Na sua casa em João Pessoa, onde vive desde 1988, Valéria escreve “quando dá”, sem preocupação com  a carreira. Bate rascunhos à máquina e depois passa para o computador. Foto: Adriano Franco
Na sua casa em João Pessoa, onde vive desde 1988, Valéria escreve “quando dá”, sem preocupação com
a carreira. Bate rascunhos à máquina e depois passa para o computador. Foto: Adriano Franco

Avoz de Maria Valéria Rezende, calorosa e meio rouca, e seu jeito simples e simpático, dão a impressão de que estamos na mesma sala e não separados por milhares de quilômetros. Do outro lado do telefone, em João Pessoa, onde vive com outras três irmãs de sua congregação, Cônegas de Santo Agostinho, ela dispara a falar, num divertido ritmo de “quatro cotovelos”, e conta histórias que até Deus duvida. Mas que são muito verdadeiras. 

Nascida em Santos, de uma família de intelectuais (seu tio-bisavô é o poeta Vicente de Carvalho), Valéria nunca quis ser escritora, meio de birra. Ainda pequena, conheceu Pagu, heroína para os adolescentes cultos da cidade portuária. Aos 14, dava aulas no sindicato dos estivadores. Pouco depois, cantava no coro da primeira obra vanguardista de Gilberto Mendes.

A literatura ainda estava longe, mas sua vida já se revelava literária. Entrou no convento um ano depois do golpe, na mesma época que o amigo de infância Frei Beto, dominicano. E partiu para o mundo. Percorreu o sertão da Paraíba e de Pernambuco para aplicar os ensinamentos de Paulo Freire e os princípios da Teologia da Libertação. Protegeu perseguidos políticos, escondendo-os, falsificando passaportes e ajudando-os a sair do País.

Formada em Língua e Literatura Francesa na Universidade de Nancy, Pedagogia na PUC de São Paulo e com mestrado em Sociologia, tornou-se referência na educação popular. Foi na condição de formadora de educadores que viajou pela América Latina, pelos Estados Unidos e Canadá, Europa, Argélia e Senegal, além de China e Timor. Também foi assim que participou da revolução na Nicarágua e de seminários e cursos em Cuba, onde conversava frequentemente com Fidel Castro e tomava café com Gabriel García Márquez.

Valéria ainda descobriu que é prima por parte de avô materno de Antonio Candido, que também conheceu em Cuba, ao lado de Hélio Pellegrino. Suas aventuras são tantas que dá para pensar que só não escreveu antes por falta de tempo. Mas agora, quanto material! Primeiro, veio o livro de contos Vasto Mundo, reunião de histórias em um povoado próximo de Guarabira, na Paraíba. Escreveu, então, infantojuvenis: No Risco do Caracol foi segundo lugar no Jabuti de 2008, e Ouro da Cabeça terceiro, em 2013.

No ano passado, surpreendeu ao desbancar nomes como Chico Buarque e Cristóvão Tezza e receber o prêmio Jabuti de livro do ano, por Quarenta Dias. No romance, uma aposentada resolve sair pelas ruas em busca do filho desaparecido de uma amiga. Valéria não se fez de rogada e foi ela mesma, por 15 dias, para as calçadas, favelas e bancos de praças de Porto Alegre, onde se passa o romance.

O novo livro, Outros Cantos, traz uma educadora como Valéria voltando para o sertão em que, 40 anos antes, trabalhou junto a comunidades carentes. Era momento de resistência, a conscientização do povo era necessária e estratégica. Realista nos detalhes, traz, porém, a figura misteriosa de um possível vaqueiro, ou guerrilheiro, ou, simplesmente, herói que ela vê em toda parte, sem saber se é de fato a mesma pessoa, uma miragem, uma ilusão dos sentidos ou tudo isso ao mesmo tempo.

