Cesar, ao piano,  e Paulinho da Viola  em noite dedicada à bossa nova - Foto: Jean de Matteis/Divulgação
Cesar, ao piano, e Paulinho da Viola em noite dedicada à bossa nova – Foto: Jean de Matteis/Divulgação

Cesar Camargo Mariano passou uma breve temporada no Brasil em março passado. Morando em Nova York desde 1994, ao lado da mulher, a produtora Flávia Rodrigues Alves, com quem teve a filha Luisa – além dela, Cesar é pai de Marcelo, do primeiro casamento com a cantora Marisa Gata Mansa, e dos também cantores Maria Rita e Pedro Mariano, de sua relação com Elis Regina –, ele participou da quarta edição do festival Música em Trancoso, no litoral sul da Bahia, no qual assina, desde a estreia do evento, a curadoria de duas das oito noites.

No dia seguinte da segunda apresentação, o pianista, compositor e arranjador paulistano recebeu a reportagem da Brasileiros para uma conversa sobre suas recentes produções, que vão desde arranjos para artistas de diferentes gêneros musicais até composições de trilhas sonoras para o cinema. Aos 71 anos, sem tempo para “papas na língua”, Cesar expressou também considerações acerca do atual momento da música brasileira em solo americano e sobre dois personagens envoltos em polêmicas, a ex-mulher Elis Regina e o amigo Wilson Simonal, com quem atuou por quase três anos à frente do grupo Som Três.

Curadoria
Idealizado por Sabine Lovatelli, fundadora e presidente do Mozarteum Brasileiro, o Música em Trancoso oferece ampla grade de atrações gratuitas de música popular e erudita à população local e a turistas. A cada edição, o evento acolhe no Teatro L’Occitane cerca de 300 músicos de diferentes nacionalidades e um público superior a dez mil pessoas. O encontro anual também promove workshops e masterclasses para jovens músicos em formação e atrações dispersas em espaços públicos, como o Bosque do Quadrado, que recebeu, entre outros programas, concertos de cordas de parte dos 97 músicos da Orquestra Experimental de Repertório de São Paulo. Além de Cesar, outro destaque do evento foi o cantor e compositor Paulinho da Viola.

Nas quatro edições do festival, por três vezes Cesar repetiu o expediente aprovado pelo público: em uma das noites dedica-se a tocar temas de seu repertório autoral, clássicos do jazz e da música instrumental brasileira. Na outra, presta homenagens individuais a grandes nomes da música popular. O primeiro foi o maestro carioca Antonio Carlos Jobim. Em 2013, a honraria coube ao baiano Dorival Caymmi. No ano passado, Cesar abriu mão do formato e dedicou uma das noites à bossa nova, com a participação do amigo Ivan Lins. Nesta quarta edição, o público testemunhou uma celebração a dois gênios: o carioca Noel Rosa e o mineiro Ary Barroso. Clássicos como Aquarela do Brasil, Na Baixa do Sapateiro e Faceira, de Ary; Palpite Infeliz, Conversa de Botequim e Feitiço da Vila, de Noel, ganharam novas orquestrações, escritas por Cesar e executadas por um supergrupo: o trio que acompanha o pianista em shows internacionais – Conrado Goys (violão), Sidiel Vieira (contrabaixo) e Thiago Rabello (bateria) – e outros 13 músicos, estrelas da música clássica mundial, como os violinistas Lorenz Nasturica (romeno), Rüdiger Liebermann (alemão) e Nenad Daleore (sérvio), o clarinetista László Kuti (húngaro) e o violoncelista Michael Hell (austríaco).

Segundo Cesar, o encontro possibilitou uma rica experiência de troca. “Antes de subirmos ao palco, fiquei emocionado. Nos minutos que antecederam nossa entrada, aconteceu uma coisa linda: eles ficaram burilando frasezinhas do Noel e do Ary, como se estivessem ensaiando a peça mais difícil do mundo. O convite de Sabine para eu colaborar com o festival foi um presente. Reencontrei aqui a alegria de um amador que faz algo absolutamente profissional.”

