Pé na Estrada, edição brasileira de On the Road, a brilhante estreia de Jack Kerouac, foi lançado no País em 1984. Há anos o romance era decifrado pelo poeta Claudio Willer e, por fim, ganhou tradução do gaúcho Eduardo Bueno. Dado o conhecimento de causa nas questões de prosa, poesia e peregrinação beat, o dramaturgo Antonio Bivar foi convocado, às pressas, para assumir as vezes de conselheiro de estilo de Bueno e evitar que palavras como cool fossem vertidas em gírias locais, como “tri-legal”. Descobri o livro, na transição dos anos 1980 para os 90 e, como tantos adolescentes do período, também tive meus acessos de punk de boutique. Via em Bivar, uma espécie de patriarca do movimento no País, pois entre tantas facetas ele é também o autor de O que é Punk, e o idealizador do Começo do Fim do Mundo, festival que propagou o gênero por aqui, em 1982. Esses foram os pontos de partida para a minha descoberta de que, por trás do nome Antonio Bivar, havia alguém cuja experiência de vida – fadada à generosidade do acaso, como ele próprio defende – daria um desses romances ou filmes apaixonantes. Vinte anos e sabe se lá quantos dias mais tarde, encontro-me na portaria do prédio em que ele reside, às 9h30 da manhã, para um dia camp e memorável, em Itupeva, a 74 km de São Paulo.
Longe daqui, aqui mesmo
Segunda-feira. Cidade vazia com o recesso do feriado do dia da República. Previsão do tempo otimista, depois de um fim de semana marcado por clima instável e garoa. A viagem para a Fazenda Santa Maria, em Itupeva, estava prevista para o sábado, mas convencemos Bivar de que seria melhor acatar a recomendação dos meteorologistas e cair na estrada somente na segunda. Aos 71 anos, ele vive sozinho, desde que a companheira de mais de 15 anos de grandes aventuras, a editora inglesa Jenny Thompson, faleceu em 2008. Mora em um antigo prédio na rua Fortunato, no bairro de Santa Cecília, região central da cidade. Peço ao porteiro para chamá-lo e, em poucos minutos, ele surge de “mala e cuia” para cair na estrada conosco. A postos e hesitantes em qual direção tomar, seguimos as orientações de Bivar que, em poucos minutos, nos conduz até a Marginal Tietê.
Por volta do km 25 da Rodovia dos Bandeirantes, estacionamos no acostamento para a primeira sessão de fotos, que rende a imagem de Bivar de polegar em riste, apontado para trás, pedindo carona. Aos desavisados, vale lembrar que ele rodou o mundo, viajando no melhor estilo beatnik: sem destino certo, com pouquíssimos recursos, um saco de dormir, e contando com a solidariedade de gente que o fisgava à beira da estrada. Não por acaso, sua biografia – que acaba de ser publicada pela Imprensa Oficial, assinada pela amiga e parceira de aventuras, a atriz e escritora, Maria Lúcia Dahl – ganhou o muito adequado título O Explorador de Sensações Peregrinas. Para se ter uma ideia, somente no Rio de Janeiro, em estadias nômades que variavam de um mês a um ano, Bivar residiu em 37 diferentes endereços. Dias antes, acabava de chegar da Turquia. Encarou um desses pacotes turísticos, com roteiro de atividades, acompanhado de um grupo de senhoras, eufóricas com o hábito de cantar e dançar uma seleção de “pérolas” do grupo baiano É o Tchan!. Um espetáculo decadente e divertido, definido por Bivar como um road movie. Horas mais tarde, chegamos a nosso destino. Longe daqui, aqui mesmo, na vizinha Itupeva
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Do Beco das Garrafas para as esquinas do mundo
De propriedade da família de Thereza do Amaral – que nos recebe junto aos amigos Walter Vetor, James Peret, Camila Picolo, Francisco França e Gregorio Gananian – a Fazenda Santa Maria foi fundada em fins do século XIX, para produção de café e, como tantas outras, sucumbiu com a crise de 1929. Desde então, vêm sendo arrendada para diversos fins pelos seus herdeiros. Para quem, como eu, nunca esteve na cidade, o contato com a paisagem, que remete as locações dos filmes de John Ford – repleta de extensos vales, cobertos por pedras e cactos – é algo deslumbrante. Na fazenda vizinha, a Santa Rita, de propriedade de outra família Amaral, cresceu a pintora modernista Tarsila. Montamos base no enorme casarão da fazenda por volta de 12h30 e, enquanto o almoço era preparado, fomos colher os primeiros depoimentos de Bivar. Nascido em São Paulo, ele passou a infância e adolescência na cidade de Ribeirão Preto. Diz ter a impressão que ela se tornou, hoje, uma ilusão de grandeza e pretensão, impregnada de torres residenciais de classe média alta, e uma vida uniforme, que em nada lembra a Ribeirão Preto de sua infância, repleta de banhos de rio e brincadeiras campestres. Lembra-se com entusiasmo das projeções de filmes em 16 mm, e do pai, homem afeito às artes e um trombonista de mão cheia. O ambiente culto de casa e um inusitado ingresso no sacerdócio mórmon – motivado pela possibilidade de aprender inglês e, ao mesmo tempo, tranquilizar a família católica, que preferia que o filho demonstrasse algum credo – fizeram com que o curioso menino Antonio quisesse aprender mais e mais. Uma experiência empírica que, define Bivar, pontuou sua vida: “Desde criança, eu sabia que as pessoas são incutidas a ser algo, mas eu não queria ser nada. Queria mesmo era ser criança e continuar curtindo a vida. Para mim, já estava muito bom. Tenho esse lado de imaturidade, do qual às vezes me arrependo, mas que carrego comigo até hoje”.