Brasileiros – Como a religião entrou na sua vida?
Maria Valéria Rezende
– Nasci numa família católica, mas com boa visão geral das coisas. Não fui educada num catolicismo rígido, dogmático. Aos 13, 14 anos, comecei a participar da Juventude Estudantil Católica (JEC). Nessa época, era comum perguntarem para a gente: “Você vai querer casar ou ser freira?”. Hoje, essa pergunta é impensável. Os anos na JEC me deram uma formação sólida, de aplicar, na prática, no meio do mundo, os ensinamentos evangélicos, ser o fermento da massa, estar com o mundo leigo, não ser só auxiliar de culto, como hoje. O movimento era organizado em pequenos núcleos, que eram as equipes-base. Dentro de cada escola havia equipes da JEC. O objetivo não era levar para a Igreja, mas identificar lideranças, participar do movimento estudantil, estimular valores como igualdade, fraternidade, solidariedade, palavras que, muitas vezes, esquecemos que são cristãs, evangélicas. Se bem que a palavra evangélica hoje ficou esquisita, né?

Você tem uma trajetória impressionante. Esteve em várias partes do mundo, conheceu personagens históricos…
Existe muito desconhecimento sobre a vida religiosa. No imaginário das pessoas, há o estereótipo de que a religiosa é fechada para o mundo. Ou, no outro extremo, o lado escandaloso, alimentado pela literatura e o cinema. O que tem razões históricas. Durante um longo período, as moças eram enfiadas à força nos conventos para deixar de ser obstáculo econômico e político para suas famílias. Fui uma das primeiras a pesquisar os conventos coloniais no Brasil. Os senhores de engenho e grandes donos de terras casavam uma das filhas para fazer alianças políticas; as outras enfiavam em conventos de voto de pobreza, para que não reivindicassem parte da herança. Isso provocava brigas entre os colonos e a Coroa portuguesa, que queria povoar o Brasil de descendentes portugueses. Estou escrevendo um romance há anos, que é baseado em parte nessa pesquisa.

Pensava que fazia literatura quando começou a escrever?
Não, só queria me divertir. Quando não tinha dinheiro para dar presente de aniversário, escrevia um conto para a pessoa. Nunca pensava em publicar. Não queria ser escritora. Cresci numa família de escritores. Meu tio-bisavô era o poeta Vicente de Carvalho. Ele era bem mais novo que minha bisavó e convivi com os 13 filhos dele. Vicentinho de Carvalho também era poeta, embora tenha publicado pouco; Arnaldo de Carvalho escrevia uma coluna na revista O Cruzeiro, chamada O Impossível Acontece, de histórias incríveis ou coisas que ele inventava, junto com a gente, em volta da mesa; minha tia, irmã do meu pai, era a Maria José Aranha de Rezende, poeta e jornalista. Meu pai era médico, mas o clima era literário em casa. Santos era uma cidade pequena, a gente conhecia todo mundo. E era fervilhante do ponto de vista cultural. Estou fazendo um livrinho chamado Memórias Mentirosas da Minha Infância Santista, porque as memórias de infância são sempre mentirosas, né? (risos).

"Outros Contos" - Maria Valéria Rezende, Alfaguara, 152 páginas
“Outros Contos” – Maria Valéria Rezende, Alfaguara, 152 páginas

Você está escrevendo vários livros ao mesmo tempo?
Ah, sim, porque uns são mais difíceis e outros mais fáceis. Quando vem uma ideia, aquilo fica cozinhando na minha cabeça. Posso inventar uma história agora. O problema é o que fazer com ela. Vai ser contada por quem? Por quê? De que maneira? Para quem? E isso fica na minha cabeça até que uma hora uma dessas histórias escolhe a sua voz. Não acredito em musa nem em inspiração. É um processo de combinação e imaginação. Quando resolvo essas questões e encontro a voz narrativa, sento para escrever, às vezes a noite inteira, para fixar tudo aquilo. Em João Pessoa, tem o Clube do Conto. Funciona assim: a cada reunião, inventamos um tema e cada um escreve um conto com aquele tema para apresentar na reunião seguinte. É um bom exercício.

