Do desbunde ao jet set

Início de noite na Praça São João, o popular Quadrado, que fica no centro de Trancoso. Foto: João Farkas
Início de noite na Praça São João, o popular Quadrado, que fica no centro de Trancoso. Foto: João Farkas


Impressionado com 
a ascensão da contracultura no Brasil, o compositor carioca João Roberto Kelly escreveu, em 1974, o samba-rock Hippie de Boutique. Na letra, ele debocha: “Minha hippie de boutique, minha andrógina bacana / quem me dera que eu tivesse, por um minuto, metade da sua grana”.

Atento às transformações comportamentais, Kelly, que é autor de marchinhas antológicas, como Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão, zombava de parte da juventude brasileira que mesmo adepta do desbunde não se desvencilhava de privilégios burgueses. Naquele início assombroso de década, com o País sob o comando do general Médici e imerso no regime de exceção do AI-5, houve, de fato, quem decidisse cair fora em busca de paz em refúgios idílicos. Caso dos primeiros jovens de outros estados que, em 1973, descobriram Trancoso, distrito de Porto Seguro, no litoral sul da Bahia. Ironicamente, desde os anos 1990, o antigo segredo dos hippies tornou-se destino da alta sociedade e de celebridades, como os jogadores Neymar e Daniel Alves, a cantora Beyoncé, o ator Will Smith e as modelos Kate Moss e Naomi Campbell.

 

Nativos fazem mutirão para construir a casa de barro de Bernarda. Empunhando uma garrafa de Jurubeba (à dir.), seu Flô. Foto: João Farkas
Nativos fazem mutirão para construir a casa de barro de Bernarda. Empunhando uma garrafa de Jurubeba (à dir.), seu Flô. Foto: João Farkas

Gradativa, a transformação da pacata vila de pescadores, fundada em 1586 por jesuítas, em paraíso do desbunde é retratada em Nativos e Biribandos – Memórias de Trancoso, livro das jornalistas Fernanda Carneiro e Cristina Agostinho, lançado em 2004, que acaba de ganhar reedição ampliada.

Narrado por meio de relatos de ex-hippies e de populares, a obra é repleta de histórias deliciosas e lições de convívio entre gente muito diferente. Mais de 200 fotos de João Farkas complementam a publicação com a exuberância das paisagens de Trancoso e a beleza de seu povo.

No Quadrado, amplo espaço de lazer comunitário, crianças brincam em um pau-de-sebo. Foto: João Farkas
No Quadrado, amplo espaço de lazer comunitário, crianças brincam em um pau-de-sebo. Foto: João Farkas


Biribando (expressão indígena que significa forasteiro) de primeira hora, Farkas conheceu o vilarejo em 1976, quando nem sequer havia ali energia elétrica, implantada dois anos mais tarde. Até 1993, o fotógrafo, que é filho de Thomaz Farkas (1924 – 2011), um ícone da história do ofício no País, fez mais de 15 mil registros. “Decidi vir para cá com uma amiga. De Porto Seguro, viemos a pé. Quando subimos a ladeira e avistamos o Quadrado, não pude acreditar no que vi”, relembrou Farkas durante visita de nossa reportagem à exposição Trancoso: Espelho da Maravilha, no espaço cultural Casa das Festas, sediado na Praça São João, o popular Quadrado.

 

A menina Maíra, uma das muitas crianças retratadas por João Farkas na série de fotos clicadas entre 1976 e 1993. Foto: João Farkas
A menina Maíra, uma das muitas crianças retratadas por João Farkas na série de fotos clicadas entre 1976 e 1993. Foto: João Farkas

A mostra de Farkas, que até 14 de maio permanece em cartaz na galeria Pedro Darzé, em Salvador, integrou a programação paralela do Música em Trancoso, festival de música clássica e popular que, em 2016, chegou à quinta edição. Ao confirmar a entrevista, Farkas fez questão de convidar três dos personagens que retratou. Nativos, seu Flô, 82 anos, e dona Cleusa, 74, juntaram-se à Morena Leite, 36, que,  meses após nascer em São Paulo, foi a Trancoso com os pais na traseira de um velho Gurgel e por lá viveu até os 15 anos, quando partiu para a Inglaterra. Formada em Gastronomia na escola Le Cordon Bleu, em Paris, Morena alterna momentos de maior permanência em São Paulo, onde tem o restaurante Capim Santo, e visitas regulares a Trancoso.

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Para ela, as transformações do local são positivas. “Meus pais levaram uma vida alternativa até os anos 1990, quando o vilarejo virou point do jet set. Com a chegada dessa terceira turma, Trancoso virou um balaio de gato, mas há espaço para todos.”

Tímido, seu Flô é, no entanto, figura das mais populares entre os nativos, graças a um motivo nobre: ele é um dos patronos do samba local. “Onde tem samba eu estou. Muitos deixaram o samba de lado, mas em Trancoso ele ainda é a alegria do povo”, diz.

 

Morena Leite, seu Flô, dona Cleusa e João Farkas: personagens de Trancoso. Foto: João Farkas
Morena Leite, seu Flô, dona Cleusa e João Farkas: personagens de Trancoso. Foto: Marcelo Pinheiro

De sua infância, dona Cleusa, que viveu mais tempo na roça, diz lembrar das brincadeiras de roda no Quadrado. Da vida adulta, ambos garantem que, por muito tempo, desconheceram a necessidade de dinheiro para sobreviver. Segundo eles, até os anos 1980, prevalecia o escambo. “Antigamente a gente não tinha ganho nenhum, mas nem precisava. Quando não tinha água encanada, a gente pegava água no rio e aproveitava para tomar banho”, diz dona Cleusa. No lombo de jegues, com balaios carregados de farinha de mandioca, eram frequentes as idas a Porto Seguro e Arraial da Ajuda para trocar a mercadoria por itens difíceis de se conseguir, como óleo, fósforos, sal refinado e querosene para os candieiros.

Com a liberdade típica do desbunde, Augusto Sevá e Isa Castro filmam o documentário "A Caminho das Índias", história narrada em "Nativos e Biribandos". Foto: João Farkas
Com a liberdade típica do desbunde, Augusto Sevá e Isa Castro filmam o documentário
“A Caminho das Índias”, história narrada em “Nativos e Biribandos”. Foto: João Farkas

Nas dezenas de imagens afixadas nas paredes da Casa das Festas, saltam aos olhos a cumplicidade entre Farkas e seus personagens. Algo que só foi possível, como  ele diz, porque havia uma relação mútua de descoberta e respeito. “Eles nunca tinham sido fotografados. A maioria deles não tinha a defesa psicológica que é tão comum em quem é retratado.  Em todos os retratos há esse olhar genuíno. Por isso, costumo dizer que olhei Trancoso como Trancoso me viu, com o mesmo amor e com a mesma poesia.”

"Nativos e Biribandos", Projeto Trancoso, 333 páginas. Foto: Reprodução
“Nativos e Biribandos”, Projeto Trancoso, 333 páginas. Foto: Reprodução


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