A incursão mormonista e a amizade com Alcyr Ribeiro Costa, homem muito culto que frequentava a igreja aos sábados, renderia, já no fim dos anos 1950, os primeiros contatos com a literatura existencialista de Simone de Beauvoir, Albert Camus e Jean-Paul Sartre. Quanto aos estudos formais? Um verdadeiro fracasso. Bivar confessa com um sorriso matreiro que se formou no ensino médio somente aos 23 anos: “Precisava fazer um prova decisiva para, enfim, ser aprovado, após dois anos de fracasso na mesma série. Sentei atrás do melhor aluno da classe. Eu tinha um olho de águia – que acho que perdi de tanto olhar para o sol tomando LSD – e colei a prova dele inteirinha. Uma coisa que nunca entendi: eu precisava de 9, para ser aprovado, tirei 9,5, e ele 9!”.
Se a escola estava em último plano, um caro interesse levaria Bivar ao Rio de Janeiro. Entre tardes e noites de boemia no Beco das Garrafas – antro da bossa nova e do samba jazz – deu-se por convencido de que queria ser ator e ingressou no curso do Conservatório Nacional de Teatro. Atuou em peças de Beckett e Shakespeare, mas descobriria, em 1967, que sua grande vocação era mesmo a dramaturgia, ao escrever e encenar, com o amigo Carlos Aquino, o misto de teatro e happenning, que ganhou o hilário e extenso título Simone de Beauvoir, Pare de Fumar, Siga o Exemplo de Gildinha Saraiva e Vá Trabalhar. O texto caiu no gosto da crítica e, logo, Bivar escreveria outras duas peças de grande sucesso – O Começo é Sempre Difícil e Cordélia Brasil (encenada em 1968, com Norma Bengell como protagonista). Em meio a um teatro engessado pela polarização ideológica da ditadura, Bivar colocaria em pauta horizontes mais amplos, que passavam a milhas de distância do embate político proposto pelo teatro de protesto de companhias, como o Arena. Sobre essa aparente alienação, Plínio Marcos chegou a declarar: “Enquanto estamos lutando pelo arroz e feijão, lá vem o Bivar com a sobremesa!”.
Para desgosto dos desafetos, a terceira peça de Bivar, Abre a Janela e deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manhã, com Yolanda Cardoso, foi mais um estrondoso sucesso. Grande vencedora de um prêmio concedido pela Air France – que além de dinheiro, dava passagens de ida e volta a Paris. Às vésperas do AI-5 e com o nome na lista dos subversivos que teriam a cabeça posta a prêmio, o dramaturgo partiria para Londres – “O melhor lugar do mundo para se ficar, em 1969!” – em um autoexílio, ao lado de artistas como Jorge Mautner, Helena Ignez, Caetano Veloso, Rogério Sganzerla, Jards Macalé, Gilberto Gil e o “irmão” e também dramaturgo Zé Vicente. Os anos loucos em Londres e as peregrinações ao redor da Europa renderam ricas experiências e aventuras pitorescas, narradas nos romances memoriais Verdes Vales do Fim do Mundo e Longe Daqui Aqui Mesmo. De volta ao Brasil, em 1972, ele escreveria a ultrafeminista Alzira Power e seria reconhecido como um dos grandes autores de nosso moderno teatro. Cordélia Brasil, Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manhã e Alzira Power, três marcos da carreira teatral de Bivar, também acabam de ser compiladas e lançadas em um único volume pela Imprensa Oficial.
Quem tem medo de Bivar?