E como foi sua história com Pagu?
Santos era cosmopolita. Quando eu era criança, mais da metade da população de lá era portuguesa. Depois, tinha um grande número de japoneses e imigrantes de todo tipo da Europa. E tinha muito transatlântico, indo e vindo, com companhias europeias de teatro, ópera, balé. A gente tinha uma frisa no teatro. Eu frequentava tudo com 8, 9 anos. E Geraldo Ferraz e Pagu ficavam na frisa ao lado. Ela me assoprava coisas no ouvido, explicando o que eu não conseguia entender. Às vezes, dizia: “Isso aí é bobagem, nem preste atenção”. Na hora do intervalo, ela ia para fora tomar sei lá o que e fumar seu cigarro. E eu ia com ela, que me contava histórias como a do imperador (o último da China) que era uma criança e vivia numa cidade murada, e ficou amigo dela, e deu a ela os grãos de uma planta milagrosa. Eu achava que inventava tudo para me distrair e, mais tarde, vi que era verdade. Só que ela era a Patrícia Ferraz para mim, Pagu era meio sussurrado, como se fosse uma identidade oculta (risos). Nós, adolescentes, a adorávamos, era uma heroína para a gente! Depois, ela criou o Festival Nacional do Teatro Amador, que era o maior agito. Apareceu Plínio Marcos… Eu era colega da Walderez de Barros, mulher do Plínio, na Aliança Francesa. Tinha um cinema japonês que só passava filme sem legenda. A gente via Kurosawa sem legenda, o que era uma aula de cinema, pois a gente tinha de ler imagens. A televisão só apareceu quando eu tinha 10 anos, mas o que chegava era um borrão. Eu cantava no Madrigal Ars Viva. Tinha o grande Gilberto Mendes. Fomos os primeiros a cantar uma composição vanguardista dele. Vi muito Amália Rodrigues cantando em Santos. A gente discutia a poesia concretista, que estava nascendo. Tinha um poeta que lia os poemas dele de um livro chamado Vaginas Solitárias. Ele recitava esses poemas na casa da minha avó! Sou muito grata a esse período, que me deu uma bagagem para uma vida mais longa, não sei bem explicar. É uma bagagem que me permite ler hoje os meninos da editora (independente) Patuá, por exemplo, que são meus amigos. E toda a literatura contemporânea. 

E desde cedo você dava aulas de alfabetização, não?
Era um grupo de estudantes que frequentavam o Sindicato dos Estivadores. Eu tinha uns 15 anos. A gente se revezava para dar alfabetização para eles, mas não só. Era também uma educação no sentido mais amplo, de começar a ler a realidade como ela é. Depois estudei História, Economia e Sociologia para trabalhar com trabalhadores de cana a partir da experiência deles. Ou da construção civil, o que fosse. Andei pelo mundo trabalhando, sobretudo, na formação de outros educadores populares.

E por onde você passou?
Ah, meu filho… Olha, todos os países da América Latina, com exceção do Equador. Estados Unidos e Canadá. Trabalhei por 15 anos como representante no Brasil do American Friends Service Comitee, que é uma instituição dos quakers, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1947, por ajudar mulheres e crianças na Alemanha devastada do pós-Guerra. Por conta deles, viajei muito. Essa coisa de educação popular acabou criando uma rede na América Latina, sobretudo durante a ditadura. Em 1979, 1980, quando venceu a revolução na Nicarágua, eles queriam alfabetizar o povo no campo, mas não tinham quadros suficientes. Como grande parte dos sandinistas era católica, lá fomos nós. Só que os cubanos também foram. Num primeiro momento foi um choque pedagógico. Eles não entendiam como os católicos estavam lá para apoiar uma revolução e implantar o socialismo. Traziam um tipo de pedagogia soviética, que era escolástica, de cima para baixo, com currículo pronto e exigência da disciplina. E a gente vinha com esse negócio do diálogo, a partir da realidade, das experiências. No começo foi uma confusão (risos). Até que nos entendemos. Como conhecíamos bem os conceitos marxistas, Fidel acabou se interessando por tudo isso e fez um pedido para a gente ir para lá. Acabei assumindo a coordenação desse processo, que era organizar, todo ano, ou a cada dois anos, os seminários em Cuba sobre educação popular na América Latina. Então, vinha um avião nos apanhar em Buenos Aires. Tudo o que era cabeça grande no Brasil foi. Na hora que entro no avião, vi que estava sentada entre Antonio Candido e Hélio Pellegrino, que foi da turma da minha madrinha, que é minha tia, lá de Belo Horizonte. E Antonio Candido é primo do meu avô! Somos da mesma família, de Passos, de onde veio minha mãe. Quando me apresentei, pronto! Fiquei hospedada numa casa de protocolo e tinha carro e motorista. Era uma Mercedes preta, imagine (risos). E o motorista era um ex-combatente na Sierra Maestra e, com certeza, do serviço de informação cubano. Eu levava Antonio Candido e Pelegrino para passear em Havana, que ninguém aguentava tanta conferência (risos). Isso porque eu estava com uma tarefa de Estado, que era explicar para o pessoal da Academia de Ciências de Havana o que era Teologia da Libertação, comunidades eclesiais de base e educação popular, Paulo Freire, tudo isso. Era a coisa mais engraçada do mundo, porque era eu e um padre, o José Oscar Beozzo. A gente não sabia o que falar para os comunistas e eles não sabiam o que perguntar para a gente (risos). Também viajei pela Europa para fazer pesquisas e intercâmbios. Isso também incluiu a Argélia. Conhecendo mais gente, fui parar no Timor e Senegal. E na China, com os teólogos canadenses, para ajudar a romper a excomunhão dos católicos chineses no interior do país. Comi muito escorpião grelhado e adorei! Já tinha comido tanajura, calango, preá, por que não? Virei freguesa (risos).

