaia, João Castilho e Jorge Soledar ao Tomie Ohtake quase ao mesmo que uma retrospectiva da pop Yoko Ono estreava no instituto.
O carioca Bernardo Mosqueira pondera que, mesmo com novidades constantes no mercado, o trabalho do curador não se resume a descobrir novos talentos. “Muitas vezes me interessa mais acompanhar e trocar longamente do que descobrir e ‘utilizar’ um trabalho ou artista uma única vez”, conta ele, que fez sua primeira exposição em sua casa no bairro do Jardim Botânico, no Rio, com obras de 47 artistas. “Tem artistas com quem trabalho desde a primeira exposição, como é o caso do coletivo carioca Opavivará, da artista paulistana Vivian Caccuri, do carioca Marcos Chaves e do gaúcho Tiago Rivaldo. Devo ter feito de seis a 12 exposições com cada um deles nesses últimos sete anos”, lembra Mosqueira.
Fora do circuito
Mesmo com estilos e personalidades diferentes, os curadores são unânimes ao falar que espaços independentes ou alternativos são essenciais para quem quer sair do óbvio. “São lugares menos burocráticos e com uma liberdade maior de experimentação e flexibilidade, onde é possível encontrar produções frescas”, explica Alves, citando os paulistanos Atêlie 397, Casa Contemporânea e Casa Tomada, e Ateliê Aberto, em Campinas. Para ele, não existe cena independente, já que “todo mundo depende de alguma coisa”. “É mais um rótulo do que uma verdade, uma vez que a coisa toda funciona em rede.”
À frente do Ateliê 397, espaço de intervenção cultural com gestão coletiva, Rivitti é parte desse cenário informal e tem como desafio encontrar meios de manter o espaço e abrigar artistas, seja com leilões ou exposições, seja cedendo espaço para residência. “Normalmente os artistas com os quais eu me identifico são aqueles que buscam contextos de exibição mais favoráveis à experimentação, situações em que o conflito não é evitado, mas, ao contrário, desejado”, explica a curadora e pesquisadora.
Sempre que pode, ela também se força a sair de São Paulo e visitar artistas em outras cidades. “É impressionante como a circulação dos trabalhos, mesmo no Brasil, é difícil, e temos sempre que ficar atentos e nos movimentar para não cair no erro de achar que a nossa cidade é o mundo.”
Mosqueira concorda com Rivitti. O carioca conta que, depois de uma viagem ao Pará, fez uma exposição chamada Horizonte Generoso só com artistas de Belém. “Os jornalistas diziam que eu estava descobrindo Belém, como se antes ela estivesse invisível. Interessante de verdade é o Paulo
Herkenhoff, que acompanha os artistas e instituições da cidade há décadas”, lembra Mosqueira. Ele confessa ainda que mais importante do que ter feito uma exposição com os artistas de Belém é ter podido trabalhar com alguns deles muitas outras vezes depois da primeira exposição.
Interessado e atento ao mercado, Mosqueira questiona as cartilhas que querem enquadrar o trabalho do curador em determinado contexto ou modelo. “Em 2016, lançaram uma publicação sobre o tema cuja introdução ambicionava listar os procedimentos obrigatórios do trabalho. Segundo os parâmetros desse ‘tutorial da curadoria’, Frederico Morais seria condenado pelo projeto de encontros Domingos da Criação, Walter Zanini reprovado pelo projeto de exposições Jovens Arte Contemporânea, Lisette Lagnado repreendida por sua Bienal (2006) e o seu Panorama (2013) e Paulo
Herkenhoff, então, seria multiplamente desacreditado, um fracasso como curador ‘competente’”, observa. Para ele, mais importante que definir o que é o trabalho do curador é pensar o que pode ser seu trabalho e de que maneira essa prática pode ser “expandida e transformada, além de expansiva e transformadora”.
Miyada, afora coordenar o Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Tomie Ohtake, é professor da Escola Entrópica, que oferece programação de cursos, laboratórios e grupos sobre a arte contemporânea, e acredita que curadoria é o trabalho de quem vê, estuda e discute a produção artística de forma a criar situações para que outros públicos possam vivenciar juntos certas obras e ideias. “Nesse sentido, todo contexto em que artistas apresentam sua produção interessa, de exposições grandes e pequenas a grupos de estudo, publicações, canais digitais, etc”, argumenta. Para Cauê Alves, curador tem que circular. Assim como o artista, “que não pode ficar parado”.
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