Dez anos de união fraterna

A partir da esquerda, Galo, Julia, Rafael, Leila, Felipe, Remi, Guto, Tomás, Ciça, Cabelo, Pedro e Marcos; embaixo da mesa, a nova geração, Dora (filha de Rafael) e Amora (de Guto). Foto: Pablo Saborido
A partir da esquerda, Galo, Julia, Rafael, Leila, Felipe, Remi, Guto, Tomás, Ciça, Cabelo, Pedro e Marcos; embaixo da mesa, a nova geração, Dora (filha de Rafael) e Amora (de Guto). Foto: Pablo Saborido

Na história recente da música brasileira, grupos de formação extensa dificilmente mantiveram longevidade. Um noneto, o grupo Abolição, liderado pelo pianista Dom Salvador, durou apenas dois anos, mas legou uma obra-prima, o álbum Som, Sangue e Raça, de 1971. Nove anos mais tarde, a Banda Sabor de Veneno, composta por 14 músicos e liderada por Arrigo Barnabé, foi o dínamo que deu vida ao anárquico Clara Crocodilo. A discografia do grupo, no entanto, cessou por aí. Na contramão, desafiando a complexidade de coexistência entre 13 artistas, o grupo paulistano Trupe Chá de Boldo celebra dez anos de som, estrada, três álbuns autorais, Bárbaro (2010), Nave Manha (2012) e Presente (2015), e parcerias baseadas em afinidades – entre elas, Tribunal do Feicibuque, do tropicalista Tom Zé.

No pacote de celebrações do primeiro decênio da Trupe estão previstos uma série de shows e um álbum de releituras de compositores admirados pela banda, além do recém-lançado Presente Pra Viagem (ouça), trabalho que traz versões em dub, mixadas pelo produtor nova-iorquino Victor Rice, do álbum Presente, o mais recente da banda, dedicado a Rayraí, trompetista, gaitista e clarinetista, morto em 2015, em decorrência de um câncer.

Para reverberar a fraternidade que há entre os membros da Trupe, propusemos à banda uma entrevista em formato inusitado: 13 perguntas sorteadas entre eles. A seguir o resultado dessa “loteria”.

CULTURA!Brasileiros – Como é possível estabelecer decisões democráticas em um grupo tão diverso? Aliás, é correto dizer que a Trupe é uma banda plural, ou a aproximação de vocês se deu mais por afinidades?
Gustavo Cabelo (guitarra) – Não acho que afinidade seja a palavra mais precisa. O que realmente nos une é a amizade. É uma relação de amor muito grande, um amor que transborda. Discordâncias e diferenças sempre existirão, mas tudo é resolvido da maneira mais horizontal. Talvez isso seja possível pela ausência de um chefe, ou pela falta de vontade de se pretender um líder. A amizade aniquila hierarquias. A vontade de fazer nos faz avançar quando surgem pequenas ou grandes questões.

Viver de música no Brasil é algo viável para uma banda com 13 integrantes?Leila Pereira (voz) – Viver de música no Brasil é difícil. Seja para um artista solo, seja para uma banda pequena ou para uma banda grande como a nossa. Principalmente nos tempos em que vivemos, em que o corte de recursos para o financiamento dos mais diversos projetos artísticos está cada vez mais frequente. Talvez por isso cada integrante da Trupe atue paralelamente em outras atividades, sejam elas no campo das artes, sejam fora dele. O interessante é que, ao mesmo tempo que a dificuldade limita de certa maneira nosso campo de atuação como banda (afinal, estamos há um bom tempo tentando realizar uma turnê em outras regiões brasileiras, como o Nordeste, por exemplo), ela é a base fundadora da Trupe, pois contribui com a diversidade, que é essencial à nossa produção musical. 

