Ao mestre com carinho

“Eu não sei o que esse povo vê em mim.” Quem não conhece o homem ou a história do mestre Dominguinhos pode pensar que a frase é colocada por ele à guisa de provocação. A simplicidade tímida e a ingenuidade severina fluem naturalmente no sotaque desse pernambucano do agreste que completa 70 anos com uma obra admirável. São mais de 500 composições genuinamente brasileiras e, ao mesmo tempo, universais, além de duas mil participações em discos de parceiros musicais de ontem e de hoje. Ari Barroso, Elba Ramalho, Caetano Veloso, Gal Costa, Anastácia, Gilberto Gil, Alceu Valença, Geraldinho Azevedo, Hermeto Paschoal, João Donato, Toninho Horta, Altamiro Carrilho, Nana Caymmi, Zé Ramalho, Fagner e o outro rei, Roberto Carlos. Eles estiveram a seu lado antes mesmo de ele virar estrela de filme. O Milagre de Santa Luzia, de Sergio Roizenblit, faz uma viagem pelo Brasil, conduzida por Dominguinhos, principal sanfoneiro vivo do País. Quando lançado no 41o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (2008), o documentário foi ovacionado pelo público.

E o músico continua inspirando a sétima arte. Idealizado pela cantora Mariana Aydar e pelos músicos Duani e Eduardo Nazarian, o documentário Dominguinhos Volta e Meia está sendo preparado pela produtora bigBonsai, com direção de Felipe Briso. O filme vai retratar vida e obra do artista por meio de encontros com grandes nomes da música brasileira, representantes de diferentes momentos de sua carreira. João Donato, Hermeto Paschoal, Gilberto Gil e Lenine já gravaram com ele em estúdio. O lançamento está previsto para o primeiro semestre de 2012.
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Apesar de tudo isso, Dominguinhos diz não perceber o que o povo vê nele. No entanto, o Rei do Baião enxergou longe. E muito. Foi Luiz Gonzaga, já famoso no Rio de Janeiro, em 1954, quem lhe recebeu junto com o pai Chicão e os dois irmãos, Valdo e Moraes, quando chegaram de Pernambuco. A viagem de pau de arara até o Rio durou 11 dias. “O caminhão quebrava muito”, lembra Dominguinhos. O objetivo era apenas um: tentar um reencontro com o conterrâneo que tinha prometido ajuda e fazia sucesso nas principais rádios do País, além de ser cortejado pelas gravadoras da época. O presidente Getulio Vargas tinha cometido suicídio um mês antes, e a conturbação política se misturava com o futuro incerto de Dominguinhos na cidade grande e então capital do País.

“Será que ele se lembra da gente, pai?”, indagava ansioso o menino de 13 anos. Ele recorda uma festa em Olinda na qual “seu” Luiz era a atração principal. Gonzagão ficou impressionado com aquele trio de garotos de Garanhuns que tocava do lado de fora da casa de show. “Ele deu um punhado de dinheiro pra gente e um endereço”, diz, lembrando como se fosse hoje a frase dita pelo Rei do Baião: “Se forem um dia por lá, me procurem”.

Quatro anos mais tarde, a família lá estava. “Ele morava no Meyer, em uma mansão que não tinha mais tamanho”, conta o mestre. Ele não só foi muito bem recebido como também mudou de nome: de Neném do Acordeon passou para Dominguinhos. “Isso sim é nome artístico”, definiu Gonzagão, que ainda deu o melhor presente para a família: uma sanfona de 80 baixos (teclas) para o pai do mestre. “Isso é para vocês começarem a vida por aqui”, sentenciou. Desse dia em diante, o Rei do Baião teve de aguentar José Domingos de Moraes, ou melhor, Dominguinhos em sua casa todo o santo dia. “Era festa toda semana, com o pessoal de Garanhuns, Caruaru e outras capitais do Nordeste tentando se arrumar e ganhar uns trocados”, recorda.

O primeiro sucesso teria de ser mesmo ao lado do seu padrinho. Foi a música Forró no Escuro, um baião que Gonzaga fez nos estúdios da gravadora RCA e que se tornou um dos seus maiores sucessos de público e de venda. “O Candeiro se apagou, o sanfoneiro cochilou, a sanfona não parou e o forró continuou. Mas meu amor não vai embora, fique mais um bocadinho, se você for, seu nego chora, vamos dançar mais um tiquinho, quando eu entro numa farra, num quero sair mais não, vou inté quebrar a barra e pegar o sol com a mão.” A sua preferida, entretanto, foi feita com a primeira mulher, a pernambucana Anastácia, cantora e compositora como ele: Eu Só Quero um Xodó. Mais tarde, essa canção foi eternizada na interpretação de Gilberto Gil. “Eu ‘tava’ no meio da rua assoviando a melodia e ela colocou a letra.” Eles se encontraram no Rio no programa de Luiz Gonzaga na extinta TV Continental.

