Mestre dos mestres

Edgard Santos, reitor absurdamente tresloucado, queria fazer uma escola de música de altíssimo nível na Universidade Federal da Bahia e convidou Koellreutter que, de imediato, falou: “Não vou fundar uma escola de música com esse currículo ridículo do Ministério da Educação”. Edgard insistiu: “Koellreutter, faça a escola do jeito que você quiser. Pode dar um solene pontapé no currículo do Ministério da Educação”. Ele, então, aceitou o convite e fundou aquela escola pivete, em uma Bahia que vivia na Idade Média, mas em música estava muito “adiantada”, já estava no Romantismo do século XIX. Quando entrei em uma escola musical, me deparei com um livro que dizia: “Música é a expressão dos sentimentos através dos sons”. Em 1961, fui à aula inaugural de Koellreutter. Quando ele entrou na sala, pôs esse mesmo livro em cima da mesa e esbravejou: “Música não é a expressão dos sentimentos através dos sons, não é nada disso!”. Abri um olho que não tinha tamanho e, a partir desse dia, passei a ser marcado como uma pessoa que podia se surpreender.

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Outra coisa que Koellreutter detestava, instaurada na Bahia, era o pianismo. Qualquer moça que queria banir o avental de cozinheira fazia um curso de piano. Um dia, fui lá assistir a uma formatura. Pegavam quatro violinos, duas violas, dois violoncelos, formavam uma orquestra de corda de última hora, a moça fazia um concerto qualquer de Mozart e, pronto, estava formada e preparada para casar. Quando Koellreutter chegou à Bahia, existia essa cultura supostamente civilizada do pianismo e ele tinha horror a isso. Preferia os bárbaros. Era como um personagem de Joseph Conrad, civilizado e selvagem, e no pianismo tem esse negócio da pose. Quando apareciam alunos fazendo pose de Tom Sawyer pintando o muro da tia, Koellreutter via uma dessas criaturas e metia o pé no peito.

Era um selvagem mesmo. Os bárbaros da Bahia, como éramos eu, Lindembergue Cardoso, Fernando Cerqueira, Jamary Oliveira, nos formamos na escola que ele fundou, cujo diploma não valia nada, pois o MEC não a reconhecia. Mesmo assim, escolas do Brasil, da América e, possivelmente, do mundo se interessavam por nós. Acabei fazendo carreira em música popular e pensava que o que eu fazia jamais iria interessar a Koellreutter. A Carla Gallo, que fez o filme Tom Zé ou Quem é Que Irá Colocar uma Dinamite na Cabeça do Século, mostrou a ele um disco meu e ele ficou muito entusiasmado. Tivemos um reencontro e lembro que brinquei com ele: “Ê, professor, quando o senhor entrava na sala, aquelas meninas de família rica da Bahia ficavam com as pernas tremendo de emoção em um vibrato de terça maior”. Ele morreu de rir e disse: “É, e você vê como é, depois disso fui para a Índia, onde também sobra mulher!”. Então, Koellreutter serviu a Bahia, como também se serviu da Bahia. O que a Bahia tinha de mais saboroso, aquelas moças filhas de famílias ricas, ele também provou. A Bahia provou tudo que ele tinha de bom, e ele provou tudo de bom que a Bahia tinha para oferecer.


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