Modernidade ancestral

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O músico, pesquisador e produtor Alfredo Bello, o DJ Tudo (Foto: Luiza Sigulem)

Em uma sexta-feira de outubro, a reportagem da Brasileiros partiu de Pinheiros, bairro paulistano em que é sediada a redação da revista, até a Penha, mais precisamente na rua tornada célebre por ter acolhido por décadas o cantor e compositor Itamar Assumpção (1949-2003). Ao lado de Arrigo Barnabé, Itamar foi o principal expoente da chamada Vanguarda Paulista, movimento que redefiniu os caminhos da MPB no início dos anos 1980. Nosso destino não é a casa do saudoso Beleléu, vulgo de Itamar, mas a edificação térrea em que, há quatro anos, reside o músico, pesquisador e produtor fonográfico Alfredo Bello. Luiz Alfredo, nome de batismo do artista nascido em janeiro de 1972, em Juiz de Fora, Minas Gerais, como Itamar, faz de suas composições um manancial de provocações estéticas e persegue novas linguagens musicais desde 2007, quando incorporou o alter ego DJ Tudo.

Bacharel em contrabaixo pela Universidade de Brasília, ele é também um investigador de tradições ancestrais da música popular produzida no País. Faceta desenvolvida a partir de 2000, quando, municiado de um gravador DAT e de um microfone, emprestados do músico pernambucano Siba, passou a registrar ritos que, segundo ele, remetem a mais de 400 anos de heranças da cultura tradicional do País.

Nesta edição comemorativa da Brasileiros, Alfredo Bello foi escolhido para ser retratado neste perfil justamente por sua faceta, desconhecida do grande público local, de pesquisador voluntário obcecado por registrar, na maioria das vezes com recursos financeiros próprios, ou “eutrocínio”, como costuma brincar, um universo riquíssimo que, paradoxalmente, recebe atenção quase nula do meio acadêmico e da imprensa cultural do País.

A obsessão de Alfredo por manifestações que fundem ritmos sincopados à dança em tradições de sincretismo religioso, como o congado, o maracatu (urbano e rural), a caboclinha, a taieira, o jongo, o cateretê, o batucajé, a catira e a folia de reis, permite perpetuar e celebrar a diversidade inerente ao Brasil, país multicultural e multifacetado que inspira nome e conteúdo desta publicação, lançada em julho de 2007, e que agora celebra cem edições.

Há 15 anos, Alfredo Bello se dispõe, de maneira solitária, a fazer uma cartografia particular da produção musical de matrizes ameríndias e africanas presentes nos recantos mais profundos de nosso País. Repete, à sua maneira, trajetos perseguidos pelo escritor modernista Mário de Andrade, que também foi um pesquisador capital de nossa música popular entre os anos 1930 e 40, e pelo publicitário Marcus Pereira, que abandonou a carreira na propaganda para criar a gravadora Discos Marcus Pereira, responsável por lançar, entre as décadas de 1970 e 80, 179 obras que retratam parte significativa de um Brasil profundo e plural.

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Foto: Paulo Pereira

Diferentemente de Mário e de Marcus, que não desenvolveram trabalhos artísticos na música, Alfredo também faz de sua documentação alimento antropofágico para as criações do DJ Tudo, líder de um projeto autoral colaborativo, ancorado pela banda Sua Gente de Todo Lugar, que já resultou em cinco álbuns: Garrafada (2008), Nos Quintais do Mundo (2010), Nos Quintais do Mundo MelhorAo Vivo – registro que também resultou em DVD dirigido pelo cineasta Beto Brant –, Forró de Rebeca vs. DJ Tudo (2013) e Pancada Motor – Manifesto da Festa (2014), este último lançado na Inglaterra pelo selo local Far Out Recordings.     

Empunhando um contrabaixo Fender Jazz Bass manufaturado em 1975, ele lidera uma pequena usina de sons retroalimentada por sua pesquisa, com o apoio de quantos músicos nela couber – hoje, ele mantém duas bandas, uma no Brasil e outra na Europa, onde se apresenta regularmente.

Em 2004, a exemplo de Marcus Pereira, Alfredo criou seu próprio selo fonográfico, a gravadora Mundo Melhor*, que detém catálogo de 24 títulos. Além dos álbuns lançados sob a alcunha DJ Tudo, outros 19 pertencem à série BPF – Brasil Passado Futuro, dedicada ao registro de manifestações musicais espalhadas em quase todos os Estados do País.

