Em longa conversa com a Brasileiros (e sem papas na língua, como era de se esperar), Arnaldo Angeli Filho, o pai de personagens símbolos dos anos 1980, como Rê Bordosa, Os Skrotinhos, Meiaoito e Nanico, Walter Ego, Mara Tara e Osgarmo, relembrou sua trajetória errante, lamentou, de olhos marejados, a perda do amigo Glauco, falou da transformação de Laerte e deu nomes àqueles que considera “ratos sujos” da política. Em tempos de aparente retração conservadora, ele continua a defender a liberdade de ser politicamente incorreto, como Bob Cuspe, e reitera, como Wood ou Stock, sua deliciosa tese de que “… Só o Grande Orgasmo Universal salvará a humanidade!”.
Com 40 anos de carreira e mais de 30 mil trabalhos publicados, ele terá um expressivo recorte de sua produção exposto na Ocupação Angeli, do Instituto Itaú Cultural, em São Paulo. A mostra reproduzirá o ambiente do estúdio do artista e exibirá mais de 800 obras. Será aberta em 15 de março e permanecerá no instituto até 29 de abril. Enfrentando uma rotina de trabalho intenso e apenas quatro horas diárias de sono, em meio a copiosas baforadas de seus cigarros – comemora ao dizer que partiu de 4 para 2 maços diários –, o cartunista diz querer envelhecer com dignidade e que, cada vez mais, abrirá mão de novos personagens, deixando o caminho livre para as futuras gerações de cartunistas do País – que certamente têm e terão nele a figura de um herói.
Funileiro, bandido, cartunista
Filho de um modesto casal de imigrantes italianos, o pai funileiro e a mãe costureira, Angeli veio ao mundo em 31 de agosto de 1956. Quatorze anos mais tarde, como office-boy, ele descobriu os encantos e as contradições de sua cidade e também deu os primeiros passos da carreira de cartunista nas páginas da extinta revista Senhor. Nossa conversa tem início com a recordação da alienação de suburbano que o fazia acreditar que São Paulo se limitava a seu bairro: “Por um bom tempo, achei que minha vida e São Paulo eram só aquele mundinho da Casa Verde. Até que, aos 14 anos, atravessei o Tietê, conheci o Centro e descobri que a cidade e as experiências que ela podia me proporcionar era algo que ia muito além. O mesmo aconteceu com quase todos os meus amigos de infância – um deles, o Toninho Mendes, que tempos depois foi o editor da Chiclete com Banana – pelo mesmo motivo: o primeiro emprego de office-boy”.
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Vizinho de um bar frequentado por traficantes, Angeli enfrentou um turbulento rito de passagem para a adolescência, anestesiado pelo consumo de maconha. Admirava o ofício do avô, um humilde ferreiro, que potencializou sua paixão pelo desenho, mas temia a oficina de funilaria do pai, possível reduto profissional de um garoto que pouco ou nada se importava com sua formação, por conta da recorrente sensação de deslocamento em sala de aula: “Meu avô era ferreiro, um trabalho que aparentemente não tem nada a ver com arte, mas ele desenhava aqueles portões art noveau e pesquisava muito. Fazia esboços, era um tremendo desenhista e eu apreciava esse universo dele. Por outro lado, meu pai era funileiro e eu tinha quase certeza de que também iria acabar me tornando um, o que já era uma boa perspectiva, pois eu vivia em um ambiente muito propício para transformar alguém em bandido. Cheguei a tomar conta de uma banca de jornal de um vizinho, em troca de parangas de fumo. Havia um bar frequentado por traficantes ao lado da minha casa. Eu descia a escadinha do sobrado dos meus pais e dava de cara com esse ambiente todos os dias”.
Enfatizando o que classifica como uma “vocação para a delinquência”, Angeli revela os motivos que o levaram ao precoce fim de sua carreira estudantil, depois de repetir por três vezes a 5a série do primário e ser expulso: “Minha família obviamente dava importância à educação dos filhos, mas acabou desistindo de mim. Pudera! Fui, várias vezes, expulso da escola por questões idiotas: brigava com um menino e era advertido; batia em outro e acabava expulso. Minha mãe ficava puta comigo, mas eu não conseguia me dedicar. Às vésperas de completar 14 anos e ainda na 5a série, estava fadado a ficar ao lado de uma turma três, quatro anos mais nova do que eu. Sabia que se eu ficasse ali, cedo ou tarde ia querer bater em todos e aterrorizar a pivetada.”
