Sob o pseudônimo Elena Ferrante, uma autora – que assumiremos aqui ser mulher – vem publicando algumas das obras mais comentadas da literatura contemporânea. Cercada de inúmeras especulações, sua identidade permanece misteriosa desde sua estreia literária, há 25 anos. A hipótese hoje mais aceita é aquela que conecta a escritora a Anita Raja, tradutora italiana de ascendência alemã.
Após a entusiasmada recepção da Tetralogia Napolitana, composta dos romances A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida, o interesse pela escrita de Ferrante cresceu ao redor do mundo e seus livros anteriores também foram traduzidos. Seu primeiro romance, Um Amor Incômodo (L’Amore Molesto), acaba de ser lançado no Brasil pela editora Intrínseca.
Narrado em primeira pessoa, Um Amor Incômodo retrata uma complicada relação entre mãe e filha sob a perspectiva da filha Delia, uma mulher de 45 anos. Começa com a seguinte frase: “Minha mãe se afogou na noite de 23 de maio, dia do meu aniversário”.
Após a perda, Delia retorna a Nápoles, cidade em que nasceu – um cenário que Ferrante retomaria em todos os seus livros. Ao voltar para o bairro em que passou parte importante de sua infância, volta também para o dialeto napolitano, o idioma materno. Delia é tragada pelo passado enquanto tenta descobrir o que aconteceu com a mãe, Amália, que morreu em circunstâncias misteriosas.
Ferrante dedica o romance à própria mãe. Em um trecho de Frantumaglia, coletânea de cartas, ensaios e entrevistas ainda inédita por aqui, a autora se dedica a pensar na imagem da mãe e faz um gancho com a psicanálise. Conta que o primeiro contato que teve com a obra de Freud foi aos dezesseis anos e que ficou muito impressionada: “Eu amo Freud”, afirma. Na sequência, menciona Melanie Klein e Luce Irigaray, pensadora belga cujos trabalhos transitam entre filosofia, linguística e psicanálise, e conta que o título L’Amore Molesto faz referência a um texto de Freud, Sexualidade Feminina (1931) – mais especificamente à fase que antecede o Édipo, o corte que um terceiro elemento proporcionaria na relação mãe e bebê, antes simbiótica, vivenciada como uma espécie de indissociação. Nesse momento, o pai (ou quem quer que desempenhe essa função) seria para a menina apenas um “rival incômodo”.
Para a psicanálise, passamos a vida nos equilibrando entre duas forças opostas que, no entanto, não se excluem: o desejo e o temor de nos misturar e perder no outro. Enquanto buscamos autonomia e identidade, também somos atraídos pela ideia de retorno a algo que seja anterior ao eu.
Embora a clareza da escrita de Ferrante nos dê a impressão de que a leitura fluirá sem dificuldades, é com nossas próprias dificuldades que vamos nos confrontar. As histórias de Ferrante parecem despertar em seus leitores – especialmente nas mulheres – uma profunda identificação.
Dissociar-se da mãe, retornar a ela. Essa ambivalência nos constitui e movimenta; haver-se com ela é trabalho de uma vida. Na tradução brasileira, o artigo indefinido um no título me parece fora de lugar. Afinal, Ferrante está nos dizendo que não se trata de um amor incômodo qualquer, mas do amor primeiro, originário (entre mãe e filha).
Freud dizia que, durante o percurso analítico, estaríamos nos dispondo a acordar os demônios que habitam nosso subsolo, uma jornada sem garantias. Do mesmo modo, os livros de Ferrante nos confrontam com algo originário do feminino e, embora encontremos prazer em sua companhia, é um prazer ambivalente. Para Kafka, um bom livro é aquele que funciona como um machado capaz de partir os mares gelados dentro de nossa alma. Não poderia pensar em uma imagem melhor para ilustrar a aventura que é ler Elena Ferrante.
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