Quadrafônico. O recurso tecnológico, que nomeava o método de gravação sonora em quatro canais independentes, espécie de avô do efeito Surround, foi estampado com tamanho destaque na capa do álbum de estreia da dupla Alceu Valença & Geraldo Azevedo que muitos acreditam até hoje que se trata do título do disco. Lançado em 1972 pelo selo Copacabana, com arranjos do maestro tropicalista Rogério Duprat, o álbum serviu de carta de intenções para a dupla de cantores e compositores pernambucanos.
Expoentes do rebuliço estético deflagrado pela geração de artistas nordestinos surgida na nebulosa primeira metade dos anos 1970, tempos de ditadura Médici, tortura e mordaça da censura, pós AI-5, Alceu e Geraldo tinham muito a dizer e decibéis de sobra para reconduzir com modernidade o legado de gênios como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Dona Selma do Coco e Lia de Itamaracá.
Contemporâneos de compositores e intérpretes inventivos, como Zé Ramalho, Lula Côrtes, Amelinha, Belchior, Fagner, Ednardo, Cátia de França, Marconi Notaro e Daminhão Experiênça, e de bandas que também fundiam tradições regionais com novas sonoridades, como Ave Sangria e Flavíola e o Bando do Sol, Alceu e Geraldo empreenderam trajetórias impregnadas de grandes sacadas. Transavam total, parafraseando a prosódia desbundada daqueles dias.
Em 1974, Alceu debutou solo na gravadora Som Livre, com o álbum Molhado de Suor. Contendo belas composições, como Noite Branca, Papagaio do Futuro e Dente de Ocidente, o LP reiterou a poética transgressora de Alceu, signatária das proposições modernas do rock – paixão de adolescência do pernambucano – e reverente à ancestralidade atemporal do repente nordestino.
Dois anos mais tarde, Alceu lançou o inusitado sucessor de Molhado de Suor, o álbum Vivo!. Como sugere o título, o bolachão foi registrado ao vivo, algo raro na época, e retrata uma espécie de tornado sonoro, a turnê Vou Danado Pra Catende, que esteve em cartaz, por dois meses, no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro. Ao lado de Zé Ramalho (violão, ukulelê), Dicinho (contrabaixo), Zé da Flauta, Paulo “Lampião” Rafael (guitarra) e Israel Semente Proibida (bateria) – os dois últimos egressos do Ave Sangria –, Alceu promoveu uma verdadeira catarse no palco. Na resenha do lançamento para o Jornal da Música, o crítico Aloysio Reis cravou: “O show de Alceu teve o clima para fazer desse disco o melhor trabalho ao vivo gravado no Brasil. Até para dizer ‘não quero mais brincar de sol e chuva com você’ Alceu soube manter a seca nordestina na alma: sem frescuras, sem estrelismo”. Em um ano sucedido pela barbárie da morte do jornalista Vladimir Herzog, fazendo uso de metáforas, em Vivo! Alceu cutucou a ferida aberta da tortura em Pontos Cardeais, nos versos “Não quero esse dedo no rosto de Pedro/ Não quero pra Paulo o peso da cruz /Não quero essa boca jorrando pra dentro /Palavras e gritos e berros e luz /E línguas e lábios /E dentes sangrando /No tapa, no berro /No braço e no muro”.
Lançado no final de 1977 e composto de oito faixas, Espelho Cristalino, o sucessor de Vivo!, é menos energético, mas não menos inspirado, com grandes momentos, como a faixa título, Agalopado, Eu Sou Você e A Dança das Borboletas, parceria com Zé Ramalho. Na edição de abril de 1978 da revista Pop, o álbum foi comentado por Alceu. “Consegui o que queria; um disco rural bem urbanizado, uma coisa elétrica sem curto-circuito. É uma continuação dos meus LPs Molhado de Suor e Vivo!.” Na matéria, ele também repercutiu a atmosfera teatral e anárquica de suas apresentações. “Nunca aceitei sentar num banquinho de frente para meu público. Essa é uma transa muito contida, medrosa.” Insolente, ele conclui seu raciocínio provocando o que considerava uma assepsia reinante no showbiz local. “No Brasil, as pessoas são pouco inventivas com relação à transação de palco. Precisamos de bons produtores, inteligentes e versáteis. Precisamos, com urgência, porque, afinal, a MPB não é uma festa do Ibrahim Sued.”
Para quem desconhece essa fase inaugural e efervescente de Alceu Valença – ou para quem se sente saudoso desses títulos –, a boa-nova é que, por iniciativa do selo carioca Discobertas, do produtor e pesquisador Marcelo Fróes, os três registros voltam agora às lojas do País em versões digitais remasterizadas, com reproduções fidedignas de suas artes gráficas. Intitulada Alceu Valença Anos 70, a caixa traz também um quarto volume, de raridades, composto de oito faixas e dois medleys. Da trilha sonora de A Noite do Espantalho (1974), composta por Sérgio Ricardo, diretor do longa-metragem protagonizado por Alceu, ele interpreta Canção do Espantalho e História que se Conta. Da trilha dos folhetins O Espigão e Saramandaia vêm, respectivamente, os registos de Retrato 3×4 e a releitura de Alceu para Sabiá, o clássico de Luiz Gonzaga e Zé Dantas. A compilação também reúne gravações lançadas exclusivamente em compactos, como Pitomba, Pitombeira e O Homem da Meia-Noite.
Para os fãs que pretendem comprar a caixa da Discobertas, recomendado é também adquirir o raro Saudade de Pernambuco. Lançado no Brasil em 1998, como brinde para os leitores do Jornal da Tarde, o álbum foi registrado em Paris, em 1979, durante um “autoexílio” do artista na França. Composto de dez faixas inéditas, e incompreensivelmente engavetado por tanto tempo, Saudade de Pernambuco é mais um título obrigatório na discografia do pernambucano.
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