Elis Regina
A conversa com Cesar aconteceu antes de 17 de março, data em que Elis Regina completaria 70 anos. Na ocasião foi lançada a biografia Nada Será como Antes (Master Books), do jornalista Julio Maria. Fato que motivou o pianista, que ainda não leu o livro a revelar o que pensa sobre as frequentes investidas ao passado de sua ex-mulher. “As pessoas vêm me pedir depoimentos sobre ela e os assuntos recorrentes são nosso casamento e drogas, raramente a nossa relação artística. Muitas inverdades foram contadas sobre ela e mesmo as coisas que eram verdadeiras foram focadas apenas para gerar polêmica. Elis foi perseguida ideologicamente por ter sido obrigada a cantar nas Olimpíadas do Exército, em 1972, mas quando gravou O Bêbado e a Equilibrista, que se tornou o hino da reabertura política, ninguém foi dizer que, na coxia dos shows, havia um monte de militares com metralhadoras em punho. É com Esse que Eu Vou (marchinha de Pedro Caetano, incluída no álbum Elis, de 1973), por exemplo, foi gravada por ela por causa de situações como essa. Lembro que estávamos em casa, as crianças brincando, de fraldas, eu trabalhando no piano e ela preparando um peixe recheado, que fazia muito bem, de repente, ela deu um grito: ‘Achei a música, Cesar! Vamos fechar o disco com É com Esse que Eu Vou’. Respondi: ‘Como assim, uma marchinha de carnaval?!’. Ela disse: ‘Você é burro?! Preste atenção na letra: É com esse que eu vou sambar até o fim… Pode vir senador, deputado… É com esse que eu vou’. Ela recitou a letra batendo a mão na mesa, com raiva, e disse: ‘É com esse que eu vou. Vou com o Brasil até o fim contra qualquer um desses filhos da puta’. Até hoje me emociono de lembrar dessa sensibilidade artística que ela tinha. O que é isso, se não uma cabeça absurda?! E por que não falam disso?”

Wilson Simonal
A defesa de Elis motiva Cesar a falar de tema raramente abordado por ele, a polêmica em torno do amigo Wilson Simonal. Artista dos mais queridos no Brasil dos anos 1960, ele começou a ser apagado da história musical do País no começo da década seguinte, depois de protagonizar episódio dos mais nebulosos. Pelo relato de Cesar, tudo aconteceu assim: no dia seguinte em que o Som Três e Simonal retornaram ao Brasil, após passarem um mês se apresentando antes dos jogos da Seleção Brasileira na Copa do México, de 1970, Simonal soube que um cheque emitido por ele para pagar flores havia sido devolvido por falta de fundos – o presente era para a sua mulher, Tereza. Fato que fez com que entrasse em contato com sua agência bancária. Para espanto do cantor, o gerente afirmou que Simonal não tinha em conta um cruzeiro (a moeda da época) sequer.

Surpresa maior ele teve ao ir até seu escritório em Copacabana. Chegando lá, segundo Cesar, uma série de documentos contábeis tinham desaparecido dos arquivos, além de títulos de ações comprados pelo cantor e notas promissórias com quantias elevadas a receber. Até mesmo por ter procuração para representá-lo, o contador Raphael Vilani foi considerado por Simonal o grande responsável pela bancarrota. Em um gesto inconsequente, o cantor aproveitou o prestígio conquistado entre o governo militar durante a Copa do Mundo no México e pediu a ajuda de agentes da ditadura para passar um corretivo em Vilani.

Ostensivamente repercutida em veículos de imprensa, a ação atroz fez com que Simonal ganhasse o status de delator e colaborador da ditadura. Para Cesar, alegações que não fazem sentido. “O cara incomodava muita gente por ser pernóstico, mas daí a ser enterrado artisticamente como dedo-duro… E o gogó?! E o artista que enlouquecia uma plateia de 50 mil pessoas no Maracanãzinho? Por que ninguém fala sobre o que se passava na cabeça do Simonal? Ele não era um Zé Ninguém. Todo o sucesso que conquistou aconteceu por causa de seu enorme talento artístico. Politicamente, ele não tinha a menor intenção de ser nada, não tinha posicionamento ideológico, não era um cara da alta cultura, era um garoto de origem humilde. Se estivéssemos conversando aqui e agora, você veria uma pessoa espirituosa, generosa e inteligente. Quando ele passou a ganhar muito dinheiro, chegou para mim e falou: ‘Bicho, nunca pude ter nem uma bicicleta e agora posso comprar um Camaro por mês’. Disse a ele: ‘Pois então, compre um Camaro, mas procure fazer investimentos para ter um futuro mais tranquilo’. O cara estava no auge e foi transformado num monstro.”