A realidade sociopolítica do País influencia a produção musical e o comportamento da banda? 
Julia Valiengo (voz) – A Trupe sempre procura se posicionar em relação às grandes questões sociopolíticas, não apenas através da música, mas também se expressando com fotos, vídeos e textos.  Não à toa gravamos em nosso último disco as canções Jovem Tirano, Príncipe Besta (Negro Leo) e Meu Tesão é Outro (Gustavo Galo, Ciça Góes, Felipe Botelho e Marcelo Segreto). Ambas falam de questões bem atuais e traduzem alguns de nossos incômodos. A canção Na Garrafa (Julia Valiengo, Gustavo Galo e Paulo Cesar de Carvalho), do Nave Manha, por exemplo, é uma música de amor, mas deixa clara nossa disposição em não aceitar aquilo que nos aborrece. Acima de tudo, ser uma banda independente e ter a liberdade de decidir cada passo que queremos dar é também uma posição política. 

Que predicados foram determinantes para definir os artistas e o repertório do novo projeto de releituras?
Pedro Gongom (bateria) – Como quase tudo que a gente fez até hoje, essa decisão passa muito pelo espaço afetivo da banda. Éramos um trio no começo e fomos crescendo até virarmos os 13 atuais. Do mesmo jeito, na nossa trajetória, sempre tentamos puxar para dentro alguns artistas queridos que passavam por perto. Para esse projeto paramos para lembrar de todo mundo que já tinha feito coisas com a gente, participado em disco, show. Todos os artistas que a Trupe já deu uma namoradinha. Depois disso discutimos calorosamente por mais 40 horas. 

Se tivesse de mencionar um momento memorável para a banda, qual seria?Guto Nogueira (percussão) – Jamais esqueceremos da sensação alucinante de ver a noite da cidade (São Paulo) invadir o palco do Auditório Ibirapuera. Aquele portão gigantesco se abrindo lentamente, revelando aos poucos aquela imagem absurda do jardim do parque e mais ao fundo a silhueta da cidade… Foi incrível! 

Se tivesse de mencionar um episódio a ser esquecido pelo grupo, qual seria?Marcos Mumu (sax tenor) – Uma vez fomos ao estúdio da Rede Globo gravar uma música para o Programa do Jô. Montaram um palco, encheram o espaço da plateia com uma molecada bem nova, que não conhecia o nosso som, e mandaram eles ficarem gritando como se fossem fãs. “Se não gritar alto não ganha o sanduíche no final”, dizia uma voz que vinha das caixas de som. Não bastasse o constrangimento, no meio da gravação o diretor decidiu que queria outra música, não mais a que havíamos combinado com eles e ensaiado. Na semana seguinte fomos avisados que “por conta de um problema técnico” a gravação não iria ao ar.  Padrão Globo de qualidade.

Acredita que seja possível rotular a sonoridade da banda em um gênero musical consolidado? Caso sim, que gênero seria esse? Caso não, por que não é possível?
Cuca Ferreira (sax barítono) – Acredito que atualmente gênero na música brasileira nem é mais uma questão musical. São muitos artistas, com histórias musicais e pessoais que por mais que tenham muito em comum acabam por trazer uma variedade de influências e propostas sem fim. Mas havendo a necessidade, a explicação do som está bem definida na letra da música Splix, do Nave Manha:
SambaRumbaCumbiaGuarañaPopPunkPolkaIndieRockAmyMpbMiMaiorTomzé!

Nesses dez anos é possível afirmar que vocês e outros artistas criaram uma cena musical representativa da geração à qual pertencem? Nesse contexto, qual o lugar da Trupe?
Felipe Botelho (baixo) – Nossa geração teve de construir uma nova maneira de produzir música e se relacionar com o público. A própria criação musical foi transformada por este novo cenário, e acho que refletimos isso. Dentro da cena de São Paulo alguns artistas estão rompendo barreiras da música independente, flertando com um público mais amplo e com as mídias mais tradicionais, colocando músicas em novela, por exemplo. A Trupe ainda se mantém como uma banda independente, o que é ótimo. Apesar de Na Garrafa ter tocado na TV e ter chegado em vários lugares do País, ainda temos um lugar mais underground. Não só pelas dificuldades de ter uma banda com tanta gente, mas também pelo fato de, apesar de sermos uma banda pop, termos um lado mais experimental, menos comercial, no nosso som.

