Como em um dia de festa, o novo CD de Gal Costa, Recanto, virou tema obrigatório neste princípio de verão 2012. Por dois motivos: 1) é um trabalho de concepção e resultado espantosamente belos; 2) adiciona acabamento eletrônico à intérprete que os puristas da MPB consideravam patrimônio da cultura nacional e, portanto, “intocável”. Um choque. Gal, ainda a voz feminina determinante do País e a matriz de um cantar recôndito-cool-espacial, aprontou outra de suas reviravoltas.

E, desta vez, sepultou bem longe o que restou da camisa descolorida que cobria grande parte do formato de se fazer-produzir música por aqui. Recanto acelera a MPB para sempre. E faz repensar, como bem diz o texto de Caetano Veloso no encarte do CD, a trajetória da cantora que sempre desejou apenas ser cantora. Simples assim. O autor das 11 faixas do CD é definitivo nesta outra frase que declarou em entrevista recente ao jornal O Globo: “Fui apresentado a Gal porque ela cantava bem. Não fui conhecer uma pessoa, e sim um canto”.

Ela lembra detalhes desse encontro, em 1963. “Quem nos apresentou foi a professora de dança Laís Salgado Góes, que marcou para a gente se conhecer no Bazarte, um bar no centro de Salvador. Eu levei o meu violão. Ou foi Caetano que levou o violão dele?”. Caetano e Gal estão unidos há quase cinco décadas por aproximações artísticas e pela devoção a João Gilberto. O primeiro disco de ambos partia da parceria do canto dela com várias composições dele em Domingo (1967). O álbum era prenúncio de algo avassalador, e que talvez nem sequer sonhassem. Ali, Caetano já avisava sobre a modernidade da moça de cabelos curtos: “Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os raros grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas”.
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“Quando me encontrei com Caetano, cantei Vagamente, que era um sucesso de Wanda Sá. Ele me perguntou: ‘Quem é o seu cantor favorito?’. Respondi: ‘João Gilberto’. E tudo se sintonizou. Caetano, então, me mostrou uma canção de autoria dele, Sim, Foi Você.” Música que seria a estreia dela em disco, ainda com o nome de Maria da Graça, em um single da gravadora RCA. No lado B, Eu Vim da Bahia, do também estreante Gilberto Gil. “A partir daquele dia, começamos a andar juntos, em turma. Fazíamos serenatas e cantávamos bossa-nova o dia inteiro”. Coisas do destino.

Domingo foi gravado, para contrariedade de dois artistas notívagos, nos primeiros horários matinais. “Tínhamos de chegar às 9 horas da manhã no estúdio da Philips, no centro do Rio. Era uma dureza! Dori Caymmi fez os arranjos. Gravei composições de Caetano, Edu Lobo, Sydney Miller, entre outras.” Outro dado que reforça a ligação entre a cantora e o compositor está na simbiose criativa: “Nunca pedi um tema para Caetano, nunca encomendei uma canção. Ele sempre compôs o que quis. Depois me mostra e eu gravo”.

Na sequência de Domingo veio a explosão tropicalista. Em 1968, por sugestão de Guilherme Araújo (empresário que sugeriu mudanças visuais importantes no processo de profissionalização do grupo baiano), Gal incorporava algo que se ligou de modo indissociável à sua figura: o cabelo usado como design. Grande, redondo, despenteado, agressivo. Ao cantar de Gal Costa se une o capilar. A sua marca, o seu protesto, o seu acessório máximo. Cabelos que no final dos anos 1960 traduziam poder jovem, mudanças, vontade de potência, chutes no passado. Recanto, 44 anos depois, resume esse fator na canção Autotune Autoerótico: “Roço a minha voz no meu cabelo”. O cabelo ainda roça na bossa de Gal, que aparece na foto da capa emoldurada pela autocabeleira. Na contracapa, ela roça o seu cabelo no cabelo de Caetano, no festival hippie da Ilha de Wight, Inglaterra, 1970. Muito cabelo, mundo-cabelo.

A trajetória desse cabelo se enrosca com as escolhas musicais dela, em caminhos nem sempre de acertos. Mas, cá entre nós, quem acerta o tempo todo? Só João, talvez. Desses desacertos, Caetano compôs para ela, na década de 1990, a canção Errática, em que descreve os ziguezagues de sua musa, que ele dirigira também no show e disco Cantar, em 1974. Ela conhece bem o método de Caetano trabalhar. “Tudo também partiu de uma ideia em conjunto quando fizemos o Cantar. Ele pensou em João Donato, que havia retornado dos Estados Unidos, e me trouxe criações inéditas. Colocou letra na canção A Rã, sugeriu Lágrimas Negras, de Jorge Mautner, e ainda dirigiu o show.”

