Lançado pela EMI em 1959, o álbum Chega de Saudade, estreia do baiano João Gilberto, definiu estatutos para a bossa nova, gênero musical preconizado em trabalhos anteriores de artistas como Johnny Alf, Luiz Bonfá e Dick Farney. Sofisticada e moderna, a bossa expandiu horizontes musicais e comportamentais da geração marcada pelo ímpeto desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitscheck. Foi no começo dos anos 1960 e no coração de Copacabana, mais precisamente na Duvivier, rua sem saída a poucos metros da orla da praia, que o Beco das Garrafas fez história.
O antro boêmio foi estabelecido a partir da movimentação noturna de três boates: Bacará, Bottle’s e Little Club. As duas últimas eram propriedade dos irmãos Alberico e Giovanni Campana. Foi no ambiente diminuto e esfumaçado das casas noturnas dos Campana que a revolução liderada por João Gilberto tomou curso e derivou outras transformações, como o novo gênero instrumental herdeiro da bossa nova, o samba-jazz, praticado por grupos como Bossa Três, Tamba Trio, Sexteto Bossa Rio e Copa 5, quinteto liderado pelo saxofonista J.T. Meirelles, que acompanhou Jorge Ben Jor em seu álbum de estreia, Samba Esquema Novo, lançado em 1963.
Vitrine de estrelas da MPB, como Dolores Duran, Elis Regina, Claudette Soares, Marcos Valle, Sergio Mendes, Baden Powell, Raul de Souza e Airto Moreira, o Beco teve o vulgo originado da reação de alguns moradores de edifícios do entorno, que passaram a jogar das janelas de seus apartamentos objetos diversos. Alguns, mais irritados, atiravam garrafas para manifestar o descontentamento com o barulho produzido pelos boêmios. Atento ao risco de alguém sair machucado, o cronista Stanislaw Ponte Preta passou a tratar o local como “beco das garrafadas”, logo reduzido pelos frequentadores para Beco das Garrafas. Um marco na memória recente do Rio de Janeiro, o espaço ficou abandonado por quase 30 anos, com algumas tentativas de revitalização, como a do compositor Durval Ferreira que, por um breve período, reabriu o Little Club nos anos 1990.
Gato – apelido de Durval, por conta dos olhos azuis – também fez parte da história da bossa nova, na autoria de clássicos como Batida Diferente (parceria com Mauricio Einhorn) e Estamos Aí (escrita a seis mãos com Einhorn e Regina Werneck). Era também assíduo no Beco das Garrafas, apresentando-se ao lado de outros artistas e liderando conjuntos como o combo de samba-jazz Os Gatos. Ao longo dos anos 1960 e 70, ele também atuou como produtor e diretor artístico. Envolvimento que influenciou a escolha profissional de sua filha, a cantora e produtora Amanda Bravo, responsável, ao lado do sócio Sergio de Martino, pela revitalização do Beco das Garrafas, com a reabertura do mítico Bottle’s, em dezembro de 2013.
Em entrevista à Brasileiros, Amanda contou que a realização do sonho do pai de ver o Beco voltar à ativa, demandou esforço coletivo. “Conheço um monte de músicos que estavam carentes de espaço para tocar e procurei o Sergio, que é dono do imóvel do Little Club e foi sócio do meu pai na reabertura dos anos 1990. Fizemos um mutirão com alguns amigos, eu mesmo ajudei a pintar as paredes, e reabrimos o Bottle’s.”
A volta do espaço fez tamanho sucesso que, em setembro de 2014, a cervejaria Heineiken decidiu apoiar Amanda e Martino, e eles também reabriram o Little Club. Artistas da nova geração, como João Sabiá e Victor Bertrami, e veteranos, como Alaíde Costa e João Donato, têm atraído um público diverso, de “18 a 80 anos”, segundo Amanda. A história musical da Cidade Maravilhosa agradece.
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