Bem próximo ao burburinho turístico da metálica Potsdamer Platz, em Berlim, há um prédio construído em 1912, que acolheu algumas das mais significativas gravações da história do rock. Na imponente praça, o edifício fica ao lado do extinto muro que dividiu a cidade em duas – uma Berlim ocidental e capitalista; outra, oriental e comunista – entre 1961 e 1989. As paredes da secular construção, com cinco pavimentos, testemunharam o desenrolar da própria história da cidade, mas nenhum general da SS, a polícia nazista de Adolf Hitler, poderia imaginar que sua majestosa sala no andar térreo, cenário de festas e concertos para o Terceiro Reich durante a Segunda Guerra Mundial, mudasse radicalmente de vocação e passasse a funcionar como um QG de experimentações sonoras durante as décadas de 1970 e 1980.
De David Bowie a Depeche Mode, passando por Tangerine Dream, Nina Hagen, Iggy Pop, David Byrne, Nick Cave & The Bad Seeds, Siouxsie and the Banshees, Einstürzende Neubauten e U2, artistas que flertaram com atmosferas sombrias, sonoridades eletrônicas e com o rock industrial foram conferir ecos de um rico passado e gravar seus discos na grande sala do Hansa Tonstudio, o legendário estúdio de som alemão, que segue em plena atividade no número 38 da Köthener Strasse.
Em 1965, os irmãos Peter e Thomas Meisel, envolvidos com negócios musicais, abriram o Hansa em Berlim, em um antigo estúdio da gravadora Ariola. Em 1976, decidiram comprar e restaurar o combalido edifício de cinco andares da Köthener Strasse – o prédio foi atingido por uma bomba em 1943 e era o único sobrevivente de concreto em meio a um deserto de ruínas. A vizinha praça Potsdamer, antes vibrante centro comercial da cidade, virou local inóspito, sem interesse imobiliário, depois que o muro foi erguido, em 1961. Incentivados pelos bons preços da região, os irmãos decidiram criar ali uma ambiciosa casa de produção de música – espécie de ilha sonora posicionada dentro da enorme ilha que se tornou o lado ocidental de Berlim.
No auge das atividades do estúdio, entre a inauguração e meados dos anos 1990, havia cinco salas espalhadas pelos andares do edifício e dez engenheiros de som contratados. Naturalmente, o mais cobiçado espaço de gravação era o estúdio 2, a monumental sala do térreo, que ficou internacionalmente conhecida como The Big Hall by the Wall. “O muro ficava a 100 m daqui. Podíamos ver os soldados da torre de controle, com seus binóculos e armas… E eles também deviam nos observar”, diz Tom Müller, ex-gerente e um dos ex-engenheiros de som do estúdio, enquanto conversamos no imponente ambiente, com teto altíssimo revestido de madeira adornada, em frente à janela que hoje dá vista para os outros prédios. “Isso aqui era rock’n’roll!”
Nesses dias áureos narrados por Müller, a sensação de isolamento e privacidade nas dependências do Hansa não vinha apenas pela falta de vizinhos, mas também por não haver contato visual entre os músicos e os engenheiros de som – um circuito de câmeras e telas fazia a comunicação, pois a sala de controle era no mesmo andar, mas remota. Por outro lado, o silêncio absoluto dos arredores desabitados inspirou algumas gravações do lado de fora do prédio. “Era tão calmo que gravamos até Nina Hagen cantando à capela.”
A qualidade de som, carimbada com o selo alemão de eficiência, e a peculiar acústica do estúdio 2, eram ímãs para grandes nomes do pop e do rock. Müller comenta sobre o quanto a propriedade de reverberação da grande sala foi decisiva para o timbre de bateria do Depeche Mode, que mixou e registrou parte do álbum Construction Time Again (1983) e do seguinte Some Great Reward (1984) no Hansa. “Eles gravaram no estúdio do andar de cima, mas reproduzimos o som em um PA (grandes caixas de som, que são direcionadas ao público, nos shows) na grande sala e gravamos de novo, o que trouxe um timbre especial à bateria, que eles seguiram usando.”
Mas a maioria dos artistas estrangeiros também elegeu o estúdio para respirar a atmosfera musical de vanguarda de Berlim. Em entrevista dos anos 1990 à alemã Alert Magazine, Martin Gore, vocalista do Depeche Mode, disse: “Gostávamos de Berlim porque bandas legais como o Einstürzende Neubauten vieram de lá, era exótico para nós. Quando nos sugeriram gravar no Hansa, gostamos da ideia. Foi excitante, um período incrível” – a propósito, segundo consta do rol de lendas que envolve o estúdio, a sensação de privacidade e isolamento teria sido tamanha para Gore que ele cantou uma música nu.