O start do atual Recanto, já indicado em resenhas e premiações como o Melhor CD de 2011, começou depois de um show de Gal em Lisboa, assistido por Caetano. “Ele foi ao camarim e se disse encantado com o meu jeito de demonstrar naturalidade no palco, sem preocupação gestual… E propôs dirigir o meu próximo trabalho.” O que a cantora não imaginava ainda era o acabamento que ele desejava: música eletrônica. “Logo que Caetano disse que queria um disco eletrônico, eu, ingênua, perguntei: ‘Você quer que eu retome os gritos? Vai ter alguma coisa dance music?’”. Gal não previa o resultado intenso obtido por Recanto. “Topei, ele foi preparando as canções e fizemos um CD corajoso. Aliás, necessário. Corajoso por parte dele e também por eu assumir essa postura. Apostamos no novo, sem medo de equívocos ou de erros. Isso é coragem: sugerir mudanças.”

Quando se delineia um timeline da carreira de Gal Costa, surgem momentos geniais que continuam avançados. Durante a fase do exílio dos tropicalistas, foi ela quem segurou a continuidade do discurso deles no Brasil. Gal radical, Gal experimental: basta ouvir o álbum que abre com Cinema Olímpia, gravado no final de 1968 e lançado no ano seguinte, para perceber que aquele plasma sonoro de distorções e gritos continuará um enigma e um espanto. Ela, reticente, evita comentar muito desse passado, por considerar que o ultranovo sempre virá.

Mas sabemos que Gal foi uma porrada. Desde o impacto da Tropicália e dos festivais de música, ela havia se tornado um nome de alcance popular (para os índices da época) e vendido 100 mil cópias devido aos hits Baby, Que Pena, Divino, Maravilhoso e Objeto não Identificado. Sobre todos esses acontecimentos, já pairava soberana a diretriz de Caetano Veloso – o compositor gravado mais de 80 vezes por Gal. A equação se completa: ela é sua cantora; ele, sua fonte. Uma trindade que se torna una pela onipresença de João Gilberto. O elo, o eco, o tom.

O mesmo João que, contrariando todas as expectativas, assistiu várias vezes ao lisérgico show Fa-tal, no verão de 1972. Se a plateia de cabelos imensos delirava com a suavidade da primeira parte do show, quando Gal se acompanhava ao violão em números de dilacerar corações, João preferia a segunda parte, roqueira, estridente, louca. Ele chegava com o espetáculo começado e se retirava ainda no escuro para não ser notado. Dissonâncias e alteridades de mestre.

Eu me lembro dessa história no momento em que Gal comenta ao telefone sobre o novo CD: “A canção Tudo Dói é totalmente joão-gilbertiana, com harmonias que remetem a Tom Jobim”. Como discordar da dona da voz? Bom é ter um foco semelhante e somá-lo a outras descobertas. Chato é saber que alguns analisam essa composição como “alegoria do envelhecimento físico”. Ora, me deixe, como dizem na Bahia. Tudo Dói é um mosaico de perplexidades sobre o planeta que costuma intrigar Caetano pelas janelas dos aviões. Ali é que ele contempla poentes incandescentes mais intensos “do que em desenhos animados”. Tudo é singular, tudo dói e os vocábulos iridescem.

“Acho muito estranho – e equivocado – aqueles que avaliam as letras de Caetano que gravei agora como mensagens de ‘envelhecimento’ meu e dele. Muitas pessoas são lineares em suas análises. Penso o contrário: o CD é vital, energético, inovador e nada lamurioso”, enfatiza. E concordo. Esse jato de luz que jorra de trabalhos como Recanto repensam a carreira de Gal Costa, exigem retrospectivas. Blogs e redes sociais andam em ebulição com o álbum. As pessoas trocam arquivos com as faixas, postam imagens de Gal. A imprensa enaltece e revê sua trajetória com pontos de unanimidade. Tem como não venerar Cantar? E o que comentar sobre Legal (1970, capa de Hélio Oiticica), Fatal (1972, capa de Luciano Figueiredo e Oscar Ramos) ou Índia (1973, capa censurada pela ditadura militar)? Só nos resta ouvir em silêncio. Reverenciar.

