100 anos da Tia Zélia

A paixão de Zélia Gattai por retratar pessoas e o cotidiano teve início em Paris
A paixão de Zélia Gattai por retratar pessoas e o cotidiano teve início em Paris

Toda vez que eu encontrava tia Zélia, sempre em reuniões familiares, minha admiração aumentava. Ela era carismática, bonita, tinha muita personalidade e atraía a atenção de todo mundo, mesmo estando sempre ao lado de uma celebridade, o seu marido. Impossível não admirá-la. E além de tudo tinha aquela conexão tão sólida entre ela e tio Jorge, amor romanticamente eterno. Neste ano do seu centenário (nasceu em 4 de julho de 1916) é inevitável pensar nela.

Eles visitavam a gente com frequência, vindos da Bahia para São Paulo – e durante muito tempo se hospedavam em casa, no apartamento dos meus pais em Higienópolis. Tio Jorge tinha compromissos com a imprensa, com a editora, com amigos e tia Zélia queria fazer negócios com minha mãe. Ela trazia quadros de pintores primitivos da Bahia, que, na época, década de 1960, estavam na moda, e as duas forravam de quadros as paredes do apartamento como uma galeria para mostrar a seus possíveis clientes. Venderam quadros, com certeza, mas nunca foi um grande negócio.

Nessa época, Zélia e Jorge moravam na casa “definitiva”, a do Rio Vermelho, em Salvador, hoje transformada em um museu dedicado à memória de meu tio. Lá foi o ponto final de uma longa trajetória de viagens ininterruptas que o casal empreendeu, na maior parte do tempo sem luxo ou conforto, convivendo com celebridades internacionais, fazendo política e vivendo as agruras do exílio.

Zélia era uma moça sofisticada, embora de ascendência humilde. Seus pais fizeram parte de um grupo de famílias italianas que quando vieram ao Brasil fundaram a Colônia Cecília, no norte do Paraná, baseada nos princípios anarquistas – que iam da vida em comunidade até a prática do amor livre. A colônia não deu certo e os Gattai vieram para São Paulo, mais precisamente para a alameda Santos, bem ali no coração da cidade. Mas sustentaram seus princípios anarquistas envolvendo-se com o movimento operário do começo do século XX e vivendo a ebulição cultural da São Paulo da época.

Com o marido, Zélia visita o set de Gabriela, adaptação do romance de Jorge Amado que teve Sônia Braga como protagonista
Com o marido, Zélia visita o set de Gabriela, adaptação do romance de Jorge Amado que teve Sônia Braga como protagonista

Zélia era uma típica paulistana. Graças ao seu engajamento político e sua crença no socialismo, conheceu o tesoureiro do Partido Comunista Brasileiro Aldo Veiga, um intelectual bem relacionado com quem se casou aos 19 anos. Foi quando se enturmou com a elite cultural do País, escritores e artistas como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Vinícius de Moraes e Rubem Braga. No meio desse povo, ela era uma verdadeira estrela: alegre, jovial, interessante e engraçada.

Então Jorge Amado surgiu na sua vida. Recém-separado, o escritor baiano estava em São Paulo para se dedicar a atividades literárias e políticas e participar do evento que comemorou a liberdade de Luís Carlos Prestes, presidente do PCB, partido que usufruía, naqueles ares liberais do pós-guerra, de efêmera legalidade. Era 1945 e havia uma grande agitação política em São Paulo. Voluntária do PCB, Zélia conheceu meu tio na rotina de trabalho do dia a dia, com quem trocava olhares profundos, inquestionáveis. Até que um dia ele convidou-a para almoçar. Foi a primeira vez que ficaram a sós, mas foi o que bastou: sem mais rodeios, Jorge declarou que a amava e convidou-a a morar com ele no seu modesto apartamento da avenida São João. Assim mesmo, direto ao ponto. E ela aceitou!

Esse foi um caso de amor que teve muita repercussão naquela remota década de 1940. Zélia era casada e tinha um filho de 3 anos, Luís Carlos (obviamente em homenagem a Prestes), mas era jovem e apaixonada e não lhe faltou coragem para largar tudo e ir morar com Jorge. Em todos os anos que convivi com ela praticamente nunca ouvi falar desse marido e desse filho – a não ser por meio de Lalu, minha avó, sua sogra. Ela dizia que tia Zélia não tinha contato com o filho nem com o ex-marido e essa situação perdurou por décadas. Só muito mais tarde, quando já era idosa, é que tia Zélia voltou a falar com Luís Carlos. Essa omissão pode até ser justificada pelo fato de na época não haver divórcio, só o desquite, e as circunstâncias da separação devem ter colaborado para que a guarda do filho ficasse com o pai. “Eu morria de saudade, mas tinha decidido ficar com meu amor, ir onde ele fosse, sem reclamar e sem chorar”, contava ela.

Zélia foi morar no Rio de Janeiro, onde Jorge Amado assumiu o cargo de deputado federal. Mas foi uma estadia curta: dois anos apenas, ao fim dos quais a Guerra Fria e o recém-eleito presidente Dutra estabeleceram um conflito com a União Soviética e o registro do PCB foi cassado. Jorge Amado e todos os representantes comunistas foram perseguidos e ameaçados e só lhe restou exilar-se na Europa imediatamente, largando tudo para trás.

Zélia resolveu ficar com seu filho recém-nascido para evitar o rigor do inverno europeu e cuidar das pendências do casal. Foram só alguns meses, mas sofridos: a polícia invadiu a sua casa atrás do marido e destruiu o que não levou de documentos e valores, fazendo ameaças de tortura e prisão para a jovem com seu bebê.