Nem funileiro, nem bandido, Angeli teve a vida transformada da noite para o dia, quando, em 1975, aos 17 anos, foi um dos premiados no 2o Salão de Humor de Piracicaba. O prêmio o aproximou da chargista alemã, radicada no Brasil, Hilde Weber. Hilde trabalhava para o jornal O Estado de S. Paulo e era ex-mulher do jornalista Cláudio Abramo, à época, editor da Folha de S. Paulo. Por recomendação de Hilde à Abramo, Angeli foi parar na Folha, onde reina, como chargista e cartunista, há quase 40 anos: “Foi lá que me tornei homem e gente”, admite ele.
Com o abandono dos estudos, a descoberta do rock e da cultura underground, Angeli passou a apostar cada vez mais em uma formação empírica, baseada em experiências cotidianas e uma rede de intensa troca de informações que o livrou da sensação de deslocamento que engessava sua desenvoltura na educação formal. Um caminho de transformações, pavimentado com o desbunde de excessos e amizades valiosas, como a do poeta Roberto Piva: “A paixão pelo rock envolvia muito mais do que música, era uma questão comportamental e também uma forma de aproximar pessoas com interesses parecidos. Um dos pontos de encontro dessa turma era o vão livre do MASP. Foi lá que conheci Roberto Piva e nos tornamos amigos. Piva foi o mentor dessa turma. Ele organizava shows e uma série de saraus de literatura beat e só aí é que fui encontrar a minha escola. Mas esse era também um período difícil, em que roqueiro brasileiro ainda tinha cara de bandido e veado. Lembro que no auge do glitter rock, eu tinha uma calça de cetim coral e andava com ela em plena Casa Verde. Me chamavam de veado, mas eu não comprava briga. Encarava essas provocações como algo legal, me sentia desafiador. Hoje, jamais vestiria aquela calça.”
Riviera, Rê Bordosa, Meiaoito
A consolidação da carreira de Angeli na virada dos anos 1970 para os 80 coincidiu com uma transição geracional no País. Saíam de cena emepebistas esquerdistas e hippies anacrônicos para dar lugar a punks e pós-punks, reunidos em históricos inferninhos de São Paulo, como os clubes Madame Satã, Ácido Plástico, Carbono 14 e Radar Tantã, e bares como o Riviera, antros de uma fauna transgressora que, às vésperas da paranoia da AIDS, dispensava pudores e mergulhava de cabeça em comportamentos liberais, ignorando antigos tabus, como o sexo e uso de drogas sem o ônus da autopenitência. O próprio Angeli, cocainômano por uma década e adepto de um comportamento sexual poligâmico, soube debochar como ninguém desses anos loucos e retratou a década de 1980 como um cronista. Aventura que teve como laboratório um dos mais tradicionais bares da boemia paulista: “No Riviera, conheci outros cartunistas, escritores, poetas, jornalistas, todo tipo de gente. Foi uma escola. Antes da minha geração, ele era frequentado pela turma do Caetano, Gil, Chico. Aprendi muito, briguei, quebrei o bar, roubei vinho, criei personagens inspirados em frequentadores, casei e me separei lá dentro. Lamentei muito o fim do Riviera. Ele deveria ter sido tombado pelo patrimônio histórico dos malucos de São Paulo. Foi lá que me formei e aprendi muito daquilo que não consegui aprender na escola. Ficava de orelha em pé, pegando as conversas e tentando entender tudo o que ouvia”.
Esse apreço pela observação, a insolência e a urgência em compreender o mundo a sua volta, eram atitudes típicas de alguém tão carente de rumos, mas também hábitos críticos deflagrados por sua enorme paixão pelo cartunista Robert Crumb, que desde os anos 1960, quando impôs a contracultura impagáveis personagens como Fritz, The Cat e Mr. Natural, tornou-se guru de sucessivas gerações de cartunistas espalhados ao redor do mundo. No documentário Crumb, de Terry Zwigoff, o cartunista norte-americano confessa que a paixão pelos quadrinhos o redimiu de uma possível loucura. Não seria exagero dizer que, no caso de Angeli, desenhar foi a redenção para uma vida ordinária ou até mesmo uma vida de crimes.