Do camaleão ao iguana…
Em 1977, um dos motivos que atraiu o camaleão David Bowie, o mais notório cliente do Hansa, até Berlim foi também a crescente cena local de música experimental – a Alemanha vivia o auge do chamado krautrock, movimento jovem que revelou bandas como Can, Faust, Guru Guru, Neu! e Kraftwerk –, além da busca por um estilo de vida diferente depois de um vício desenfreado em cocaína nos Estados Unidos. “É uma cidade terapêutica para artistas. Ninguém nota você, é preciso fazer as coisas por si mesmo. Eu era totalmente anônimo em Berlim”, disse o astro em recente entrevista televisiva.
Admirador de bandas embrionárias do krautrock como o Neu!, que fez sua estreia fonográfica em 1972, Bowie passava por nova mutação de estilo e escolheu o Hansa para concluir a gravação e a mixagem de Low (1977), primeiro álbum da chamada Trilogia de Berlim, produzido por Tony Visconti com significativa colaboração de Brian Eno. “Bowie gostou da sala desde a primeira visita, e Visconti apreciou o modo alemão de funcionamento do estúdio. Tudo estava posicionado e pronto para ser usado”, lembra Eduard Meyer, outro engenheiro de som da época, que acompanhou as gravações de Low e tocou violoncelo na faixa Art Decade. (Cabe, aqui, esclarecer dois equívocos recorrentes sobre Bowie: apesar do nome Trilogia de Berlim, defendido por fãs e pelo próprio artista em algumas entrevistas, apenas Heroes, sucessor de Low, foi integralmente gravado na Alemanha; o ex-Roxy Music, Brian Eno não produziu nenhum dos três discos, todos tiveram a condução de Visconti.)
Enquanto gravava Heroes (também lançado em 1977), Bowie costumava ficar na grande sala para escrever as letras do álbum usando a técnica de livre associação. Foi de lá que avistou, à beira do Muro de Berlim, a cena que o inspirou a compor uma das estrofes da emblemática faixa-título, na qual o muro tem papel central (“I can remember/Standing by the wall/And the guns shot above our heads/And we kissed/As though nothing could fall” – em tradução livre Posso lembrar/Encostados no muro/Armas dispararam sobre nossas cabeças/E nós nos beijamos/Como se nada pudesse cair). Por muito tempo, acreditou-se que Bowie tinha visto um casal qualquer, mas recentemente ele revelou: os protagonistas do beijo que testemunhou eram o produtor Tony Visconti e a cantora alemã Antonia Maass – à época, eles eram casados.
Foi também na grande sala do Hansa que aconteceram as gravações de dois álbuns-irmãos lançados em 1977 pelo “Iguana“ Iggy Pop, The Idiot (produzido por Bowie, é o primeiro disco solo do ex-The Stooges e dialoga com as atmosferas introspectivas e eletrônicas de Low) e Lust for Life, coproduzido pelo amigo camaleão. Último LP da trilogia eletrônica de Bowie, Lodger (1979) foi gravado na Suíça e em Nova York. Em 1981, ele voltou ao Hansa para registrar o EP Baal, com canções da peça homônima escritas por Bertolt Brecht e vertidas do alemão para o inglês.
No primeiro semestre de 2013, Bowie revisitou os arredores do Hansa e outros lugares de Berlim, na nostálgica Where are we now?, primeiro single de seu mais recente álbum The Next Day. Os primeiros versos da canção falam sobre pegar um trem em Potsdamer Platz e o quanto isso poderia parecer inacreditável nos anos 1970 – missão impossível naqueles dias em que Berlim estava dividida pelo muro.
… Do U2 ao R.E.M.
A magia da grande sala do Hansa também magnetizou o supergrupo irlândes U2. Eles trocaram Dublin por Berlim em momento de crise criativa depois das críticas negativas ao álbum Rattle and Hum (1988). Decididos a navegar pelos mares não explorados da música eletrônica e dançante, seguiram o conselho do produtor de Achtung Baby (1991) – não por acaso, Brian Eno – e foram desenvolver algumas das músicas na Big Hall by the Wall. No entanto, o ritmo criativo foi mais lento do que o esperado pela banda. “A música precisa de certo ambiente para acontecer, no qual ela cresce. Quando entramos naquela sala, sentimos que ela era tão cheia de grandeza, que essa grandeza também nos visitaria”, diz Bono, no documentário From the Sky Down, que registra o tortuoso processo de criação no Hansa. Apesar da demora na chegada da inspiração, foi lá que a melodia de One, um dos grandes hits de Achtung Baby, surgiu para Bono.