Nova parceria
Talvez por ter deixado em segundo plano a carreira de compositor, poucas das muitas produções e arranjos feitos por Cesar no exterior repercutem por aqui. Mas a lista de artistas para os quais ele fez trabalhos é extensa. Para citar alguns nomes, entre eles estão o maestro italiano Ettore Stratta, o saxofonista japonês Sadao Watanabe, o cantor americano Kevin Mahogany, a pianista e cantora Blossom Dearie, morta em 2009, o veterano cantor de jazz Freddy Cole, o violoncelista francês de ascendência chinesa Yo-Yo Ma, o guitarrista e cantor americano John Pizzarelli e três ícones do jazz made in USA: o baterista e cantor barítono Grady Tate, o cantor e compositor Al Jarreau e o contrabaixista Ron Carter. Frequentemente, Cesar também é convidado a compor trilhas sonoras para o cinema, caso dos documentários Sete Faces de uma Guerra, de Paulo Markun; Rio Negro, de Luciano Cury; e do longa-metragem Frontier Dreams (inédito no Brasil), do cineasta japonês Tetsuya Matsushima.

Em 2014, Cesar deu início a uma série de experiências musicais com o compositor Taylor McFerrin, filho do cantor Bobby McFerrin. Em entrevista concedida pelo músico para uma revista britânica, questionado sobre seus álbuns prediletos, Taylor revelou que tinha dois discos de cabeceira, Octeto de Cesar Camargo Mariano (1966) e São Paulo.Brasil (1978). A reportagem caiu nas mãos de Flávia, que a mostrou ao marido. Cesar entrou em contato para agradecer a menção. Surpreso com o telefonema, o compositor disse que gostaria de estar mais próximo do ídolo brasileiro, que não hesitou em convidá-lo a fazer uma visita naquela mesma tarde. Pouco depois, Cesar participou do mais recente álbum de Taylor, Early Riser, tocando piano elétrico na faixa Invisible/Visible. A amizade se fortaleceu e eles preparam, agora, um novo álbum em dueto de composição, que terá também arranjos e instrumentação de Cesar – e forte influência da música brasileira dos anos 1960 e 70.    

A propósito do comentário, questionado sobre como anda a reputação da música brasileira nos Estados Unidos, a opinião expressa por Cesar sugere a necessidade de valorizar essa tradição: “Estou com quase 72 anos e não preciso mais ter papas na língua. Há pouco incentivo para a música de qualidade. A Embaixada Brasileira coloca a moçada para tocar na Rua 46, no Central Park, ou no pátio do Lincoln Center, e tudo é embalado com a cara do carnaval que eles fazem no Little Brazil (bairro de Manhattan onde está localizada a Rua 46, que concentra imigrantes brasileiros). Claro, sempre tem muita capoeira, batucadas e mulatas sambando. Não tenho nada contra, mas é só isso que temos para mostrar? A música brasileira que os americanos amam há mais de 50 anos, com a explosão da bossa nova, e consideram uma das mais maravilhosas do mundo não tem nada a ver com isso. Já fui a shows que a meu lado estavam pessoas como o Wynton Marsalis e ele me perguntou: ‘Mas o que está acontecendo aqui? Vim aqui para ouvir música brasileira e isso é qualquer coisa menos música brasileira’. O pior é que sei que existem muitas coisas boas para serem mostradas, mas elas dificilmente têm espaço aqui.” Vindo de um artista que desfrutou longos períodos de êxito comercial, sem abrir mão da qualidade, como Cesar, o comentário merece reflexão e consideração.

Projetado pelo arquiteto luxemburguês François Valentiny, o Teatro L’Occitane é o palco principal do festival Música em Trancoso - Foto: Marcelo Pinheiro
Projetado pelo arquiteto luxemburguês François Valentiny, o Teatro L’Occitane é o palco principal do festival Música em Trancoso – Foto: Marcelo Pinheiro

*O jornalista viajou para Trancoso a convite do festival

MAIS:
Na ocasião em que seriam celebrados os 70 anos da cantora Elis Regina, publicamos entrevista exclusiva com Cesar, na qual ele fala sobre a relação artística entre ele e sua ex-mulher. Leia: http://old.brasileiros.com.br/r82Mm

Em 2012, o músico, que completava 50 anos de carreira, lançou sua autobiografia Solo – Memórias de Cesar Camargo Mariano. Conversamos com ele para falar sobre cinco álbuns essenciais de sua discografia. Leia: http://old.brasileiros.com.br/BNwOP

Cesar também foi destaque na coluna Quintessência com uma resenha sobre o primeiro álbum do Sambalanço Trio, o trio de samba-jazz que foi o primeiro conjunto liderado por ele. Leia: http://old.brasileiros.com.br/Xw5yl 



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