Depois do primeiro sucesso, Luiz Gonzaga chamou a imprensa carioca e decretou, revogando todas as disposições que por ventura houvesse em contrário: “Olha pessoal, esse cabra da peste é meu herdeiro artístico”. Estava nascendo o mestre, com direito a uma semana de páginas nos jornais recheadas de histórias. Logo na primeira gravação, veio o maior presente: uma sanfona de 120 baixos. Para quem tinha começado com um pandeiro ao lado pai, esse sim, o sanfoneiro da família, foi uma lembrança que ainda mareja seus olhos. E aí se foi Dominguinhos com o Rei do Baião viajar e cantar por esse País, se sentindo feliz e guardando as recordações por onde passou. Primeiro em uma kombi, depois em uma rural, ele mesmo dirigindo. E, quando chegava ao interior, a caçamba de um caminhão funcionava como palco improvisado para quem quisesse assistir ao autêntico forró pé de serra.

E foi justamente dirigindo sozinho em seu primeiro fusca, rumo a Recife para um encontro com Gonzagão que Dominguinhos teve outro momento marcante em sua vida: o Festival da Tupi, em 1979. Tarde da noite, ele parou o carro em um botequim em Jequié (BA) e, meio sem jeito, pediu ao dono para sintonizar o canal. “É que tem um festival de música”, justificou, baixinho. No bar, havia quatro ou cinco mesas com grupos de pessoas que nunca tinham visto aquele rapaz de 39 anos. Foi ali que ele viu o anúncio dos jurados. A música Quem me Levará sou Eu, de autoria dele, letra de Manduka – pai do poeta paraense Thiago de Mello – e interpretada pelo cearense Raimundo Fagner, era a vencedora do último grande festival da televisão brasileira.

A mais de mil quilômetros dali, Gonzagão, que fazia show em Olinda, anunciava e comemorava a vitória do seu herdeiro. Enquanto isso, Dominguinhos, sem dizer quem era, preferia, em sua simplicidade tímida, pedir um jantar para pegar a estrada. “Tava com fome. Pedi uma macaxeira com carne de sol e segui para Recife.” E lá se foi o maior símbolo da nossa cultura musical nordestina, vencedor anônimo com sabedoria só encontrada nos velhos mestres. Era ele sim. Ninguém notou, mas era ele sim.

Do jazz ao Jackson do Pandeiro
Ou melhor, de Jackson do Pandeiro ao jazz, pois foi nessa ordem que Dominguinhos teve suas influências musicais. “Eu só ponho be bop no meu samba quando Tio Sam tocar o tamborim, quando ele pegar no pandeiro e na zambumba, quando ele aprender que o samba não é rumba“, diz a letra de um dos maiores sucessos do mestre paraibano. “Toquei muito com o Jackson. Era um gênio”, diz Dominguinhos, que, antes de apontar seus herdeiros, revela o gosto musical pelo jazz, que, segundo ele, tem uma afinidade muito grande com o forró.

Dominguinhos já foi convidado para tocar em muitos festivais de jazz e recorda do francês Richard Galliano, com quem participou do filme Paraíba, Meu Amor, sobre forró, e do americano Art Van Damme, primeiro a introduzir o acordeão no jazz. Os herdeiros do mestre da sanfona estão espalhados pelo mundo e pelos sertões, mas quem ele aponta em primeiro lugar é a filha que tem com Guadalupe, sua companheira por mais de 30 anos: Liv Moraes. “O Dominguinhos é fã do cineasta Ingmar Bergman que tinha, entre suas musas, a atriz norueguesa Liv Ullmann”, explica Guadalupe sobre a inspiração para o nome da filha, de quem é empresária. “A garota é muito boa e vai explodir”, aposta Dominguinhos, sem deixar de fora o paraibano Flavinho Lima, o alagoano “arretado” Gennaro, o cearense Chico Justino e os pernambucanos Targino Gondim e Cezinha do Arcodeon.