“A sonoridade e os bons equipamentos atraíam e ainda atraem esses artistas, mas o principal é a atmosfera”, arrisca Sven Meisel, filho do fundador Thomas e atual dono do estúdio, que continua funcionando no segundo andar, em um amplo espaço, com três salas de gravação. Conversamos ao lado de uma enorme mesa de som Solid State Logic, de 56 canais e ele citou registros mais recentes no estúdio 1, como parte do álbum Collapse Into Now (2011), do R.E.M..
Com a queda do muro, aos poucos, a região de Potsdamer Platz foi revitalizada, e os preços dos imóveis subiram. Na contramão, a demanda da indústria fonográfica por grandes estúdios caiu. O que levou Sven a sublocar as outras salas – hoje há 15 outros estúdios no prédio. Atualmente, a grande sala do Hansa sedia eventos e concertos, assim como nas suas primeiras décadas, mas Sven explica que, se houver interesse, ela ainda pode ser usada para gravações.
Aos curiosos, é possível agendar uma visita ao Hansa em um tour feito pela agência de turismo Fritz Music Tours (www.musictours-berlin.com/hansastudiotour). Em uma cidade onde a música é tão atrativa até hoje, vale conhecer esse superestúdio que também ficou registrado na história do rock como um canal de inspiração para grandes produtores e grandes artistas. I
+5 (GRANDES) DISCOS GRAVADOS NO HANSA
Nina Hagen Band, CBS/1978, Nina Hagen
A garota do lado oriental de Berlim se envolveu com o punk na Inglaterra, nos primeiros dias do movimento. De volta à terra natal, gravou esse álbum de estreia com uma banda poderosa, que não consta do título à toa. A abertura é arrasadora, uma releitura de White Punks on Dope, do The Tubes, com letra em alemão. O ritmo acelera em Pank. Na acústica Naturtraene, Nina esbanja dotes líricos. O ex-gerente e engenheiro de som do Hansa, Tom Müller, é um dos coprodutores do disco.
Baal, RCA/1982, David Bowie
Produzido por Tony Visconti, esse EP é pouco conhecido, mesmo entre fãs de Bowie. Um equívoco a ser corrigido, pois aqui estão algumas das mais sensacionais performances do astro, que interpreta canções escritas por Bertold Brecht para sua peça Baal. As letras foram traduzidas do alemão para o inglês e ganharam interpretações comoventes. Ponto máximo: The Drowned Girl, de Brecht e Kurt Weill. Em tempo: Bowie interpretou o personagem Baal em uma adaptação da BBC.
Your Funeral… My trial, Mute/1986, Nick Cave & The Bad Seeds
O quarto álbum do cantor e compositor australiano com os Bad Seeds transpira desespero, em uma instigante colagem, com restos do pós-punk que se ligam a uma atmosfera industrial, emoldurando letras lancinantes e um canto falado desencantado. Blixa Bargeld, vocalista do Einstürzende Neubauten, era o guitarrista dos Bad Seeds – ele e Nick viviam grudados no estúdio nessa época, exercendo enorme influência musical mútua.
Halber Mensch, Some Bizarre/1986, Einstürzende Neubauten
Um ótimo álbum de introdução à música da mais representativa banda alemã de rock industrial. Nesse terceiro LP, eles incorporam elementos mais dançantes, que aparecem em meio ao noise de sua percussão (feita com ferramentas e instrumentos customizados). As linhas vocais de Blixa vão dos sussurros aos gritos primais, em um passeio dinâmico realçado na faixa Seele Brent. Já em Yü-gung (Fütter Mein Ego), ele berra o mantra: “Alimente o meu ego!”.
Tinderbox, Polydor/Geffen Records/1986, Siouxsie and the Banshees
Os ícones góticos consagraram-se de vez com este sétimo álbum, que flagra o momento em que o synth-pop ganhou maior terreno em meio às paisagens sonoras do pós-punk. O álbum revela a banda em plena forma. O hit Cities in Dust está aqui, assim como a expressiva Cannons, que mostra o canto de Siouxsie maximizado. A turnê mundial de Tinderbox passou pelo Brasil, no final de 1986. A banda fez shows em São Paulo, Santos e Rio de Janeiro.
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