Alegria, Alegria é o nome da canção de Caetano Veloso, lançada em 1967, que representa um marco simbólico do movimento tropicalista brasileiro. A narrativa desenvolve-se em torno de um único gesto: seguir, andar, caminhar: “Caminhando contra o vento sem lenço nem documento”. Todo o resto se passa na transformação gerada pela relação entre o herói e sua paisagem. Paisagem que sinaliza demandas ao modo de interpelações, que aceleram a passagem do tempo, produzindo um sentimento de atordoamento, como o de uma câmera que distribui o foco tão rapidamente que temos que “montar” o filme em nossa cabeça: espaçonaves, guerrilhas, bomba e Brigite Bardot, uma canção consola e Coca-Cola na escola. Cruzamento de referências opostas, tensas e que não se resolvem nem evoluem para uma transformação do herói: Brasil sem fome, sem fuzis, sem livros, sem telefone. Nessa lista de ausências algumas denunciam carências reais, outras aspirações ideais. Essa contradição de atributos alinhados ao modo de uma paisagem que nosso herói atravessa produz uma suspensão do juízo, que produz uma indeterminação do discurso. Ironia crítica ou paródia involuntária?
Esse efeito de dúvida contamina o título, Alegria, Alegria: será ele uma adesão ao imperativo ascendente da ditadura civil-militar, que nos incitava a expressar compulsoriamente a felicidade, nos moldes do “Brasil, ame-o, ou deixe-o”, ou uma denúncia do caráter artificial e farsesco da alegria assim produzida? Caso contrário por que da reiteração? Não basta que a música se chame Alegria e ponto. Como na expressão sintomática “eu mesmo” ou “eu particularmente”, que sugerem a existência de um eu que não fosse mesmo, ou que não incidisse particularmente, a repetição denuncia a incerteza da primeira enunciação, que precisa ser sintomaticamente confirmada.
Dúvida semelhante percorreu a interpretação da canção de Gilberto Gil Domingo no Parque, também uma saga, mas de estrutura inversa à de Caetano, pois nela o herói vai acumulando decisões e encontros, de construção, de dança, de brincadeiras, que terminam em uma espécie de atordoamento. Um é o herói errático que vai de lá para cá, transformando-se pelos ganhos e decisões, enquanto o outro, caso de Alegria, Alegria, o herói transforma-se pela perda da identidade, sem lenço nem documento, sem nada nos bolsos nem nas mãos. Temos aqui dois modelos para a experiência da alegria, baseados, respectivamente, na alegria de despojamento, da liberdade dada pela despossessão de si, de nossos predicados, posses e dependências.
Na recente experiência olímpica brasileira pudemos acompanhar a combinação e o confronto entre essas duas figuras da alegria. De um lado o esforço continuado, da luta contra os limites e do ganho acumulado de experiências que formaram os méritos do canoísta Isaquias ou da judoca Rafaela Silva. Nela temos a alegria que consagra uma realização determinada, fruto de trabalho e dedicação, sendo a vitória um acréscimo sentido como justo. Mas, se olhamos para a alegria do líbero Serginho ou para a declaração de Diego Hipólito, vemos que ela está carregada da realização pelo trabalho, mas, além disso, ela contém um traço de libertação, como um peso que se deixa cair. No primeiro caso, é a alegria, combinada com tristeza de quem se aposenta; no segundo, é alegria associada com a ultrapassagem de fracassos que adornavam as expectativas não cumpridas nas Olimpíadas anteriores. Diego e Serginho estão caminhando contra o vento, sem lenço nem documento, diante de uma espécie de novo início em suas vidas, o que explica a tristeza da fase anterior da qual se despedem. Isaquias e Rafaela, assim como as iatistas Martine e Kahena estão construindo um futuro, criando promessas, comprometendo-se com apostas, ao passo que Hipólito e Serginho, assim como o boxeador Robson Conceição e o saltador Thiago Braz encontram a alegria da graça, do inesperado, daquilo que excede nossa capacidade de sonhar. Obviamente tanto Domingo no Parque quanto Alegria, Alegria exigem trabalho e ambos demandam o favor das contingências, mas a combinação entre eles se faz cada vez mais necessária para extrair a força política e transformativa que se espera desse afeto.
Muitos têm medo da alegria porque ela nos leva ao ufanismo, ao nacionalismo e ao desvio do olhar diante da realidade, e seus problemas. Outros tantos superestimam a alegria porque ela nos leva ao otimismo, a confiar no espírito coletivo de união entre as pessoas como um elemento capaz de superar conflitos e assim nos orientar para o enfrentamento das dificuldades da realidade. Contudo, assim como a tristeza não é depressão, a alegria não é mania. O temor da alienação na alegria baseia-se na suposição de que a alegria preenche, e com isso satisfaz, e a satisfação neutraliza o sofrimento, que é por si a fonte e a origem do desejo de transformação. Mas o que Caetano Veloso nos lembra é que a alegria pode advir do vazio, desde que se esteja só, mas não solitário. Por outro lado, o engodo de que a alegria por si só transforma advém do fato da ilusão de que se nos sentimos bem tudo está bem, se estamos contentes isso altera por si só a realidade, se estamos em conforto isso basta. Contra isso lembremos que Gilberto Gil nos adverte que a alegria é encontro, e o encontro é contingente, e como toda contingência trará agora o bom encontro, mas amanhã o mau encontro. Portanto, a alegria torna-se malsã, tanto em um caso como em outro, quando nos leva a desconhecer sua própria temporalidade ou sua força de compartilhamento.
Aqueles que imaginam que Temer sai ganhando se partilhamos a alegria olímpica deveriam experimentar gratidão, uma forma de alegria, pelo fato de que a Olimpíada aconteceu por graça de Dilma. Aqueles que se alegram com uma política pública continuada por várias gestões, e que tornou a Olimpíada possível, se entristecem com o fato de que isso foi possível também graças a conluios corruptos, que agora são revelados. Ou seja, o uso político da alegria só é realmente perigoso se ele se faz acompanhar da dissolução das contradições. Talvez exista outra forma de alegria, nem alienante nem temerosa. Talvez ela se mostre nas guitarras dissonantes que abrem Alegria, Alegria.
* Christian Ingo Lenz Dunker é professor titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP
Deixe um comentário