E você conheceu Fidel Castro?
Ah, de grandes papos! Porque trabalhei na zona canavieira e ele, interessadíssimo, queria saber tudo. Mas era assim: de repente, a camareira batia no meu quarto às três da manhã e dizia: “Prepárate que viene el Comandante”. Ele não tinha hora para nada. Roberto D’Ávilla, que era mocinho e estava lá para entrevistar o Fidel, ficava tão nervoso que apertava minha mão e dizia: “Reza, irmãzinha, reza” (risos). Queriam também que eu ajudasse a quebrar o gelo entre o Partido e a Igreja. Mas aí disse que não tinha sentido ficar numa casa de protocolo, com carro e tudo. Eu queria andar na rua, tomar ônibus de dez centavos, comer como come o cubano. Eles concordaram, fiquei num quartinho numa comunidade de religiosos e passava meses ali, desde essa época até 1992.

E Garcia Márquez?
Ele se hospedava ao lado da casa de protocolo. E gostava de conversar no café da manhã. Aliás, todo mundo falava comigo porque eu era a “hermanita”, sabiam que seria discreta. Até pensei em escrever um romance policial em que a detetive é uma freira, porque freira é invisível. Principalmente quando de hábito.

Mas, afinal, como começou sua vida de escritora?
Escrevi um conto com base na minha experiência num povoado perto de Guarabira, na Paraíba, para dar de presente ao Frei Beto e ele acabou o enviando para um editor, que me pediu outros textos. Aí fui ver e todas as histórias que eu tinha eram irmãs dessa. Achei que o protagonista era o próprio povoado. Cada capítulo gira em torno de um ou alguns dos moradores. Lúcia Riff gostou e acabou sendo publicado em 2001, com um prefácio do Beto, como um livro de contos, Vasto Mundo. A versão que saiu no ano passado é mais robusta. E aí, para fugir ao rótulo de regionalista, fiz um livro diferente, o Modo de Apanhar Pássaros a Mão. Tem um conto inteiro sem vírgula nem ponto. Tem um conto em formato de alguém cantarolando, com as letras espalhadas pela página. Eu estava me divertindo. Depois que escrevi o Voo da Guará Vermelha (lançado em 2005), percebi que era capaz de escrever sobre coisas que ninguém via. Não porque sou mais sábia, mas por conta do mundo em que circulo. Mas nunca tive rotina de escritor, nem sei o que é isso! Tenho rotina de dona de casa. Escrevo quando dá. Às vezes, paro um texto por dois ou três meses. E quando volto tenho de reler. Porque não sou eu a narradora. É outra voz.

Para fazer "Quarenta Dias", romance que lhe valeu o Jabuti de melhor livro de 2015, Valéria passou 15 dias pelas ruas de Porto Alegre
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Mas a narradora de Outros Cantos se parece com você.
Sim e não. A personalidade daquela pessoa não é a minha. Ela é romântica e eu, mais prática.