Como é possível unificar as proposições individuais do grupo na hora de definir os arranjos?
Remi Chatain (sax alto) – Os arranjos são feitos em grande parte de forma coletiva durante os ensaios da banda. Não existe uma regra, uma metodologia fixa. Às vezes alguém traz uma ideia de groove, uma linha de baixo ou guitarra ou uma parte instrumental para experimentar com os sopros e nem sempre as coisas se conjugam. Daí é preciso descartar ideias e apostar em outras. Quase sempre as escolhas nos levam a ideias completamente diferentes.

A banda colaborou com Tom Zé, inclusive, em parcerias autorais. Que artistas de outras gerações despertam em vocês o mesmo desejo de diálogo?Ciça Góes (voz) – Essa coisa de geração é deliciosa. Na proximidade entre elas a diferença fica muito na cara e ao mesmo não, quando você e a outra pessoa estão bebendo da mesma garrafa, lendo a mesma manchete do jornal e olhando um para o outro em seguida. Uma coisa para se celebrar. Nesse sentido podemos falar que gostaríamos de tocar com Arnaldo Antunes, ou com Pepeu Gomes, por exemplo, mas também com gente desconhecida e de quem ainda não conhecemos o som.

Que impactos a perda do amigo Ray exerceu sobre as relações interpessoais e o processo criativo da banda?
Rafael Werblowsky (percussão) – Acho que mais fácil é falar da presença dele. O Ray era meio ranzinza, ao mesmo tempo que tinha um baita humor. Tocava gaita, trompete e clarinete e tinha grande conhecimento de teoria musical. Acho que, nos anos em que esteve com a gente, ele enriqueceu o som da banda.  Sempre dava ideias boas para os arranjos (o de Se Eu for Parar, de Nave Manha, por exemplo, foi quase todo pensado por ele), sem contar a parte do convívio, da amizade. Sobre a morte, é mais difícil falar. O Presente, nosso último disco, é dedicado ao Ray.

Nos próximos dez anos, é razoável vislumbrar que vocês estarão juntos? Tomás Bastos (guitarra) – Bom, razoável acho que é, mas eu prefiro não projetar tanto. Não estou dizendo que não vamos estar juntos, mas que talvez não importe tanto pensar nesse futuro distante. O maior desafio é a construção cotidiana, manter uma renovação diária com tesão. Como canta a Iara Rennó em um de seus discos novos “a cada aurora sou uma nova a toda hora um pouco mais”. Agora, pensando que somos 13, essa renovação do grupo e de cada um dos indivíduos ganha outras proporções. Vem como uma força gigante dentro do nosso coletivo e de alguma forma é um disparador, move nosso som, faz com que nunca saibamos exatamente o que somos, ou como estamos. Penso numa banda um pouco como um namoro, só que entre muita gente, e acho que a projeção de maneira geral pode dar em coisa errada. Pessoalmente, posso dizer que quero fazer som dentro desse coletivo até o fim da minha vida, mas sei que se isso acontecer vai ser de um jeito que nem eu nem ninguém da Trupe pode imaginar.

Em termos de influência criativa, existem artistas que são unânimes para vocês? Quem são eles?
Gustavo Galo (voz) – Unanimidade é algo muito distante da Trupe. Estamos sempre em movimento, animados pelas tensões, pelas dissonâncias. Até mesmo em relação às chamadas influências. Elas variam muito entre os integrantes da banda. Em alguns momentos nos aproximamos mais de determinados artistas. E muitas vezes nasce uma amizade que afeta bastante o nosso trabalho. Então, para um artista influenciar a Trupe, somado ao trabalho que ele desenvolve, tem que conviver, tem que dar tesão de estar junto.

MAIS
– Veja abaixo o clipe de Na Garrafa, do álbum Nave Manha 
 


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