“A música tradicional do Brasil, que não se encaixa no rótulo MPB, é quase música estrangeira em seu próprio país. A chamada MPB não dá conta de 5% da música popular do Brasil. Existem mais de cem grupos de congado só em Belo Horizonte. Eles tocam e produzem muito mais do que, por exemplo, as bandas de rock da capital mineira, mas fazem parte de uma cultura invisível, que está abaixo do alternativo, esquecida e segregada há mais de 400 anos”, diz Alfredo, minutos após a chegada de nossa reportagem à casa em que ele mantém um acervo de quase 15 mil LPs e compactos de vinil, espalhados por todos os ambientes imagináveis.

A força do canto de Dona Domitila, Dona Mocinha e Dona Maria Padeiro (da esquerda para a direita) levou Alfredo a convidá-las para gravações em seus álbuns autorais. Foto: Alfred Bello
A força do canto de Dona Domitila, Dona Mocinha e Dona Maria Padeiro (da esquerda para a direita) levou Alfredo a convidá-las para gravações em seus álbuns autorais. Foto: Alfred Bello

Dos bailes funk ao Mundo Melhor
Até os 28 anos, quando veio a São Paulo para morar com sua ex-mulher, a percussionista Simone Sou, Alfredo viveu em cidades do cerrado de Goiás e no Distrito Federal. Período iniciado a partir de 1975, em que sua mãe, Therezinha, viveu dias de incertezas e privações acompanhada do caçula Luiz Alfredo, então com 3 anos de idade, e das duas filhas mais velhas, Adriane e Andréia. Com a separação conflituosa do ex-marido, a matriarca decidiu partir para um lugar bem distante de Juiz de Fora e foi parar em Brasília.

Na rodoviária da capital federal, teve a ideia de fugir para Cidade Eclética, no interior de Goiás. O destino era, na verdade, um município independente, habitado por cerca de mil pessoas e idealizado por Oceano de Sá, um ex-aviador carioca, morto em 1985, que, desde o final dos anos 1940, também incorporava a persona do Mestre Yokaanam, líder místico que, em 1956, fundou a sede da Cidade Eclética Espiritualista Universal, no município de Santo Antonio do Descoberto. A chegada a um espaço povoado por cidadãos afeitos à caridade foi pontual para ajudar Therezinha a driblar as dificuldades financeiras daquela fase transitória, relembra Alfredo. “Minha mãe é muito espiritualizada e talvez tenha ido para lá por algum tipo de chamado. Se tivéssemos ficado em Brasília, teríamos passado fome. Tivemos muito apoio na Cidade Eclética. Estávamos no Brasil dos anos 1970. A desigualdade era muito maior.”

O pesquisador divide trabalhos com o produtor Mad Professor. Foto: Arquivo pessoal
O pesquisador divide trabalhos com o produtor Mad Professor. Foto: Arquivo pessoal

A estada no município esotérico durou dois anos. De lá, Therezinha partiu com os três filhos para Taguatinga, uma das 31 regiões administrativas do Distrito Federal, situada a oeste da Capital Federal. A permanência em Taguatinga, embora marcada pela violência cotidiana do local, relembra Alfredo, também fez despertar a primeira obsessão musical do menino, os bailes funk (claro, baseados no gênero original, criado por James Brown nos anos 1960). “Eu andava com uma turma que foi bem importante para minha formação. Com ela, comecei a ouvir funk por volta de 1980. Aos 8 anos de idade, já me arriscava a entrar numa roda de 300 pessoas para dançar. Adoro dançar o bom funk americano até hoje. Tem até um momento dos shows do DJ Tudo e Sua Gente de Todo Lugar em que eu brinco e falo para as pessoas que vou receber o espírito do James Brown.”

Na adolescência, depois de um ano e meio empregado no Ministério do Trabalho, Alfredo empenhou boa parte da rescisão trabalhista para a compra do primeiro contrabaixo, instrumento que abriu caminho para as primeiras experiências musicais em bandas de punk-rock. Em 1991, com o ingresso no curso de Ciências Sociais na Universidade de Brasília, onde passou a residir, teve início a vida acadêmica de Alfredo. Mas a paixão pela música falou mais alto e, após completar o segundo ano, ele trancou o curso para se tornar bacharel em contrabaixo acústico, em 1998.