Bivar é de uma serenidade contagiante. Seu olhar contemplativo, seus gestos sutis e a cadência elegante de sua voz fazem com que todos ao redor se sintam, invariavelmente, atraídos por ele. No almoço, enquanto ele traçava o eclético prato, composto de espaguete alho e óleo, quibe, esfirra de queijo e lasanha, ele confessa a Vetor – recluso há dois meses na fazenda, empenhado em traduzir um romance infanto-juvenil para uma grande editora – que em seus trabalhos de tradução não sente pudor algum em fazer longos cortes. Quer sempre reinventar a obra, mesmo se o autor for alguém que muito reverencia, como Virginia Woolf. Desde 1993, Bivar é o único latino-americano convidado a participar dos encontros anuais de uma seleta trupe que estuda a obra do chamado grupo Bloomsbury – coletivo de intelectuais modernistas britânicos surgido em 1905, liderado pela autora de As Ondas. A paixão por Virginia surgiu por acaso, em 1973, quando estava em turnê, fazendo a direção artística do primeiro espetáculo solo de Rita Lee, e deu de cara com o romance. O encontro reúne intelectuais do porte do dramaturgo Harold Pinter, a recém-falecida escritora e ensaísta Susan Sontag, e rendeu o livro Bivar na Corte de Bloomsbury (Girafa, 2005).
No primeiro encontro, em 1993, Bivar conheceu a inglesa Jenny, e foi tomado por um sentimento inédito: “Estava acostumado a ser livre e independente. Sempre fui amigo de muitas mulheres, mas nunca quis me casar. Descobri com Jenny que o homem precisa de uma mulher”. Bivar recorda que ela possuía um enorme acervo de livros herdados por ele – incluindo aí algumas edições originais de Virginia Woolf, que manteve consigo -, mas que decidiu doar praticamente tudo. O mesmo destino que havia dado a sua biblioteca, pouco antes. Não chegamos a subir em seu apartamento, mas ele o descreveu como “vazio”: “Uma vez que você leu o livro, que ouviu o disco, não há motivos para prender-se a eles. A experiência com a informação é o que importa”. Bivar brinca que a origem desse desprendimento surgiu ao tomar LSD pela primeira vez, quando fez um voto de pobreza e decidiu levar uma vida de franciscano. Dia desses, pensou em ir a uma igreja e perguntar ao padre: “Não tem como reverter esse voto, não?”. O apartamento, seu único bem, foi comprado, em 1975, no que classifica como um raro momento de “iluminação”, quando fez dinheiro com direção artística para shows, após o grande êxito do espetáculo Drama, de Maria Bethânia, e a temporada de sucesso com a amiga Rita Lee.
Uma pequena pausa no gramado para dispersar os sentidos e Bivar está pronto para seguir conosco por um caminhada de aproximadamente 1 km, ida e volta. Sua disposição e energia impressionam. Chegamos ao amplo vale e ele é, como se diz, “pau pra toda obra”. Sobe em pedras íngremes para ser fotografado, equilibra-se no topo de outras e, contemplativo, estende os braços para o céu. Acomodados em um piso circular, repleto de pedras planas, embarcamos por mais de uma hora de conversa informal e quente. A noite começa a cair, o céu vai se impregnando de um lusco-fusco que deixa a paisagem ainda mais deslumbrante, e voltamos à fazenda, a fim de preparar nossa saída. Em dado momento, Bivar revela que sempre foi tomado por uma inquietude, que o fez “entrar em todas as escolas e sair na segunda aula”. Ninguém há de contestá-lo. Ele foi existencialista, viveu o auge da boemia carioca, encarnou os ideais de vida libertária dos beats, foi hippie, maquiou-se e usou sapatos plataforma nos tempos do glitter, foi punk, dramaturgo, romancista, jornalista e o que mais coubesse em sua particular relação com o tempo e o espaço.
Aos 19 anos, experimentou maconha – ofertada a ele e a um grupo de amigos por um professor universitário -, e não se furtou em experimentar toda sorte de estados alterados da mente. Em 1974, até mesmo heroína entrou no cardápio de Bivar. Brinca que achou uma delícia e deu graças que não tinha acesso fácil à droga. “Lembro que até a mãe do Sid Vicious, em uma das prisões do filho, disse: ‘Eu entendo ele, pois isso é muito bom!’.” Hoje, Bivar é um homem pacato e saudável. Estamos no carro, de volta a São Paulo, e ele confessa que gosta de dormir por volta das 20 horas, ao som de música programada para desligar na quarta, quinta, faixa. Quase quatro horas mais tarde de seu horário de partir para a cama, menos de 20 minutos para o dia acabar, deixamos Bivar na porta de seu prédio. Agradecimentos e abraços intensos nos mantém, por um instante, estacionados na calçada da Fortunato. Aos olhos dos desavisados que passam pela rua, nessa noite de uma segunda-feira perfeita, como previam os meteorologistas, ele pode parecer um simpático cidadão comum, mas bem sabemos que ali está alguém que carrega uma rica história, intrinsecamente ligada às recentes transformações sociais e comportamentais do nosso País.
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