Como você vê o Brasil hoje?
Vejo gente, até amigos, parentes, e vou exagerar um pouquinho, que nunca viu pobre de perto. E mesmo assim, dá opiniõ­es sobre o Bolsa Família e não sei o quê, com certezas absurdas. É ignorância! Não adianta estar no alto se há muita neblina: não vai ver quem está lá embaixo. Como passei minha vida lá embaixo, vejo o chão subir. A nossa cozinheira tem o quarto ano primário. Viveu a vida lavando roupa no riacho. O marido dela tem só o primeiro ano primário. É pedreiro. O filho, de 25 anos, terminou mestrado em Engenharia Alimentar. A filha é subgerente em uma agência bancária e está terminando o curso de Administração de Empresas. Todo mundo à minha volta está assim. Há 15 anos, a convicção era: onde já se viu filho de pobre ser doutor! Vivi isso. Venha quem vier, com a ideologia que quiser, com as histórias de corrupção que quiser me dizer que o Brasil piorou que não vai me convencer. Eu vou só dizer: perguntou para quem? E aí falo para a pessoa vir aqui, digo que a praia é linda, que vai ficar de queixo caído quando vir o que tem de cultura em João Pessoa. E vou convidá-la para ir à casa de um monte de gente para ela ver o que é o Bolsa Família, o que é o Minha Casa, Minha Vida, qual é o efeito de tudo isso. E essa mania de dizer que brasileiro não lê? Brasileiro não lê os livros da Companhia das Letras! Porque não chegam lá. Mas muita gente lê cordel. E em grupo. Na minha família, depois do jantar, a gente fazia leitura coletiva. O livro mais popular do mundo é a Bíblia, lido coletivamente nas igrejas. O povo com quem tenho trabalhado nesses 40 anos é capaz de improvisar em metro, com rima rica. Uma vez, até antes da fundação do PT, tinha o Instituto Cajamar, que dava formação aos sindicalistas, camponeses e militantes dos movimentos populares para atuar politicamente. Eu era professora lá e dava textos de 30, 40 páginas para ler de um dia para o outro. O Lula lia tudo e fazia perguntas interessantes! Tem doutor que não sai do olho esquerdo da saúva, é um imbecil! (risos).

O Outros Cantos é realista, mas tem também o vaqueiro misterioso, que mais parece um herói encantado para a narradora, que se apaixona por ele. Como é isso?
Olha, a repressão era burra e cega. Você não podia avaliar que grau de perigo corria. Porque às vezes você estava fazendo uma coisa séria e ninguém percebia, ou não estava fazendo nada e era confundido com alguém, e até mostrar que gato não é sapato a pessoa acabava torturada ou morta. Assumi o compromisso de ajudar gente que estava em perigo. Tinha de recolher, cuidar, esconder. E não há relação mais íntima do que colocar sua vida nas mãos do outro. Para passar esse sentimento no livro, difícil de definir, inventei aquele personagem que a narradora não sabe se é o mesmo ou se é outro, se é um ou se são muitos. É a ideia do herói. O amor que a narradora sente é o amor pelo que ela pensa que o outro significa.

E essa história de viver na rua para escrever o Quarenta Dias?
O Quarenta Dias eu inventei primeiro e depois fui testar. Alice é um misto de mulheres que conheço, muito valentes, que tiveram filhos em circunstâncias difíceis e, quando já estão perto de se aposentar, são obrigadas a se tornar avós profissionais. Recebi e-mails de mulheres me agradecendo pelo livro. Alguns homens, por outro lado, acharam inconsistente o motivo para Alice abandonar tudo e ir para a rua. Eu poderia escrever 500 páginas sobre essa parte, porque passei 15 dias na rua procurando de fato o fictício Cícero Araújo. Era um abre-te Sésamo. A história da mãe desesperada por conta do filho sumido abria as portas com todo mundo. Até o pessoal do tráfico de uma vila se dispôs a me ajudar. Mãe que perdeu filho comove todo mundo. E descobri que isso é comum. Tenho, inclusive, ajudado a achar gente pelo Facebook. Outra coisa curiosa que descobri: só eu posso contar essa história, porque quem tem filhos e netos teria muitos problemas (risos).


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