Capas de “Pancada Motor – Manifesto da Festa”, quinto e mais recente álbum do grupo, e o recém-lançado “Gaia Music”, projeto que envolve parcerias no Marrocos, Índia e Mali. Foto: Reprodução
Capas de “Pancada Motor – Manifesto da Festa”, quinto e mais recente álbum do grupo, e o recém-lançado “Gaia Music”, projeto que envolve parcerias no Marrocos, Índia e Mali. Foto: Reprodução

Além da formação teórica, ele expandiu horizontes musicais ao integrar big-bands de jazz e a orquestra sinfônica da universidade. Em paralelo, formou com amigos a banda Os Cachorros das Cachorras, com a qual lançou um álbum homônimo em 1997, cultuado hoje como um experimento do cruzamento de ritmos estrangeiros e regionais como funk, dub, drum n’ bass, maracatu, xote e maxixe. Influência clara da revisão antropofágica proposta pela geração pernambucana do Movimento Manguebit. “No começo dos anos 1990, todo mundo queria ser inglês no Brasil. Dos artistas daquele período, Chico Science foi o cara que melhor resumiu a necessidade de a gente olhar para o Brasil.” Embrião das experiências de discotecário, Alfredo também criou, no mesmo período, em Brasília, uma festa intitulada Afrofuturismo, em que assumiu o codinome artístico DJ Tudo.

Em 2000, já em São Paulo, montou um estúdio e, ao lado do produtor Bid, fez um álbum de remixes do pernambucano Otto. Além de evidenciar seu interesse pela música eletrônica, o registro abriu caminho para uma carreira de produtor musical que já resultou em quase 50 álbuns de artistas independentes, entre os quais trabalhos de Junio Barreto e de grupos como Cérebro Eletrônico, Porcas Borboletas e Pedra Branca. Fora do Brasil, na Escócia, teve a oportunidade de, em 2002, trabalhar com dois mestres do dub jamaicano, os produtores  Lee “Scratch” Perry e Mad Professor.

DJ Tudo e os sete músicos da banda Sua Gente de Todo Lugar. Foto: Patrícia Chammas
DJ Tudo e os sete músicos da banda Sua Gente de Todo Lugar. Foto: Patrícia Chammas

O interesse por manifestações tradicionais foi despertado nesse mesmo período, na casa de uma amiga brasiliense, Jandira, antropóloga e documentarista. Ao cuidar da residência enquanto ela fazia uma viagem ao exterior, Alfredo teve contato com uma coleção de discos emprestados a ela pelo antropólogo e pesquisador britânico Terry Agerkop. Eram cerca de 90 títulos que compilavam produção africana, latina e indígena ao longo do século 20. A riqueza do que ouviu o fez abrir os olhos para a carência desse tipo de registros em nosso País e motivou as pesquisas da série BPF – Brasil Passado Futuro. Hoje, além dos 19 álbuns, Alfredo também acolhe em HDs de 4 terabytes mais de duas mil horas de registros inéditos.

A faceta de pesquisador levou Alfredo Bello a conhecer 19 países. Como sugere o nome de sua gravadora, Mundo Melhor, ele lançará no final deste mês um álbum produzido em parceria com músicos do Marrocos e da Índia, o primeiro registro de uma nova série chamada Gaia Music. Com isso, pretende abrir olhos e ouvidos de cada vez mais pessoas para heranças valiosas tratadas com indiferença e segregação veladas.

“As pessoas falam que o funk carioca sofre preconceito, porque é música do morro, música de preto, mas, há 400 anos, a verdadeira música de preto no Brasil é o congado. Hoje, em todo o País, existem grupos de jovens de classe média empunhando tambores de maracatu. Acho bem positivo, mas o que eles fazem não é maracatu. Eles criam blocos que tocam o ritmo, mas o maracatu vai muito além. É uma cultura riquíssima. Compreendo o contentamento deles com o ritmo, porque a vida nas cidades é muito medíocre. Tocar um tambor ajuda à resignificar o dia a dia. Nós ainda somos muito eurocêntricos no nosso fazer cultural. Então, por que é que vamos falar de preto velho, de índio?! Tudo isso ainda é estrangeiro em nosso País, mas faço questão de manter presente em meu trabalho.”

*Os 19 álbuns da série BPF – Brasil Presente Futuro e os álbuns autorais de DJ Tudo podem ser conhecidos no site selomundomelhor.org

 


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