Em 1992, no Festival Treviso Comics, em Treviso, Itália, Angeli teve a honra de expor seu trabalho no mesmo espaço em que Crumb e outro de seus mentores, o pai dos Freak Brothers, Gilbert Shelton, foram homenageados: “Eu tinha verdadeira adoração pelo Crumb e ele foi decisivo para me convencer de que eu teria de fazer algo autoral, falar da minha vida, das coisas que eu gostava, das raivas que eu tinha, do meu desprezo à burguesia, mas eu estava fazendo charge política na Folha em uma época que não se podia apontar o dedo ou desenhar generais. Foi, então, que falei que queria sair da charge e comecei a produzir tiras. Só havia tiras americanas na Folha e os embriões da Chiclete com Banana surgiram nesse novo espaço que defendi. A observação crítica é o que me levou aos personagens. O Laerte foi do partidão e chegou a me levar a algumas reuniões comunistas, mas me incomodava essa coisa da militância. Tive a ideia de fazer o Meiaoito, um guerrilheiro de merda, de balcão de bar e foi, então, que percebi que poderia criar outros personagens com a mesma visão. A resposta do público veio rapidamente”.
Muito além de ser tão somente o fundador de uma revista “porralouca”, Angeli fez por sua geração o que fez Carlos Zéfiro anteriormente com seus Catecismos – uma série de quadrinhos pornográficos, em preto e branco, disputados a tapas nos anos 1970. Mas ao sexo de Zéfiro, Angeli acrescentou drogas, rock’n’roll e cultura subversiva, como quando decidiu convidar o poeta Claudio Willer, tradutor da primeira versão brasileira do clássico poema Uivo, de Allen Ginsberg, para colaborar com a revista e deixar bem claro de onde vinha o hippie que derivou no punk e descambou no heavy metal, que tanto fazia alguns leitores estreitos da Chiclete com Banana literalmente baterem cabeça: “Desde aquela época, eu já defendia que a saída para o homem é o sexo, que só o ‘Grande Orgasmo Universal’ pode salvar a humanidade. Falava de sexo, de drogas e depois que fiz todos esses personagens, enfim, pude reconhecer que eu era um verdadeiro autor. Em pouco tempo, alcançamos marcas históricas de vendagem e chegamos a colocar 110 mil exemplares na rua. Em meio a tantos leitores, a seção de cartas da Chiclete só tinha metaleiro, uns headbangers estreitos, e eu comecei a pensar: ‘Porra, vamos tentar abrir um pouco mais a cabeça desses moleques, colocar um pouco mais de postura na revista’. Encomendei para o Cláudio Willer uma série em capítulos sobre a geração beat (movimento literário americano dos anos 1950, que reuniu autores como Jack Kerouac, William S. Burroughs e Allen Ginsberg). Todo mundo falava dos hippies, dos punks, mas ninguém aqui sabia de onde esses caras tinham vindo. O embrião de tudo isso estava no comportamento libertário dos beats”.
Ao longo dos cinco anos em que foi publicada pela Circo, a Chiclete com Banana experimentou um sucesso comercial que possibilitou à editora lançar outras duas publicações, as revistas Geraldão, do impagável e inútil personagem de Glauco e a Piratas do Tietê, que libertou do espaço limitado das tirinhas da Folha de S. Paulo, o traço inconfundível de Laerte. Uma história de ascensão meteórica e queda vertiginosa, antecipada com a traumática chegada de Fernando Collor ao Planalto: “Vendíamos 80 mil e, já no mês seguinte ao plano da Zélia, despencamos para sete mil. Nunca tivemos anunciantes, a receita era feita nas bancas. Mas eu já achava que devíamos parar por ali. Se virasse uma revista muito profissional, perderia o encanto. Ficou para a história”.
