Volpi: o avesso da metrópole

Sem título, déc. 1930. Óleo sobre madeira, 22 x 35 cm. Col. Ladi Biezus. A princípio, Volpi pintava suas paisagens ao ar livre. Na época, a periferia de São Paulo guardava o aspecto de uma vila interiorana
Sem título, déc. 1930. Óleo sobre madeira, 22 x 35 cm. Col. Ladi Biezus. A princípio, Volpi pintava suas paisagens ao ar livre. Na época, a periferia de São Paulo guardava o aspecto de uma vila interiorana

Para comemorar os 120 anos de nascimento de Alfredo Volpi (1896-1988), o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo inaugurou em 20 de junho uma exposição com 74 obras de pequeno formato do pintor. Organizada pela curadora Aracy Amaral, responsável pela famosa retrospectiva do artista em 1972, a mostra – que poderá ser visitada até 18 de dezembro – reúne desde as paisagens pintadas por Volpi na periferia de São Paulo nas décadas de 1920 e 1930 até as fachadas e bandeirinhas do final de sua vida. Todas as telas integram o acervo do engenheiro Ladi Biezus, que começou a frequentar o ateliê do pintor nos anos 70 e coleciona trabalhos de suas diversas fases.

Segundo Biezus, as pequenas telas exibidas no MAM permitem entrever melhor o processo de criação de Volpi porque são trabalhos mais intimistas, sem o tom solene de suas telas maiores. Mas, embora revelem grande espontaneidade, nenhum deles foi produzido de forma descuidada. O colecionador, que acompanhou o processo de elaboração de alguns dos estudos dessa mostra, explica que o pintor sempre trabalhou vagarosamente. Volpi nunca colocava diretamente a tinta sobre a tela nua. Inicialmente ele traçava, a carvão, o arcabouço formal da pintura. Depositava a seguir dois tons de branco para criar um contraste entre figura e fundo. Esperava mais duas semanas para então acrescentar três cores distintas. Uma ou duas semanas depois, colocava mais três pigmentos. Seguia assim até o final. Cada tela exigia um cuidadoso processo de composição, por meio do qual Volpi ia criando mosaicos sofisticados.

Na verdade, sua pintura demorava ainda mais porque, como observa Aracy Amaral, Volpi nunca comprava as telas no mercado: ele mesmo serrava as ripas de pinho para montar os chassis, lavava os tecidos para tirar a goma que traziam da fábrica e depois montava os suportes. Completava o preparo da tela com cinco ou seis camadas de uma emulsão que ele mesmo produzia, e preparava suas cores misturando os pigmentos à clara de ovo. A curadora recorda ainda a resistência de Volpi em aceitar qualquer produto industrializado: ele rejeitava os instrumentos adotados pelos artistas concretos de São Paulo (pistola de pintar, régua, compasso). Também nunca pintou sob luz artificial, que, na sua opinião, distorcia suas harmonias. Apesar das semelhanças aparentes com a vanguarda concretista, “Volpi sempre realizou um trabalho artesanal”, como reconheceu o líder do grupo, Waldemar Cordeiro (1925-1973).

Volpi nasceu em Lucca, na Itália. Sua família chegou a São Paulo em 1898, quando ele tinha apenas um ano e meio, e se instalou no bairro do Ipiranga, onde seu pai abriu uma pequena venda de queijos e vinhos. Ainda pequeno, começou a trabalhar como marceneiro-entalhador e encadernador até que, em 1911, aos 15 anos, passou a atuar como pintor e decorador de paredes, uma área na qual não faltavam clientes. A cidade experimentava então um crescimento rápido, impulsionada pela expansão da economia cafeeira. O número de construções urbanas passou de 10 mil, em 1886, para 21 mil, em 1900, e 32 mil, em 1910. Os imigrantes italianos perfaziam então “três quartas partes dos pedreiros e quase a totalidade dos mestres de obra” na cidade, como relata o historiador Ernani Silva Bruno.

Em 1914, aos 18 anos, Volpi finalmente começou a pintar quadros. Suas telas reproduziam o mundo em que ele vivia. Como observou Aracy Amaral em sua introdução à retrospectiva de 1972, essa pintura, praticada aos domingos, representava “a possibilidade de passar da pintura de parede ao exercício da pintura em plena liberdade”. Volpi produzia sobretudo paisagens dos bairros em que morou (Ipiranga, Cambuci, Jabaquara), então fracamente povoados, além de retratos de amigos e familiares. Dentre os quadros dessa fase, a exposição reúne um retrato e cinco paisagens, com prados, casas, ruas de terra, comércio e até um automóvel. Com o tempo, Volpi começou também a retratar as cidades que visitava (Itanhaém, São Vicente, Mogi das Cruzes), refigurando em geral cenas campestres e marinhas.

