Quando se pensa em Lina Bo Bardi pouco se sabe além dos seus projetos paulistas, como o Museu de Arte de São Paulo (MASP), o SESC Pompeia, o Teatro Oficina e a Casa de Vidro. No entanto, ela é autora de importantes espaços e adaptações também em Salvador, como o Solar do Unhão, a Casa do Benin, a Casa do Olodum, o Teatro Gregório de Mattos, a reforma do Tea-tro Castro Alves, a Barroquinha e o projeto de restauração do centro histórico, que não ocorreu por inteiro, devido, sobretudo, a burocracias políticas.
Para celebrar os 50 anos da passagem da arquiteta pela Bahia, foram organizadas, em dezembro, comemorações, saraus, discussões e apresentações cênicas centradas na Faculdade de Arquitetura e no Solar do Unhão.
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Lina deixou São Paulo em 1958. Aterrissou em solo baiano a convite do reitor da recém-criada Universidade Federal da Bahia (UFBA), Edgar Santos. Foi dar aulas de Teoria da Arquitetura na Escola de Belas Artes da UFBA. Ficou por ativos seis anos, quando o regime militar apertou o cerco. Firme em seus ideais de esquerda, teve desavenças com as autoridades e a elite baiana, até ser convidada a retirar-se do Estado. As marcas de seu trabalho permanecem na Baía de Todos os Santos. Seu legado ficou nos prédios históricos e na valorização da arte popular do Nordeste.
Na Bahia, Lina descobriu a liberdade e mudou sua visão arquitetônica. É o que dizia. Os embates com uma elite conservadora e a decepção de 1964, porém, a mantiveram longe de Salvador ao longo de duas décadas, quando voltou a realizar trabalhos na cidade – e, mesmo assim, por insistência do governo estadual. Sua herança mais valiosa são as obras da primeira estadia na Bahia, quando interagiu com outros artistas e intelectuais, em um período excitante. Segundo o antropólogo e escritor Antonio Risério, aquele foi “o momento em que a Bahia passou a se apresentar para o Brasil”.
Achillina Bo, seu nome de registro, chegou ao Brasil em 1946, aos 32 anos. Graduada pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma, logo mudou-se para Milão, onde a noção de arquitetura moderna emergia. Lá, teve a oportunidade de desenvolver projetos em um ambiente menos rígido e engessado no que diz respeito à arquitetura, pois a ideia de restauração pura e simples nunca lhe interessou. Durante a Segunda Guerra Mundial, a escassez de projetos levou-a a colaborar como ilustradora, até que seu escritório foi atingido por um bombardeio nazista. Na época, Lina entrou para o Partido Comunista. A impossibilidade de permanecer na Itália fascista trouxe-a ao Brasil, já casada com Pietro Maria Bardi, jornalista, colecionador e articulador das artes italianas.
Ao chegar ao Rio de Janeiro, de navio, surpreendeu-se com a paisagem, a floresta, as casas amontoadas, as favelas e a luz dos trópicos. Lina e Pietro foram recebidos por Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Rocha Miranda e Burle Marx. E também por Assis Chateaubriand, dono do maior império da comunicação da época, que convidou Pietro para fundar e dirigir o primeiro museu de arte no país. Surgia assim o MASP, ainda instalado na sede dos Diários Associados.
Em 1951, Lina naturalizou-se brasileira e declarou: “Quando a gente nasce, não escolhe nada, nasce por acaso. Eu não nasci aqui, escolhi esse lugar para viver. Por isso, o Brasil é meu país duas vezes, é minha Pátria de Escolha”. Naquele mesmo ano, ela projetou a Casa de Vidro, a primeira residência do bairro do Morumbi, onde o casal passou a morar, cercado de Mata Atlântica. Lina seguiu atuando como arquiteta e apresentou o arrojado projeto do prédio do MASP, na Avenida Paulista. Logo depois, foi convidada para dar aulas na Bahia.