Ratos sujos e redemocratização
Inimigo número um de certas aves de rapina que sobrevoam a capital do Brasil, Angeli desenvolveu em paralelo aos cartuns uma brilhante carreira de chargista político. Acompanhou de perto as transformações que o País experimentou e mensura com propriedade erros e acertos de todos os presidentes que conduziram o Brasil, depois da morte de Tancredo Neves. Demonstra antipatia pela postura “mauricinha” e soberba dos tucanos, mas também rechaça o que considera convenções antiéticas que levaram Lula ao poder e mantiveram-no inabalável ao longo de oito anos: “Tirando o Sarney, o Collor, e a sucessão de erros dos dois, acho que até o Itamar, de alguma forma, colaborou com o País. O FHC também fez coisas importantes, mas eu não suporto essa escolinha do PSDB. Eles têm o nariz muito empinado: ‘Oh, eu fiz Sorbonne’. ‘Participei de palestras com o Sartre!’. O FHC fez esse filme propondo debates sobre a maconha, aplaudo, mas essas questões têm de ser levadas à esfera política quando se está no poder, para elas realmente serem transformadas. Não adianta ter essa postura agora que ele está fora do governo. O Brasil avançou com o Lula, mas ele tolerou um monte de coisas graves, negociou com vários lados e, algumas vezes, seguiu o caminho errado. A Dilma está tendo pulso mais firme do que ele com relação a corrupção. O Lula fez coisas bem importantes, mas fez também outras bem negativas, como se aliar à corja do PMDB, um partido de ratos sujos, que vivem à sombra do MDB da ditadura, e vendem, até hoje, a ideia de que reformularam o Brasil. Temos uma oposição de ratos e não são aqueles ratinhos branquinhos, fofinhos, são ratões gordos e sujos procriando filhotes. Estão aí o neto do ACM, o filho do Cesar Maia e tantos outros…”
Crise, perdas e mutações
Aos 55 anos, três casamentos e dois filhos da segunda relação – o sonoplasta e artista gráfico Pedro, 30, e a professora de educação física Sofia, 26 –, Angeli é casado com a arquiteta e designer gráfica Carolina Guaycuru, 35. Braço direito do cartunista, Carolina assina a curadoria da retrospectiva Ocupação Angeli, no Itaú Cultural.
A exposição é oportuna para um balanço da carreira. Angeli é sereno ao mensurar a importância de seus personagens e generoso ao admitir que o momento é de tirar o pé do acelerador e dar passagem para os novos artistas que vêm por aí: “Estou em um momento de baixa criatividade, não sei exatamente o que desenhar e não me agrada mais a ideia de criar personagens, pois acho que os meus já cumpriram seu papel. Há algum tempo, vem surgindo uma nova geração de cartunistas, bastante influenciados por mim, pelo Laerte e pelo Glauco e eu olho o trabalho dessa molecada e, francamente, me pergunto ‘Por que é que eu vou continuar fazendo isso? Eu já fiz isso! Por que é que eu vou concorrer com um moleque que está começando a descobrir o caminho dele agora?’. Para mim, é fundamental envelhecer com dignidade”.
A propósito do seu comentário, questionado sobre o que acha dos esforços empenhados por jovens cartunistas para regulamentar a profissão (leia a matéria a seguir), Angeli defende que envelhecer com dignidade também passa por condições dignas de vida, mas se diz alheio a essas reuniões: “Acho válido, mas, sendo bem sincero, prefiro não frequentar. Acho um puta saco ficar em um ambiente desses, onde só se fala de cartum. Regulamentar a profissão e dar garantias mínimas é fundamental, mas também acho que uma profissionalização excessiva tiraria parte do encanto do ofício”.
Encerramos a entrevista com dois assuntos polêmicos e inevitáveis: a trágica perda do amigo Glauco e, o mais ameno deles, a recente mutação de Laerte: “Me divirto com isso, pois o Laerte já tinha essa coisa, vivia falando ‘acho que sou bi, sou gay’, mas acho que só agora ele encontrou uma saída e eu também estou precisando achar alguma, que não sei qual é, mas com certeza não será me travestir de mulher. Já o Glauco foi o cara que mais fez jus ao predicado hippie. Éramos meio carrancudos, veio o Glauco com aquelas tirinhas e eu, mesmo na minha fase mais riponga, não conseguia fazer essa piada por piada, tinha a pretensão de ter algum viés político, só que a piada pela piada do Glauco era brilhante. A amizade que tivemos trouxe muito frescor a nossos trabalhos. A perda do Glauco é uma ausência profunda. Ele cumpria um papel importante e ficou esse vazio”. Nossa conversa foi registrada em São Paulo, no bairro nobre de Higienópolis. Angeli, como Artacho Jurado (que projetou o cultuado prédio onde vive o cartunista e era odiado por seus pares por não ter formação em arquitetura), também driblou convenções e impôs seu grande talento.
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