León Ferrari por Alex Flemming e Aracy Amaral

Foto Fundação Augusto Y León Ferrari Arte Y Acervo

León Ferrari em seu ateliê em São Paulo, no fim dos anos 1970
Nesta semana, na quinta-feira, 25 de julho, o argentino León Ferrari faleceu, em Buenos Aires, aos 92 anos. Considerado por muitos o mais importante artista visual de seu país, Ferrari viveu no Brasil entre os anos de 1976 e 1991, fugindo da sangrenta ditadura instaurada no ano de sua partida, que ceifou a vida de um filho seu e da sua nora. Ferrari fez por aqui grandes amigos, entre eles o artista plástico Alex Flemming, paulistano que legou a cidade a obra instalada na estação Sumaré do metrô, composta por serigrafias de retratos de cidadãos anônimos, sobrepostos por poemas. No depoimento abaixo, Flemming deixa um testemunho da grande amizade que teve com León Ferrari. Leia também texto da historiadora e curadora Aracy Amaral sobre o legado do artista argentino.
 
“‘Essa obra pertence à Argentina’. Há muitas coisas que o dinheiro não compra, Herr Sammler. O Espírito da Arte, o Respeito, o Caráter, a Ideologia… por exemplo”

por Alex Flemming

“Conheci o León Ferrari, em São Paulo, na década de 70, no atelier de Vila Mariana do Romildo Paiva, quando nós dois estávamos ali fazendo gravura em metal. O León tinha chegado da Argentina havia alguns poucos meses, fugido e perseguido pela bárbarie militaresca que iria lhe custar a vida do seu filho do meio, entre tantos outros traumas. Imediatamente entramos em sintonia fina por nossas ideologias anti-militares e também por nossos pensamentos paralelos como artistas que têm um papel político dentro de uma sociedade. A amizade foi forte e duradoura durante todas essas décadas, Tanto em São Paulo, nas inúmeras casas em que ele morou durante o exílio, quanto em vários lugares do mundo onde nos encontramos, tendo ele e sua esposa, Alicia, me visitado em Nova York quando eu era bolsista da Fulbright (ficaram hospedados em meu apartamento), e eu os visitei em Buenos Aires, inúmeras vezes após o seu retorno. Muito antes de sua fama internacional, eu doei à Pinacoteca do Estado várias obras de sua autoria que me pertenciam e que havíamos trocado, pois sempre achei que o que é bom deve ser compartilhado. Particularmente, interessante é rememorar a Bienal de Veneza em 2007, quando estávamos tomando café da manhã no Lido com a neta Anna e veio um dos maiores colecionadores alemães, à nossa mesa, praticamente implorar para que o León vendesse para ele a obra Civilização Ocidental e Cristã. Como ninguém outra na mesa falasse alemão eu servi de intérprete, e por mais que o milionário de Hamburgo oferecesse somas e lances crescentes e nunca-antes-imaginados, esses tostões foram solenemente desdenhados por um León impassível que bateu o pé : ‘Essa obra pertence a Argentina’. Há muitas coisas que o dinheiro não compra, Herr Sammler. O Espírito da Arte, o Respeito, o Caráter, a Ideologia… por exemplo”

Alex Flemming, Berlim, Julho de 2013

Um artista querido desaparece: León Ferrari

por Aracy Amaral

León Ferrari é muito lembrado por suas especulações bíblicas e sátiras agudas à Igreja, ao clericalismo e às injustiças cometidas pela ditadura argentina. Mas sua obra vai muito além dessas instalações, livros e discursos. Claro que o seu grande tento, o premiado bombardeiro com o Cristo crucificado, em pleno período da guerra do Vietnam, marcou sua trajetória e o projetou além fronteiras. Além de sua participação em Malvenido Rockefeller e Tucuman Arde, de fins dos anos 1960, eventos destacados na arte participante argentina contra a exploração, o imperialismo e os regimes militares.

Mas até seu silêncio por um período, depois que saiu da Argentina, foi eloqüente. Quando me recordo dele dizendo que redescobriu aos poucos a vontade por desenhar, aqui em São Paulo. Após um tempo de reclusão, suas caligrafias se multiplicaram como discursos poéticos de grande beleza para todos os olhares, em desenhos e gravuras. A delicadeza dessa serie de trabalhos é comparável a suas torres filigranadas, esculturas transparentes onde a massa é inexistente deixando visível o espaço na musicalidade de suas linhas retas e obliquas, compondo as “caixas” geométricas que as encerravam poeticamente.

Aliás, seria igualmente através do som que criaria um de seus trabalhos mais vivos através das performances realizadas em São Paulo na Pinacoteca e no MAM. León revelava-se, assim, um performer de rara sensibilidade.

Outra faceta, porém, de León Ferrari foi a de especulações com novos materiais trabalhando junto a artistas bem mais jovens de que se aproximou em São Paulo, atuando com eles nos anos 1980:  realizou trabalhos em xerox, letra-set, assim como em “plantas”, em copias heliográficas focalizando espaços urbanos tumultuados  ou organizados. Ao mesmo tempo, a temática lúdica e/ou erótica imiscuía-se frequentemente, e com humor, em suas criações inusitadas, seja em objetos como em instalações.

Assim, este artista aparentemente tranqüilo e afável, que atravessou gerações com propostas inovadoras, generoso em suas relações com o meio artístico e museal, teve como característica igualmente uma inquietação constante. Além de princípios éticos aos quais permaneceu fiel, o que representa um grande legado para sua memória.

Leia também:
“Forte e universal” – Leonor Amarante, editora da ARTE!Brasileiros, inventaria a perda de León Ferrari.

Perfil escrito, em 2010, pela historiadora e curadora argentina Andrea Giunta – León Ferrari, a turbulência da beleza


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