Dominguinhos é assim, como na música de Jackson do Pandeiro, que mistura “Miami com Copacabana, chiclete com banana, para o samba ficar assim, uma grande confusão, pois é o samba rock meu irmão“. “Amo este País”, declara ele, que foi um dos artistas escolhidos para representar o Brasil, em 2003, em Cannes (França), no maior evento mundial da indústria fonográfica. E colocou “o Tio Sam na frigideira junto com uma batucada brasileira“.

Baião de dois
Vinte e cinco anos de sintonia, afinidade e muito som
por Arismar do Espírito Santo
As histórias de estradas e de palcos com Dominguinhos, mestre da simplicidade e da criatividade, são inúmeras. Afinal são mais de 25 anos de amizade, parceria, companheirismo e muito som juntos. Dominguinhos, para mim, é a combinação de talento, criatividade, bom gosto, doçura e inspiração, simbiose que se traduz sempre em lindas harmonias, delicadas melodias e inusitados improvisos. Um privilégio participar com ele de inúmeros concertos, ter viajado com o Projeto Asa Branca por todo o Brasil, os vários “São Joãos”, estar em seus CDs e ter contado com seu som maravilhoso em meus CDs. Estivemos juntos no Encontro de Acordeons, projeto que tive o prazer de dirigir. Do teatro do SESC Pinheiros, com certeza, ainda ecoam os acordes dessas três noites (dias 3, 4 e 5 de junho) de som, muito som, sintonia e afinidades.

No sábado, 11 de junho, depois de pegar meu jazz bass, velho de guerra, segui em direção ao Rio de Janeiro para a gravação de um documentário de Dominguinhos, idealizado por Mariana Aydar, com ele, Heraldo do Monte, Robertinho Silva e Gilberto Gil. Em Congonhas, atrasos por causa do vulcão (não é que essa moda chegou por aqui?!) e muita conversa com Heraldo e lembranças de tempos que ficarão para sempre na memória sensível de todos que estiveram lá. Ao chegarmos ao estúdio de Gilberto Gil, após uma longa jornada, só alegria: Dominguinhos puxou Tenho Sedee Eu Só Quero um Xodó, e Gil Lamento Sertanejoe 13 de Dezembro(Gil e Gonzagão). Foram duas horas de puro som, amizade e improviso!
Feliz o homem que improvisa!
Vidão!


Só faltou o poeta Vinicius de Moraes

De lamento mesmo, Dominguinhos só deixa revelar uma coisa. Isso depois de muita insistência e com exclusividade. “Não me lembro de ter contado isso.” Aconteceu na década de 1970, quando convivia e tocava com a nata da MPB e sempre cruzava com o músico e poeta Vinicius de Moraes na sede da gravadora Polygram. “Ele chegou para mim e disse: ‘Neném, vamos fazer alguma coisa juntos’”. Dominguinhos subiu correndo as escadas para contar a novidade para o todo poderoso diretor artístico da Polygram, Roberto Menescal, com quem travou o seguinte diálogo: “Menescal, véio, tô tão feliz”. “Foi? Que houve?”, teria perguntado o diretor, sem olhar para o mestre. “É que o Vinicius levantou a hipótese de fazermos uma música juntos”, disse com alegria, para ouvir a resposta de bate pronto. “Esquece. O Vinicius faz música com qualquer um”, disse Menescal.

Em 1979, Dominguinhos já era um popstar da música brasileira, tocando no Rio Centro ao lado da nata da MPB, como o próprio Vinicius, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Clara Nunes, Maria Bethânia, entre outros. “A gente fazia show toda semana”, diz ele, se lembrando do episódio da bomba que explodiu “no lugar errado” e que agitou o cenário político na época do governo militar do presidente João Figueiredo. Nos anos de chumbo da ditadura, conta que não foi muito incomodado. “Os meus amigos, a maioria teve de sair, mas não mexeram comigo não”, afirma, relembrando que soube da prisão de Caetano Veloso por um vizinho, então cadete do exército. “Neném, sabe aquele amigo teu? Tá preso no meu quartel e cortaram o cabelo dele todo.”

Das torturas da ditadura, o sanfoneiro escapou. Mas quando ele apanhou de palmatória pela primeira vez – quando ainda era menino e estudava em um colégio interno com os irmãos em Olinda -, não gostou nem um pouco. E não teve dúvidas. O irmão mais velho Moraes arquitetou o plano e lá se foram eles de volta para Garanhuns somente com a roupa do corpo. “Valha-me Nossa Senhora, vocês fugiram foi?”, teria exclamado dona Marinha, ao lado do seu Chicão. Foi a senha para a decisão de procurar o padrinho para saber se a promessa de ajuda se tornaria realidade.


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