Desembarcou em uma Salvador plena de vigor artístico, marcada pela atuação do reitor Edgar Santos, um dos maiores responsáveis pela revolução cultural que sacudiu a Bahia no final dos anos 1950 e início dos 1960. Por iniciativa dele, a cidade, ainda provinciana, recebeu um grupo de intelectuais e artistas estrangeiros convidados para dar aulas na UFBA. Além de Lina Bo Bardi, também vieram o músico alemão Hans-Joachin Koellreutter, a bailarina polonesa Yanka Rudzka, o filósofo português Agostinho da Silva, o fotógrafo e antropólogo francês Pierre Verger, o músico suíço Walter Smetak, entre outros. A eles se aliaram os artistas e pensadores modernos de Salvador: Mário Cravo, Milton Santos, Walter da Silveira, Diógenes Rebouças, Vivaldo da Costa Lima. Esse convívio seria fundamental, mais tarde, no surgimento de artistas do porte de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Glauber Rocha, Waly Salomão, João Ubaldo Ribeiro. De acordo com Risério, a palavra de ordem era “derrotar a província na própria província”.
Envolvida nessa intensa vida cultural, Lina elaborou uma proposta mais ampla de arquitetura, que considerasse o contexto, o programa, e não apenas o projeto. Segundo o professor de arquitetura da UFBA, Paulo Ormindo, “na Bahia ela aprendeu a não projetar”. Lá, Lina libertou-se do esquadro e das réguas, dos moldes da arquitetura moderna europeia, de linhas retas e projetos essencialmente limpos. Na Bahia, aproximou-se do que mais acreditava: uma via de mão dupla em que se encontram a arte de vanguarda com a cultura popular. Costumava dizer: “Um país cuja base é a cultura do povo é um país de enormes possibilidades”.
Em Salvador, além de dar aulas, fez cenografias e produziu peças teatrais, promoveu exposições de artes plásticas, dirigiu o Museu de Arte Moderna, projetou, construiu e restaurou. Seus ideais arquitetônicos preservavam as construções coloniais – e todo o patrimônio histórico -, sem transformá-las em algo intocável. Tornou-as espaços públicos, abertos à interação. Sua obra, enfim, visava o convívio humano, o lado social e urbanístico da arquitetura.
Embora estivesse entusiasmada com a Bahia, Lina mantinha uma maneira pouco tropical no estilo de se trajar e pentear: vestia-se sempre de preto e mantinha madeixas que encobriam o olho esquerdo. Além disso, repudiava a tendência local de construir história, omitindo a realidade, criando mitos e lendas. Foram alguns dos motivos que causaram repúdio. Sua amiga baiana Arlete Soares lembra: “Ela se referia a essa gente que a destratou e a escorraçou como ‘os brancos da Bahia’”. De volta à São Paulo, Lina se aquietou politicamente.
Morreu em março de 1992, em sua Casa de Vidro, ainda trabalhando. Como queria.
Muitos de seus projetos construídos na Bahia não estão mais em pé, seja por descaso ou reformas. Também por problemas técnicos ou tendência à degradação natural. A explicação talvez esteja no fato de que o que vinha em primeiro lugar era sempre o programa e não o projeto, como bem explica o arquiteto e ex-assistente de Lina, Marcelo Ferraz: “O que predominava em seu trabalho de forma alguma era o discurso da estrutura, da tecnologia, da forma e do material. Tampouco o do tempo. Mas sim o contexto em que estava envolvido e o fluxo que movimentaria”.
Apesar de tantos problemas de conservação, pode-se ver seu legado em obras importantes, como a readaptação do Solar do Unhão, onde funciona o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), que comemora meio século de vida. O complexo colonial, de grandes janelas abertas para o mar da Baía de Todos os Santos, tem um parque de esculturas à beira-mar. A capela se viu transformada em espaço cênico. Há, ainda, uma grande sala de exposições no casarão central, com uma escada helicoidal moderna que, ao mesmo tempo que contrasta com o envolto colonial, com ele se harmoniza.
Uma visionária
A grande construção resume parte da história de Salvador. Segundo a atual diretora do MAM-BA, Solange Farkas, o lugar foi uma espécie de entreposto de escravos: “Fazia parte da chamada rota do Atlântico Negro, que passava por Benin, Cuba e Senegal. Tinha dois centros no Brasil, um em Salvador e outro no Maranhão”. A primeira construção no terreno da Ribeira do Gabriel, como era chamado o local, é do século XVII, quando a propriedade passou às mãos do desembargador Pedro de Unhão Castelo Branco, que legou o nome usado até os dias de hoje. A capela barroca, o chafariz e os painéis de azulejo português que ainda ornamentam a entrada do Solar foram erguidos mais tarde, no final do século XVII e início do XVIII. Em 1820, Visconde da Torre de Garcia d’Ávila, herdeiro da propriedade, arrendou-a para um empreendedor suíço, que transferiu para o Solar sua fábrica de rapé, cigarros e tabaco. A pequena indústria funcionaria até 1926. Para escoar a produção, d’Ávila trouxe os trilhos de trem, que tamém serviam para receber os escravos em troca.