Do mesmo jeito, é importante citar que Waly Salomão gerou o conceito de Plural (1991, capa de Luciano Figueiredo) e Gerald Thomas depurou Sorriso do Gato de Alice (1994) em show que paralisava o Brasil, enquanto Celso Fonseca batizava Gal no formato eletrônico em Aquele Frevo Axé (1998). A cantora não lançava nada desde Hoje, CD produzido em 1995 por Cesar Camargo Mariano e já buscava compositores novos, incluindo duas canções de Moreno Veloso.

Dizer que Recanto reposiciona Gal em um patamar de audácias é evidente. Vamos abrir melhor os ouvidos e arregalar bem os olhos. O que tornou o trabalho ainda mais buliçoso é o que podemos chamar de “pororoca geracional”. Os produtores Caetano e Moreno Veloso arregimentaram uma turma de jovens músicos ligados a trabalhos autorais e provocativos. Eles criaram surpresas, delicadezas, asperezas. Mesmo quando incluem um acorde “clássico”, como a sutil levada no violão de sete cordas tocado em Recanto Escuro, o CD segue o seu objetivo: instigar. Gal, na posição de diva generosa, se entrega. E cresce junto.

Nem poderia ser diferente. Faixa por faixa passam nomes como Kassin (e seus sintetizadores amestrados), Pedro Sá, David Moraes (filho de Moraes Moreira), Donatinho (filho de João Donato), Zeca Veloso (filho de Caetano), a banda Rabotnik, a dupla Duplexx, Daniel Jobim (filho de Tom), ao lado de Jaques Morelenbaum e Luiz Felipe de Lima. A pororoca se completa na faixa que encerra o álbum Segunda, em que Moreno Veloso toca violão, cello, prato e faca, conduzindo a composição a uma atmosfera mística-sertaneja. Um ricochete entre Elomar, Gláuber e Edith do Prato. Puro cinema. Puro lamento.

Gal Costa aponta outra curiosidade do CD: a canção Madredeus não é uma simples citação ao grupo português de Teresa Salgueiro, mas à pequena ilha Madre de Deus, na Baía de Todos os Santos – onde Caetano teve um insight, digamos, cósmico. “Ele ficou extasiado ao deitar na areia e contemplar as estrelas. Aquilo foi uma vertigem. Eu também sentia a mesma sensação quando era adolescente e me deitava no chão do prédio de Sandra Gadelha, em Salvador. Parecia que seria tragada pelo céu.” A composição Estelar foi lembrada a Caetano pelo compositor José Miguel Wisnik. E entrou no disco.

E Neguinho, que todos comentam? É a música “de trabalho” do CD, definida entre artista, produtores e a gravadora Universal. O termo “neguinho” tem abrangência absurda, com conexões entre Rio e Bahia. Pode significar fulano, alguém, cara, carinha. Um genérico-coletivo que enfeixa comportamentos próximos e ações repetidas de um mesmo grupo. Neguinho, meu nego, integra o mistério do português falado no Brasil: sugere imagens e simplifica ideias que ficariam complicadas se ditas de modo diferente. O “neguinho” é agente da podreira, consumista inconsequente, acumulador de bobagens, bon vivant da beira-mar, fã de blockbuster, “o que não quer saber”. Uma antítese de Eu Sou Neguinha?, composta por Caetano no início dos anos 1990. Neguinho fala do matusquela digital, tosco e deslumbrado.

São tantas as descobertas a partir do lançamento de Recanto que se torna complicado desenvolver um texto com “linearidade” jornalística. Obras abertas sugerem possibilidades. Trata-se de um CD que, como outras propostas de ruptura e avanço, dificilmente ganharão a dimensão que merecem durante o seu tempo. Como situar, por exemplo, , sutil louvação de bandidos-heróis? Gal rodopia com São Dimas (o ladrão que se converteu ao cristianismo), Robin Hood (o ladrão que tirava dos ricos para dar aos pobres) e com o Anjo 45 (do clássico Charles Anjo 45, de Jorge Benjor, “Protetor dos fracos e dos oprimidos/Robin Hood dos morros/rei da malandragem”). Ela explica: “Jamais tive medo de arriscar. Lembro que quando lançamos Cantar houve muita crítica negativa. Até Nelson Motta falou mal. Hoje, virou clássico. Vamos levar adiante Recanto, acompanhada por um trio e programação eletrônica”.

