Pier Paolo Pasolini ainda surpreende, passados 40 anos da sua morte trágica, quando foi espancado e atropelado pelo próprio carro, num crime envolvendo um garoto de programa. É bem provável que poucos no Brasil conheçam a obra literária do diretor de Teorema, Decameron e Saló ou os 120 Dias de Sodoma, ainda que ele já fosse escritor famoso e bastante difundido (e discutido) na Europa bem antes de sua entrega ao celuloide. A lacuna começa a ser preenchida com o lançamento de um precioso e cuidadosamente editado recorte de seus poemas.
Foram cerca de 12 livros de poesia publicados em vida – uma vida curta, mas extremamente prolífica. E outro tanto de romances, contos, peças, traduções, artigos e ensaios. Pasolini era, na acepção mais clássica de Sartre e Camus, o intelectual público, que estava sempre no centro das discussões essenciais do país. Posição a que se aplicava com razão e paixão, dois elementos que se mesclavam com força inusual em seus textos e polêmicas (“Minha existência privada/já não se encerra entre as pétalas duma rosa/uma casa, uma mãe, uma paixão tormentosa./É pública. E até o mundo que me era alheio/de mim se aproximou, familiar,/e se deu a conhecer, pouco a pouco,/a mim se impondo, necessário, brutal”).
Homossexual assumido e comunista não ortodoxo, embora filiado ao partido, considerava-se, antes de tudo, um poeta, como assinala o italiano Alfonso Berardinelli em seu excelente prefácio. Berardinelli também é organizador desta coletânea bilíngue, juntamente com o ótimo tradutor Maurício Santana Dias. A edição ainda traz um texto curioso da especialista Maria Betânia Amoroso, que relembra como os poemas de Pasolini foram recebidos no Brasil em traduções esparsas ao longo dos anos.
A primeira coisa que chama a atenção é a variedade de formas e a liberdade de temas que insuflavam seus versos. Por vezes extremamente burilados e experimentais, quando não retóricos e inflamados, e em outros casos assemelhando-se a anotamentos informais de um diário ou mesmo a uma conversa direta com o leitor, os poemas do mestre nascido em Bolonha, em 1922, de pai militar e mãe professora, podem provocar tudo, de repulsa a admiração fervorosa, menos indiferença. O grande crítico norte-americano Harold Bloom considerava que Pasolini era o maior poeta europeu do século 20. Menos impressionado, Otto Maria Carpeaux, ele mesmo uma referência de intelectual público no Brasil, via muitas qualidades na lírica pasoliniana, mas achava-o inferior a Montale.
Poema
Eu sou uma força do Passado.
Só na tradição consiste meu amor.
Venho dos escombros, das igrejas,
dos retábulos, das aldeias
abandonadas dos Apeninos ou Pré-Alpes,
onde viveram meus irmãos.
Vago pela Tuscolana feito um louco,
pela Appia como um cão sem dono.
Ou vejo os crepúsculos, as manhãs
sobre Roma, a Ciociaria, o mundo,
como os primeiros atos da Pós-História,
aos quais assisto, por privilégio de registro,
da borda extrema de uma era
soterrada. Monstruoso é quem nasceu
das entranhas duma mulher morta.
E eu, feto adulto, perambulo
mais moderno que qualquer moderno
a buscar irmãos que não existem mais.
Sexualidade, ideologia, vida pessoal, política, crítica social, mitologia e mesmo cinema estão entre os muitos assuntos tratados por ele. Num de seus poemas mais famosos (senão o mais), “Cinzas de Gramsci”, coloca-se no cemitério em que está enterrado o maior nome da refinada intelectualidade comunista na Itália (e talvez na Europa) e se dedica a um longo diálogo com aquele que foi um de seus modelos e que é, até hoje, o que se poderia chamar de herói e mártir da esquerda (Gramsci foi preso e torturado por 11 anos, tendo escrito boa parte de sua obra em circunstâncias desumanas na cadeia). Um diálogo que também trava consigo mesmo, de modo hamletiano: “sem teu rigor subsisto/porque não escolho/Vivo na abulia deste póstumo pós-guerra: amando/o mundo que odeio – em sua miséria/desdenhosa e perdido – por um obscuro/escândalo da consciência…”.
Frequentemente incompreendido (“a morte não está/em não poder comunicar/mas em não poder mais ser compreendido”), de ambos os lados do espectro ideológico, Pasolini professava uma certa nostalgia da cultura popular em detrimento da modernização trazida pelo consumo de massas, que para ele padronizava e empobrecia a riqueza imaterial da Itália em sua diversidade. Não à toa, escreveu muitos dos primeiros versos em dialeto. Defendia o homem comum, o operário, a prostituta, os jovens sensuais e desocupados, a vida rural e das periferias, e lutava ferozmente contra o neocapitalismo da burguesia “moralmente fascista” e a Igreja conservadora, em artigos para a grande imprensa, discursos e entrevistas.
Era, evidentemente, incansável. A entrada no mundo do cinema, com sua participação no roteiro de La Dolce Vita, de Fellini, foi uma necessidade de buscar nova linguagem para suas ideias, que não cabiam em um só formato.
Por conta de sua postura peculiar, antimoderna, ou, paradoxalmente, “mais moderno que qualquer moderno”, dizia-se uma “força do passado”, tal como no poema tirado do livro Poesia em Forma de Rosa (reproduzido no quadro). No mesmo livro há o cinematográfico “Uma Vitalidade Desesperada”, no qual mistura citações do Acossado, de Godard, a uma frase da Divina Comédia, e diz, algo premonitoriamente: “sou como um gato queimado vivo,/pisado pelo pneu de uma carreta,/enforcado por rapazes numa figueira”.
Foi embora muito cedo, com pouco mais de 50 anos.
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