Faz tempo que não surge no Brasil um grande escritor. Talentos jovens e promissores tivemos, sim, nos últimos trinta anos. Mas do porte e da envergadura de um João Ubaldo Ribeiro restam apenas dois: Rubem Fonseca e Carlos Heitor Cony, ambos com 88 anos de idade. A morte do escritor baiano, portanto, deixa as letras brasileiras órfãs de um mestre, de um peso pesado, daqueles capazes de sobreviver ao tempo e deixar romances e contos marcantes, inesquecíveis, eternos. João Ubaldo, que partiu após uma fulminante embolia pulmonar na madrugada desta sexta-feira, no Rio, não deixou apenas uma obra-prima, mas várias, em que escancarava seu estilo peculiar de preocupação e interesse por questões sociais e políticas. Fazia uma literatura de primeira linha e engajada, mas sem sectarismo, com independência e talento.
Duas das mais relevantes de seu repertório são, sem dúvidas, Sargento Getúlio, de 1971, e Viva o Povo Brasileiro, de 1984, uma obra monumental e uma celebração de seu amor pelo Brasil. A primeira é um exercício literário que costuma remeter críticos e resenhistas a Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, pela aparente complexidade narrativa, construída com esmero a partir muito mais da sonoridade da linguagem regional do que da construção por meio de um vocabulário peculiar – o baianês interiorano, o baianês soteropolitano, o sergipanês das caatingas e, no caso de Rosa, o mineirês do sertão. Apesar da sofisticação, é como se eles escrevessem para um leitor específico, o sertanejo que lhe emprestou o linguajar. Nos dois casos, ler em voz alta ou cantarolar o texto, para quem tem intimidade com os idiomas da caatinga, torna a leitura tão fragmentada mais fácil, compreensível e prazerosa. É uma falsa complexidade, de certo modo, que perpetua uma época, uma região, um povo.
Menino criado em Itaparica e no interior de Sergipe, jornalista formado em Salvador, na lendária “Tribuna da Bahia”, onde comandou a redação, João Ubaldo nunca deixou de ser um homem do povo, que virou jornalista do povo e escritor do povo e para o povo. Romance claramente engajado, como ressaltou ele, Sargento Getúlio, com sua trama tão enxuta e fragmentada, por exemplo, foi escrito a partir da vivência da infância no interior sergipano e revela em suas entrelinhas as questões seculares do sertão, a falta de comando oficial e da justiça, o poder dos coronéis e a triste sina dos pobres sertanejos. Dentro do gênero regionalista, o breve e intenso romance trata do tema o banditismo no sertão a partir da linguagem coloquial e repleta de regionalismos – alguns termos, aliás, teriam sido criados por ele próprio ao elaborar sua escrita. Em seu segundo livro, que rendeu elogios de escritores como Érico Veríssimo e Fernando Sabino, João Ubaldo ganhou o Prêmio Jabuti de 1972 como autor-revelação. Com o tempo, foi promovido ao status de obra-prima, traduzida para diversos idiomas.
Sua grande ambição literária, no entanto, foi, sem dúvidas, Viva o Povo Brasileiro, um catatau dentro do formato do romance histórico – embora baseado em fatos reais da história brasileira (ocupação portuguesa, vinda da família real, Estado Novo e Ditadura), os personagens que o conduzem são fictícios. Assim, a narrativa entrelaça tipos nascidos de sua imaginação com alguns dos episódios mais relevantes ocorridos ao longo de quatro séculos, entre 1647 e 1977. Boa parte do cenário é a sua amada Ilha de Itaparica, na Baía de Todos os Santos, em Salvador – alguns fatos ocorrem no Rio de Janeiro, São Paulo e Lisboa. Esse é o mote para João Ubaldo exercer sua veia crítica, ao satirizar com talento e inteligência a trajetória do Brasil, marcadamente com momentos de comicidade e escracho. Segundo ele, a miscigenação baseada no estupro, a crueldade com os escravos e a consequente mentalidade casa-grande e senzala que se enraizou nas elites brasileiras, a luta do povo negro pela sua libertação e sobrevivência, a hipocrisia, a devassidão e o jeitinho brasileiro são temas retratados de forma fidedigna na trama. Assim como Darcy Ribeiro, ele explica que, aos trancos e barrancos, o País deu no que deu. Entre risos e reflexões sobre nossas desgraças, um romance monumental que ainda espera a devida celebração.
Sim, João Ubaldo foi aquele genial escritor que deixou um best-seller: A Casa dos Budas Ditosos.
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