Finalmente ela conseguiu ir para a Europa. Mesmo com a destruição causada pela guerra e a crise de abastecimento, em que faltavam alimentos e produtos de higiene, foi um tempo magnífico para ela, principalmente os dois anos que morou em Paris. Aprendeu a falar francês e conviveu intimamente com celebridades internacionais, como Pablo Picasso e Pablo Neruda, reforçando seu grande interesse pelas artes. Além disso, ajudava na intensa produção literária do marido, datilografando e revisando os originais. Claro, ela não conseguia deixar de dar palpites no rumo da história e dos personagens, mas era radicalmente rechaçada pelo autor.

Autorretrato de Zélia e Jorge feito por ela com o recurso de um disparador automático
Autorretrato de Zélia e Jorge feito por ela com o recurso de um disparador automático

Nessa época, o casal viajava constantemente à União Soviética para cumprir obrigações do partido. Muitas vezes ela ficava sozinha com o filho, para evitar o desgaste das viagens – e foi uma lutadora, enfrentando sozinha, sem reclamar, o frio, o desconforto e as necessidades que envolvem uma jovem mãe.

Certo domingo ensolarado em Paris, o casal foi passear no conhecido marché aux puces, ou mercado das pulgas, onde se compram objetos usados e todos os tipos de quinquilharia. Nessas andanças, Zélia encontrou uma velha máquina fotográfica de fole, de fabricação alemã, e resolveu investir no seu desejo recente de fotografar a família em Paris. Começou assim uma paixão que duraria o resto da vida e que a levou a ter um status de artista na área da fotografia.

Sobre essa época de exílio, ela contava da admiração que tinha por Jorge Amado, da dedicação dele ao partido e a sua ideologia. Mas questionava as manifestações sectárias da esquerda, radicalizadas pela Guerra Fria.

E tinha bons motivos: a tensão refletiu-se por toda a Europa e Jorge Amado foi intimado a sair da França no prazo de 15 dias, sem explicações. Era 1951 e, mais uma vez, ele teve que largar para trás na correria toda a sua vida e iniciar uma nova, dessa vez no Castelo de Escritores de Praga, na então Tchecoslováquia.

Foi convivendo com escritores de várias nacionalidades soviéticas que o casal começou a tomar consciência das atrocidades cometidas por Stalin. Prisões arbitrárias, torturas e execuções passaram a ocorrer ali, entre amigos do partido, gente que se dedicava sem restrição. Somando-se a isso, Zélia deu à luz uma menina, nascida tcheca, e o casal resolveu que era hora de voltar ao Brasil.

Começou uma nova fase para o casal. Jorge Amado se desligou do partido e atingiu o seu maior sucesso com o livro Gabriela, Cravo e Canela. Foi tanto o sucesso que vendeu o livro para o cinema e, com o dinheiro, comprou a casa do Rio Vermelho, em Salvador, onde hoje é o museu Jorge Amado. Era o começo dos anos 1960 e o casal encontrou o seu canto definitivo, onde viveu por mais de 40 anos.

Tia Zélia era sempre vista com uma máquina fotográfica a tiracolo. Ela fotografava realmente com prazer, mas com serenidade e modéstia. O resultado dessa aventura foi o livro Reportagem Incompleta, publicado em 1986, com uma seleção de algumas das melhores imagens que produziu, muitas delas feitas com o disparador automático, usado para fotografar a si mesma junto ao marido.

Era tão ativa quanto companheira e é justamente a sobreposição dessas qualidades que lhe confere o amplo reconhecimento de sua atuação feminista – capaz de viver o estado mais puro do romantismo e ao mesmo tempo ter uma identidade própria, produtiva e engajada. Não foram poucas as vezes que tio Jorge disse, publicamente ou na intimidade: “Não seria nada do que sou sem o apoio da Zélia”. Poderia ser apenas uma frase demagoga, mas na família todos sabíamos que era totalmente verdadeira.
Então surgiu a sua vocação tardia de escritora aos 63 anos e não foi realmente uma grande surpresa.

Isso porque, entre os muitos talentos de tia Zélia, um era inquestionável: o de contar bem uma história. Ela pegava um fato, aparentemente sem importância, e transformava-o num conto oral, geralmente cercado de risadas e bom humor. Uma de suas marcas eram as histórias de Lalu, minha avó, mãe dos três Amados: Jorge, Joelson (meu pai) e James. Lalu era uma mulher com uma grande imaginação, muito inteligente e com humor ácido, sarcástico – foi ela a protagonista das melhores histórias contadas por tia Zélia em seus livros de memórias.

Mas a sua obra de maior sucesso foi seu primeiro livro, Anarquistas Graças a Deus, um passeio histórico pela São Paulo do começo do século XX no qual se destaca a impressionante memória da autora ao resgatar fatos da sua infância. O livro virou uma minissérie da Globo e foi traduzido para o francês, espanhol e italiano. “Nunca pensei em escrever, mas eu sempre me divertia ouvindo e contando histórias”, dizia ela.

Já com mais de 80 anos, tio Jorge começou a perder a visão, vítima do mesmo problema que meu pai teve aos 40 anos e que o deixou praticamente cego: degeneração das retinas. Em pouco tempo, Jorge Amado já não conseguia mais ler e escrever, o que o fez mergulhar numa ausência depressiva – ele até ouvia e respondia, mas não parecia estar presente. Tia Zélia nunca o abandonou. Permaneceu ao seu lado tentando trazê-lo de volta para a realidade por anos a fio, mas já era um caminho sem volta.

Depois que ele morreu, Zélia Gattai ocupou seu lugar na Academia Brasileira de Letras e continuou escrevendo enquanto teve forças. Morreu em 2001, aos 91 anos. Mas por mais que seus últimos anos tenham sido sofridos, marcados pela saudade do seu grande amor, só me vêm à mente a sua imagem risonha e seu olhar, ao mesmo tempo doce e intenso.


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