O tempo de Recanto continuará à frente. Furos futuros. “Caetano pensou sobre a seleção do repertório do show e decidiu incluir sucessos meus como Vapor Barato, Meu Nome é Gal e Vaca Profana. Concordei com ele.” Concordo com tudo. E concluo: Gal Costa é importante. Necessária. E viva Caetano, que lapidou algo definitivo no encarte: “A grande plasticidade de seu estilo de cantora se deve ao entendimento instintivo que ela teve do “cool” desde o início”. Peço licença para apertar novamente o play no disco. E acabar aqui.

BASTIDORES DA CAPA

Capa do CD Recanto

Uma Gal eterna, atemporal. Esse é o conceito da capa do álbum Recanto pensado por Caetano Veloso. “Ele queria um retrato bem fechado, que não expusesse nem o cabelo, para que não viessem à tona referências de ícones da Gal”, conta Gilda Midani, fotógrafa, estilista e figurinista, que fez o retrato da capa do CD e desta edição. Ela também assina a direção de arte do disco ao lado de Caetano. “Ele não queria maquiagem nem Photoshop. Fui eu que o convenci de que eram dois recursos necessários, com o preciosismo de que eles não apareçam.” Os recursos foram usados minimamente, Gilda obteve a imagem com uma câmera Cânon e uma super teleobjetiva (lente de 300 mm). A sessão aconteceu em um estúdio na Gávea, no Rio. “Eu desejava esse efeito que as lentes longas dão, de achatar os planos e poder ter uma profundidade de campo muito curta. Ao mesmo tempo, é uma lente que te afasta do objeto. Mas meu maior desafio era não perder a intimidade, a ligação com Gal.” A fotógrafa revela que colocou uma iluminação sobre ela mesma, para Gal manter os olhos nela. “O tempo todo fiquei na dúvida se era mais importante o controle que um estúdio oferece ou a intimidade que uma situação natural me daria.” Gilda conhece Caetano desde 1980, época em que foi apresentada a Gal. A fotógrafa começou a carreira clicando capas de disco. Fez Velô (1984) e agora, 25 depois, foi convidada novamente por Caetano para este trabalho.


Comentários

6 respostas para “Atenta e forte”

  1. The best!

  2. Comecei a ler os comentários… Até gostei… Mas, foram chegando as expressões ridículas, estrangeiras, que, de forma alguma, traduzem e esclarece quem é GAL COSTA! ODIEI!!! Gal é brasileira!!!!

  3. Avatar de Manuel Marques
    Manuel Marques

    Não me lembro de ter escutado uma voz feminina mais linda que a voz de Gal. Meu Deus, o canto dessa mulher é mais bonito que o som dos instrumentos. Tenho toda a discografia da Gal e simplesmente escuto tudo, na ordem cronológico, cada vez mais apaixonado, cada vez mais grato a Deus por ter o privilégio de escutar uma cantora como ela.
    Manuel Marques

  4. Avatar de Rudy Pythagoras Alves
    Rudy Pythagoras Alves

    2. Há muito tempo fui ao Rio e Gal se apresentava no Canecão. Fui, lotação esgotada filas imensas, na caradepau usei minha carteira de Imprensa e entrei sem pagar sentando-me num local privilegiado. Gal baixou um tomaraquecaia exibindo seus seios. Vestida ela bem melhor mas valeu pela ousadia, quando só quem mostrava os seios era Leila Diniz, que vi nua em Parati. Anos depois na mesma caradepau entrei no João Caetano também no Rio, junto com Margarida e uns amigos de Parati que nos hospedavam, sentamos num camarote praticamente em cima do palco. Desta vez os novo baianos, Betânia, Caetano, Gil, Tom Zé também estavam.Sempre que pude fui vê-la. Não perderei este CD, sehouver show aqui em Itupeva onde resido, duvido.

  5. Avatar de Rudy Pythagoras Alves
    Rudy Pythagoras Alves

    Adoro a Gal a voz mais feminina dos novos, novíssimos e velhos baianos. Este Cd será mais um para a minha discoteca. Nome antigo não, mas tenho muitos LPs e até pouco tempo discos de 78 e 45 rotações, provavelmente brevemente ouviremos tudo em pen drives ou algo menor e melhor.

    1. Avatar de Helena Alves Costa
      Helena Alves Costa

      Rudy Pythagoras Alves, que bom ter notícias suas! Entre em contato.

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