“Para mim cada relato ou cada livro é parte de um diálogo. Me interessa muito essa oralidade, pensar como soaria uma conversa se houvesse alguém que me escutasse e pudesse intervir, responder” , Alejandro Zambra - Foto: Mabel Maldonado
“Para mim cada relato ou cada livro é parte de um diálogo. Me interessa muito essa oralidade, pensar como soaria uma conversa se houvesse alguém que me escutasse e pudesse intervir, responder” , Alejandro Zambra – Foto: Mabel Maldonado

O mais comum é que os contos de um livro sejam objetos prontos, distintos uns dos outros, como quadros em uma exposição. A continuar com essa metáfora, os relatos de Meus Documentos se parecem mais com o espaço ao redor da exposição, ou o próprio fluxo das pessoas que passam de uma pintura a outra. Certamente não têm molduras. Começos e fins são borrados, misturam-se ao conto seguinte ou ao anterior. A indefinição, ou o acaso, faz parte do próprio estilo de Zambra: “Acho que nunca pensei ‘vou escrever um romance’ ou ‘vou escrever um conto’, assim, de antemão. Me concentro em uma imagem e parto daí em busca de uma história. Na maioria das vezes, não tenho ideia se ela será curta ou longa. Dessa vez entrei nesse ritmo, de histórias curtas, e comecei a entender o que estava fazendo como um livro e não como uma reunião de contos isolados”, conta, por e-mail, de Santiago, onde vive.

A brevidade é outra de suas marcas. Parece seguir o conselho de Borges, citado em seu livro de ensaios, No Leer: “Escrever como quem faz um resumo de algum texto já escrito”. Foi assim com seus três romances. O primeiro, Bonsai, já traz no nome a mesma premissa. Fazer literatura como quem poda uma pequena árvore. Os fatos de sua vida também estão distribuídos em seus livros, de forma direta ou passados por um filtro tênue de ficção. Os onze contos de Meus Documentos trazem muitos narradores e personagens que são reflexos do autor em espelhos diferentes, assim como o contexto histórico do Chile. Pinochet é mencionado várias vezes, sempre como pano de fundo. São situações de exílios, aprisionamentos e torturas que se passam com personagens secundários, mas que afetam decisivamente os protagonistas. “Instituto Nacional”, dos melhores, trata de um aluno brilhante, mas que sempre repete o mesmo ano, pois não gosta de estudar. Sua modéstia e resignação é tão misteriosa quanto tocante, e faz pensar, de um jeito leve, como em tudo o que Zambra escreve, na inutilidade cósmica da existência.

Sua memória não é proustiana, mas, antes, involuntária: “Normalmente, me lembro melhor de detalhes, coisas que à primeira vista têm menos importância. Chego a esquecer o nome das pessoas e até mesmo quem elas são, mas me lembro, por exemplo, de algum gesto específico delas. Não acho que seja uma qualidade, preferia me lembrar de tudo com precisão, mas parece que as coisas me vêm desfocadas… Acontece bastante de me lembrar de pessoas que não vejo há muito tempo e que provavelmente não verei mais”.

É o caso de Camilo, outro personagem fascinante do livro (ou a engraçadíssima avó de Zambra, com seus trocadilhos infames, no conto-título, resumo borgiano de sua biografia). Seu pai vivia em Paris, depois de preso e exilado pelos militares, e se tornara uma obsessão para ele. Roqueiro, amante dos Talking Heads e de Los Prisioneros (grupo pós-punk chileno), tenta ensinar as coisas da vida para o narrador, sem muito sucesso, mas sempre com graça e personalidade. “Falo do mundo em que vivo, da gente que conheço. Os personagens dos meus livros estão sempre buscando uma identidade, parece que não se sentem à vontade em lugar nenhum. Eu sou um pouco assim.”

Como muitos deles são escritores (ou aspirantes a) e professores (Zambra dá aulas de literatura na Universidade Diego Portalles, em Santiago), a questão da leitura e dos processos de escrita estão sempre presentes. Ele às vezes “fala” com o leitor. No conto “Longa Distância”, por exemplo, em que menciona vários escritores, ao falar da volta de Pinochet após sua prisão e exílio, escreve, em um parêntesis: “Lamento esses pontos de referência temporal, mas são os que me vêm à mente”. O interessante é que o faz de forma orgânica, natural, e não como um jogo metalinguístico, cerebral. “Para mim cada relato ou cada livro é parte de um diálogo. Me interessa muito essa oralidade, pensar como soaria uma conversa se houvesse alguém que me escutasse e pudesse intervir, responder.” Por isso, não é estranho que diga: “De alguma forma, acho que Meus Documentos é um livro menos ‘literário’ que os anteriores”.

Leitor exigente, como mostram esses contos, em que cita alguns dos autores que admira (Heinrich Böll, Paul Celan, Julio Ramón Ribeyro, os chilenos Enrique Lihn e Roberto Bolaño, e, entre muitos outros, Italo Svevo, em um dos textos mais divertidos do livro, “Eu Fumava Muito Bem”), Zambra deixou de ser crítico de literatura. Escrevia para jornais e revistas como El Mercúrio, Letras Libres, The Clinic e El País. “Me cansei de ler livros como um dever”, diz. Elogiado no exterior – seus livros foram traduzidos para várias línguas – e premiado algumas vezes, além de eleito dos melhores escritores jovens de língua espanhola pela revista Granta, o simpático Zambra, hoje com 39 anos, está longe, bem longe, do escritor arrogante, cheio de si. Quem o conheceu na FLIP de 2012 sabe disso. Lê e escreve muito, todos os dias, podando seus textos, e dá aulas há 12 anos. “Desfruto muito do meu trabalho. No começo era difícil, pesava a responsabilidade, mas agora gosto bastante.” No ano que vem, a Cosac Naify vai lançar outro de seus livros, o inclassificável Facsímil, publicado na Espanha:  “Está entre a poesia e a prosa”, avisa. “Não diria que é um romance, nem que não é…”. Romance ou não, arrisco dizer que é mais uma prova de que Zambra está entre os melhores escritores do momento – e não apenas em língua espanhola.

"Meus Documentos", Alejandro Zambra, tradução de Miguel Del Castillo. Editora Cosac Naify, 224 páginas. Foto: Divulgação
“Meus Documentos”, Alejandro Zambra, tradução de Miguel Del Castillo. Editora Cosac Naify, 224 páginas. Foto: Divulgação


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