Ainda com as cortinas cerradas do palco do teatro Anchieta soa a voz de Francisco Alves numa gravação de 1939 de Aquarela do Brasil. Surgem quatro seres com camisolas de hospital e cabeções de moscas, representando uma pantomima com ares de teatro de revista; ao fundo se lê numa placa: “A nossa tragédia é toda sua”. Este é o prólogo de Leite derramado adaptação cênica feita por Roberto Alvim do premiado livro homônimo de Chico Buarque. No vasto palco se descortina a história de um país putrefato, narrada por Eulalio D’Assumpção, um aristocrata centenário, que agoniza na maca de um hospital público.
O diretor e dramaturgo Roberto Alvim conta que para criar o monólogo de Eulalio, para extrair o que ele chama de “consciência do Brasil”, ficou durante um ano debruçado sobre o livro. “No romance o discurso é muito enviesado, precisava colocar esse imaginário nacional, essa iconografia em cena, que o livro só tocava de forma indireta.” A adaptação passou por diversas versões até ser atravessada pelo atual momento político do país, em que o conservadorismo parece ditar nossos rumos. O retrocesso a que a arte está impingida foi motor para que a versão final assumisse um viés político. “O mundo da arte parece retroceder. A gente está tendo que voltar a questões que deviam estar resolvidas. Por exemplo: nos anos 1980 a Rogéria [travesti] ganhou o prêmio Mambembe, e isto não foi um escândalo ou um ato político, foi simplesmente uma atriz ganhando um prêmio.”
No centro desta cena está a atriz Juliana Galdino que, com sua voz performática, dilata o espaço e o tempo ao traduzir o universo decrépito deste homem que chegou com a corte portuguesa há 200 anos. Ao redor desta figura precária surgem, ora placas com elementos do folclore brasileiro – colocados de forma inanimada, ora personagens espectrais que rondam um universo mítico nacional. O imaginário brasileiro em tensão com o minimalismo característico dos trabalhos anteriores de Alvim produz uma estética em que os símbolos, arrancados de qualquer contexto, são esvaziados. Os atores, assim como todos os elementos em cena são iconográficos, objetos concretos, e funcionam como “explanadores do processo do Eulalio”.
A montagem de Leite Derramado deglute o cenário político atual e ressignifica poeticamente este terreno devastado. Uma aristocracia decadente e moribunda, o avesso da fome, explicita a oligarquia que está na raiz da miséria e da corrupção.
“A estrutura autodevoradora na qual as coisas parecem mudar. O leite derramado é o tempo perdido do país, se autodevorando, que se autodestrói, tudo parece mudar e se mantem igual.”
Assim como no romance de Chico a cena não segue qualquer linearidade narrativa –a demência da personagem fragmenta o discurso. Sob uma luz fantasmagórica e um desenho de som que conta com composições originais de Vladimir Safatle, as imagens desconcertantes invocam uma brasilidade deslocada, o que causa um rebote no conceito de nacionalidade, conjunto de signos prestes a desmoronar a qualquer instante. Leite derramado é uma polifonia furiosa, onde ecoam vozes da tropicália, modernismo, concretismo, Glauber Rocha, Darcy Ribeiro, Paulo Freire; uma sinfonia de imagens e sons.
SERVIÇO
Leite Derramado
Sesc Consolação – Teatro Ancheita
De quinta a sábado às 21h. Domingo às 18h.
Até 13 de novembro
Para mais informações, acesse.
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