DO INÍCIO AO FIM, A ARTE DE VOLPI SEMPRE TEVE O MESMO TEMA: A CIDADE DE SÃO PAULO DO COMEÇO DO SÉCULO XX. À MEDIDA QUE ESSA REALIDADE DESAPARECIA, O PINTOR PASSOU A USAR SUA MEMÓRIA PARA PRESERVÁ-LA

Como explica Samuel Kruchin em São Paulo 30-60: Quatro Movimentos, “desde cedo sua obra é, essencialmente, paisagem. Houve sempre poucos interiores… Volpi elege um tipo particular de cenário, a pequena cidade do interior, a ruela do bairro afastado, o caminho de terra ladeado por edificações singelas – porta e janela – apenas. Vez por outra esse cenário acontece à beira-mar”. Seus quadros são naturalistas: “A paisagem é registro, nunca invenção, memória ou construção. Trata-se de captar, apenas, uma fração da realidade existente, do que lá se encontra, passando à margem das primeiras manifestações da vanguarda modernista… Volpi traduz a singeleza de um ambiente essencialmente provinciano. Traduz o que vê”.

Sem Título, déc. 1960, Têmpera sobre cartão, 32 x 23 cm. Na página ao lado,  Sem Título, déc. 1970, Têmpera sobre tela, 32,5 x 23,5 cm. Em sua obra madura, Volpi simplificou os elementos temáticos das paisagens que pintava nas primeiras décadas do século
Sem Título, déc. 1960, Têmpera sobre cartão, 32 x 23 cm. Em sua obra madura, Volpi simplificou os elementos temáticos das paisagens que pintava nas primeiras décadas do século

Após a Revolução de 1930, ele se distanciou pouco a pouco dessa mimese direta do real. A partir de 1935, as figuras humanas começaram a desaparecer de sua obra e, a partir de 1939, o mesmo ocorreu com os elementos da natureza. Nos anos 40, Volpi abandonou a pintura ao ar livre e passou a produzir quadros no ateliê: ele rompeu o contato direto com o mundo exterior e se recolheu à sua interioridade. Em vez de refigurar o que tinha diante dos olhos, ele começou a criar quadros com base na memória. Os temas de suas obras não mudaram: pemaneceram as mesmas casas e ruas, as mesmas marinhas. Mas todos esses elementos sofreram um processo de desmaterialização: os volumes cederam lugar a figuras planas, que mais tarde se fragmentaram em formas simples. As antigas paisagens de São Paulo deram lugar a um universo estilhaçado. Na opinião de Ladi Biezus, a evolução de Volpi pode ser entendida como “uma marcha constante para simplificar as formas e dar preferência à cor”. A partir de seus temas habituais, ele criou um vocabulário de formas simples, que servem de base para seus jogos cromáticos: “Ele usa um vocabulário de formas que se originaram de figuras da natureza, mas que foram sendo lapidadas. Ele foi burilando as figuras até chegar às formas simples. Assim, criou um vocabulário de formas que permitia que ele jogasse com as cores”. Num certo sentido, diz Biezus, talvez se possa dizer que Volpi reduziu os objetos reais às ideias de Platão: ele se afastou da realidade concreta, sempre mutável e sujeita à corrupção, para alcançar um estado permanente e perfeito, de formas e cores puras.

O problema reside em descobrir o que motivou esse distanciamento do real. Para a maioria dos críticos, a questão se resolve em termos muito simples: à medida que Volpi foi amadurecendo como artista, substituiu a pintura de “assunto” por uma pintura “pura”: os objetos de seus quadros iniciais se transformaram, ao longo dessa evolução, em meros “pretextos” para a produção de combinações de formas e cores. Dessa perspectiva, contudo, a trajetória de Volpi permanece sem explicação: se os temas de suas telas não tinham a menor importância, como sugerem tais interpretações, por que razão persistiram até o final de sua vida? Diferentemente de Mondrian, por exemplo, Volpi jamais eliminou as referências aos objetos reais que conheceu. Basta observar a presente exposição no MAM para constatar que os cinco estudos de uma fachada feitos nos anos 70, quase inteiramente abstratos, se inspiram nas primeiras casinhas de telhados inclinados pintadas ao ar livre nos anos 30. Se esses assuntos não significavam nada para Volpi, por que o artista não os descartou? Como lembra Freud em Além do Princípio do Prazer, a repetição contínua dos mesmos temas revela que eles evocam um intenso prazer no indivíduo. De onde nasce esse prazer?

