Essa é uma história tão incrível que poderia estar num livro de Dickens e, ainda assim, iria parecer exagerada. Claro, que conta um conto aumenta um ponto, e não seria absurdo pensar que Nile Rodgers, com seu bom humor imbatível e talento natural para a narrativa, atropelou a memória em um ou outro momento com o mote . Mesmo com descontos, o que se lê em Le Freak, a autobiografia do criador do Chic, guitarrista de primeira e produtor os maiores sucessos de Bowie e Madonna (os discos Let’s Dance e Like a Virgin, respectivamente), é de fazer cair o queixo – além de proporcionar boas risadas e informações privilegiadas dos bastidores do mundo pop e rock.
A mãe, Beverly, era uma bela adolescente de 13 anos quando Nile veio ao mundo, na Nova York de 1952. Integrante de uma gangue de rua, ela adorava jazz, que ouvia todo o tempo. O pai, um incorrigível drogado e excelente músico, logo abandonou a família para viver na noite e eventualmente nas sarjetas. O padrasto era um judeu beatnik e heroinômano. “Quando eu voltava do colégio para casa, não era incomum ver vários tipos de boinas, jaquetas com reforço nos cotovelos, echarpes, golas rolês, calças ‘descoladas’, piteiras e cigarreiras extremamente decoradas, haxixe e sedas de todo lugar do mundo, cadernos de anotações, LPs, tampas de caixa de sapato para tirar as sementes de maconha, revistas de todos os tipos, livros e papel de partitura, além de vários aparatos e torniquetes para amarrar o braço e fazer as veias aparecerem, para que fosse mais fácil injetar-se.” Para ter uma ideia, Thelonious Monk era um desses tipos descritos tão evocativamente por Rodgers.
Asmático, magro, míope, feioso, insone. Com essas características e mudando de casa e escola ao sabor das loucuras dos pais, era de se pensar que o pequeno Nile se perderia na vida. Mas o amor pelos Beatles – e John Lennon em particular – o levou para a guitarra. E daí para o estrelato. Ele conta que o primeiro acorde certo foi uma epifania tão forte ou mais do que o sexo ou as drogas que já vinha tomando. Sem conseguir dormir, passava noites rodando de metrô pela cidade. Adolescente, começou a frequentar comunidades hippies em prédios bandonados. Foi se aperfeiçoando ao violão a ponto de ganhar uns trocados na rua. Num período em Los Angeles, vivendo com a avó, viu-se numa festa tomando ácido com TimothyLeary. Nessa época, a mãe fugia de um admirador violento, um assassino profissional e psicopata que a havia estuprado e não aceitava que tivesse outros homens. Vida para lá de “loka”.
Em 1970, aos 18, começou a tocar para valer, depois de estudar violão clássico e de uma curiosa passagem como membro dos Panteras Negras. Primeiro num grupo chamado New World Rising, depois com a banda da Vila Sésamo e finalmente na lendária casa noturna Apollo, no Harlem – sua estreia foi com o impagável Screamin’ Jay Hawkins, que saiu de um caixão cênico e lhe deu o maior susto no palco, para gargalhada geral da plateia. Foi nessa época que fez uma jam session com um sujeito chamado Jimi Hendrix. Foi também quando conheceu aquele que seria seu grande parceiro em boa parte da carreira: o baixista extraordinaire Bernard Edwards. Inspirados pela elegância e diversidade musical do Roxy Music e o conceito de “anonimato” do Kiss, formaram o Chic. Eram a força motora do grupo, mas não sua cara. Usavam ternos impecáveis e óculos escuros, assim como o baterista Tony Thompson, mas quem atraía os holofotes era a dupla de cantoras, as belas Alfa Anderson e Luci Martin. E assim, ao longo dos anos 70, vieram os megassucessos Le Freak, Everybody Dance, I Want Your Love e Good Times. Sem contar We Are Family, com as protégées Sister Sledge (curiosamente, não se consideravam “disco”, mas sim de uma linhagem do r&b que misturava elementosdo jazz com grooves).
Eram agora os reis daquele universo dionisíaco de orgias, cocaína e álcool, que girava sob a luz estroboscópica do Studio 54. Nile chegaria bem perto da cova duas vezes, sem arrependimentos: “As drogas quase me matam. Mas eu não teria conseguido sem elas”. Seus amigos incluíam Debbie Harry, do Blondie, Diana Ross (foi o responsável por sua volta às paradas), Truman Capote e, alguns anos depois, quando a disco estava em declínio, um certo David Bowie, a quem conheceu num bar. Para sua surpresa, conversaram sobre jazz (“Nile, eu cresci na Inglaterra, onde temos a BBC”; aliás, ele lembra bem de suas conversas inspiradas, que vão de literatura a Godard) e logo as afinidades se estabeleceram. Bowie, a quem chamava de “o Picasso do rock”, o convidou para produzir e tocar em Let’s Dance, até hoje seu disco mais bem-sucedido, que representaria uma nova virada na vida trepidante de Nile.
Em 1984 surge outra grande amiga, “uma Gladys Knight mais jovem e mais obscena”, que lhe proporcionaria mais um marco impressionante – o maior: Madonna. “Foi a mulher com quem mais tive intimidade fora de uma relação romântica. Passávamos todo nosso tempo livre juntos até o disco sair.” O disco era Like a Virgin, 25 milhões de cópias vendidas. O grupo de La Ciccone era o próprio Chic. Melhor, impossível. Incansável, Nile ainda produziria Duran Duran, INXS, B-52’s, Mick Jagger e, mais recentemente, Lady Gaga e Daft Punk, dupla francesa que o resgatou de um certo (e injusto) esquecimento.
Mas o que fica mesmo do livro é a fascinante odisseia daquele garoto magro, asmático, feioso, míope e insone pelas ruas e os personagens marginalizados da Nova York e Los Angeles dos anos 60. Dickens aprovaria.
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