Em 1927, o Unhão passou a servir como depósito de material inflamável e serraria. Durante a Segunda Guerra, quando fez as vezes de quartel de fuzileiros navais, o conjunto foi tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Só em 1959, o Solar passou a sofrer intervenções de Lina, autorizada a transferir o MAM – que já dirigia – para a histórica construção.
Enquanto o espaço era restaurado, o MAM permanecia funcionando no Teatro Castro Alves, onde ficou por quatro anos, como diretora do museu, e responsável por trazer e promover mais de 60 exposições ineditas na Bahia.
Lina Bo partiu dos escombros para erguer um espaço propício para o que vislumbrava: não apenas um museu de arte moderna, mas uma usina de criação artística. Na restauração, preservaram-se os galpões. Eles se adequavam à criação do museu-escola, idealizado pela arquiteta para interagir, ocupar e recriar o espaço. Foram destruídas divisórias e escadas para a criação de pavimentos amplos. Solange Farkas analisa: “A reforma de Lina foi genial, pois ela tinha essa consciência de arquitetura com o entorno, preservando o projeto original da construção e valorizando a sua história, seus períodos. Era uma visionária e por causa desse seu constante confronto do erudito com o popular, acabou por abalar a burguesia da época”.
A ideia original de Lina era instalar ali dois museus. O MAM, com a orientação de seguir as tendências internacionais, trazendo para Salvador grandes artistas contemporâneos; e outro que dialogasse com este e fosse um polo de produção e apresentação da arte popular. Seria o Museu de Arte Popular (MAP). Mais uma vez, é Solange Farkas quem explica: “Lina queria instalar um centro de excelência, que articulasse o design industrial e o popular, criando residências para artistas, como alguns modelos europeus”.
No dia 3 de novembro de 1963, o novo MAM-BA e o MAP foram inaugurados com duas exposições: Artistas do Nordeste e Civilização do Nordeste, esta segunda, uma mostra do caráter antropológico que Lina gostaria de dar ao museu, com objetos cotidianos e artigos da cultura popular, tanto negra quanto indígena. No entanto, o MAP não durou muito. Quatro meses depois veio o golpe militar. O Exército ocupou o Solar e Lina se viu demitida. Por fim, o MAP foi desativado. Restou o MAM-BA, que logo ficou em desuso e abandonado. Passou por novas e reformas até voltar à ativa, em 1993. Embora o Solar do Unhão sempre tenha baixa circulação da população local – por conta de seu difícil acesso -, é uma referência arquitetônica da cidade de Salvador e do Brasil.
Desde 2008, o museu vem passando por mais reformas, coordenadas pelo arquiteto André Vainer, que trabalhou diretamente com Lina. Visam retomar algumas de suas estruturas originais perdidas. A proposta é, sempre, resgatar a ideia central da arquiteta de valorizar o contexto. Na visão de Lina Bo Bardi, uma sala de exposições no Solar do Unhão não poderia tentar reproduzir a realidade de qualquer sala de um museu europeu, ou em qualquer outro canto do mundo. Ela não via sentido nessa transferência pura e simples. Propunha novas formas de expor, subvertendo padrões e provocando o artista a dialogar com o ambiente em que apresenta suas obras.
É preciso reconhecer que os museus de Lina Bo Bardi apresentam uma unidade em sua proposta. Consideram a vida que se faz a sua volta, seja na Avenida Paulista, ou no bairro da Pompeia, em São Paulo, e, ainda, nos pátios e terraços do MAM de Salvador. Ela certamente gostaria de ver como o museu que criou na Bahia vem passando por um momento dinâmico. Tem agora um alto fluxo de exposições de peso, cinema e apresenta concorridos shows de jazz aos sábados. Está conseguindo, enfim, atrair mais público para ocupar seus amplos espaços.
Na semana de homenagens à Lina Bo Bardi, o grupo de produção cultural Riverão ocupou a capela para encenar o espetáculo Um Ebó para Lina Bo, nos moldes da apropriação do espaço que a arquiteta propunha.
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