Volpi nunca discutia essas questões com os amigos, não apreciava debates sobre pintura. Mas o problema começa a se esclarecer quando voltamos a Wilhelm Worringer, o primeiro teórico da arte abstrata. Em Abstração e Empatia, ele explica que o sentimento estético se move entre dois polos: da identidade com o objeto à negação do objeto. Se as relações entre o homem e mundo são de confiança, o prazer estético nasce da empatia com o real, o que conduz o pintor a uma arte naturalista. Um exemplo pode ser encontrado nas pinturas de gênero holandesas, nas quais, como ensina Hegel, o espírito se reconciliou com a realidade. Contudo, se o mundo infunde medo e inquietação, o pintor mobiliza a tendência à abstração. Os escritos de Worringer permitiram que a psicóloga brasileira Nise da Silveira compreendesse melhor as pinturas de seus pacientes esquizofrênicos. Segundo ela, se o mundo se transforma num lugar hostil, a arte trata de retirar as coisas desse redemoinho perturbador, esvaziando-as de suas manifestações vitais sempre instáveis “para submetê-las às leis permanentes que regem o mundo inorgânico. Por meio de processos de abstração, o homem procura um ponto de tranquilidade e de refúgio”.

Uma explicação mais abrangente da evolução pictórica de Volpi precisa, portanto, levar em conta que o objeto real com o qual o artista se defrontava não permaneceu o mesmo durante toda a sua vida. Em algumas décadas a capital paulista adquiriu os contornos de uma grande cidade: sua população aumentou de 579 mil habitantes, em 1920, para 2,1 millhões, em 1950. E, como toda metrópole, São Paulo substituiu os laços comunitários por formas de sociabilidade impessoais, baseadas no dinheiro e nas trocas mercantis: a vida na cidade se tornou abstrata muito antes que os quadros de Volpi registrassem esse fato. Não é difícil perceber que a evolução de sua obra acompanhou a destruição do mundo de sua infância e juventude. Volpi sempre foi um artesão que rejeitava os processos de trabalho mecanizados e a vida nas metrópoles. Basta lembrar que, embora ele gostasse muito de retângulos, jamais pintou um arranha-céu: “Nunca vi Volpi fazer isso”, diz Biezus. Ele trabalhou no Edifício Santa Helena (que nem era muito alto), mas isso não alterou sua aversão aos prédios.

A expansão da mancha urbana não apenas desfigurou os cenários que Volpi apreciava, mas destruiu também algumas de suas obras, como mostra um episódio relatado por uma antiga moradora do Cambuci, entrevistada por Ecléa Bosi em Memória e Sociedade: “Meu marido, mais tarde, construiu uma casa num terreno que tinha na rua Jerônimo de Albuquerque. A sala, em cima, tinha uma barra de rosas amarelas, mais claras, mais escuras, pintadas pelo irmão de um colega de fábrica, chamado Alfredo Volpi. Meu marido dizia: ‘Você não sabe como aquele rapaz pinta! Ele pinta as rosas à mão livre!’ Outro dia, minha filha passou por lá e ficou namorando a casa, da calçada. Pintaram as paredes com látex, passaram tinta e desmancharam as rosas do Alfredo Volpi, o que é uma grande pena”. Como dizia o cronista Antônio de Alcântara Machado sobre São Paulo, “aqui as casas vivem menos que os homens”. Talvez isso tenha pesado na sua disposição de conhecer cidades com feições coloniais.

Quando Volpi parou de pintar ao ar livre para criar quadros de memória, não abandonou sua temática figurativa, mas a preservou. A cidade que ele amava foi destruída, e subsistia apenas na sua memória. É por meio de seu trabalho como pintor que ele conseguiu assegurar que esse mundo artesanal sobrevivesse na pintura, depois de ter desaparecido na realidade. E, como essa realidade resistia somente na sua consciência, ela acabou sofrendo um processo de estilhaçamento e fragmentação, que caracterizou sua obra madura. Apesar disso, os temas de sua adolescência persistiram até o fim de sua existência, assim como seus métodos de trabalho. O que Hegel disse um dia acerca da filosofia também se aplica à arte de Volpi: a pintura chega sempre muito tarde.“Como pensamento do mundo, só aparece quando a realidade efetuou e completou o processo de sua formação (…) É na maturidade dos seres que o ideal se ergue em face do real e, depois de ter apreendido o mundo na sua substância, o reconstrói na forma de um império de ideias”. A arte não é capaz de rejuvenescê-la, mas consegue fixar a sua memória. Volpi não foi capaz de trazer de volta a São Paulo do início do século XX. Mas preservou a sua essência num império de formas e cores.


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