“O Arnesto nos convidô prum samba, ele mora no Brás”

Foto: Luiza Sigulem
Foto: Luiza Sigulem

Para ler ao som de “Samba do Arnesto”, de Adoniran Barbosa
O Arnesto nos convidô prum samba,
ele mora no Brás
Nós fumo e não encontremos ninguém
Nóis vortemo cuma baita de uma reiva
Da outra veiz nóis num vai mais
[nggallery id=15565]

Nóis não semos tatu!

Eu sou o Arnesto do Brás. Nasci na aorta do Brás, na Rua Flora, numa travessa entre a Rua Caetano Pinto e a Rua Piratininga. Nasci em 1914. Dia 15 de dezembro.

Meu pai veio da Itália para cá com três aninhos, coitadinho. Três aninhos é considerado brasileiro. Ele nasceu em 1893. Minha mãe também viera em 1896 da Itália com a família dela. Quando eles se conheceram, houve aquela força magnética do olhar. Um olhou para o outro. O outro para o um. E casaram-se. Desse casamento eu nasci. E também meu irmão. Ele no começo de 1913. Eu nasci em 1914, no fim. Ele morreu com 90 anos, coitadinho. E eu sobrevivi. Quando ele morreu, eu tinha 88 anos. Agora tenho 93 anos e meio. E cá estou conversando com você. Mas você quer é saber do samba?

Ernesto ou Arnesto?
O ano era 1938. Violonista, Ernesto foi chamado pela Rádio Bandeirantes para acompanhar as canções napolitanas de Vicente Carbone. O programa começava às 11h e ia até 11h30. Na meia hora seguinte, o violão de Ernesto acompanhava um músico português com seus fados. E terminava a manhã de domingo tocando canções brejeiras e sambas-canções de uma moça muito bonita conhecida como Nhá Zefa.

– Eu tocava violão muito mal.

Todos os domingos, durante um ano, Ernesto se apresentava nos três programas. Meia hora. Meia hora. Meia hora.

– Ernesto, você não quer dar uma canja comigo na Record?

O convite de Nhá Zefa ao músico levava no ventre o samba que mudaria o nome, a índole, o bairro e a própria vida de Ernesto. Pois esse convite deu à luz o “Samba do Arnesto”. Ou, pelo menos, iluminou o caminho de Ernesto para entrar nas cercanias de Adoniran Barbosa. Em todo caso, o convite tinha luz. Com 24 anos, Ernesto estava na primavera da idade para andar por cá e por lá. Terminado o programa com Nhá Zefa ao meio-dia e meia na Bandeirantes, eles atravessavam o Viaduto do Chá e entravam no estúdio da Record, no 13º andar de um prédio da Rua Conselheiro Crispiniano.

– Adoniran, esse rapaz aqui é o Ernesto, toca violão e veio me acompanhar no programa.
Adoniran estende a mão a Ernesto. E solta a voz esganiçada:

– Muito prazer! Muito prazer! Me dê a mão.

Três domingos se passaram depois daquele dia. Novo encontro no bar. A voz rouca faz o pedido ao violonista:

– Você tem um cartão para me dar?

Ernesto põe a mão no bolso e oferece seu cartão.

– Arnesto Paulelli!, lê Adoniran. Desconfiado, Ernesto retruca:

– Adoniran, eu sou E-rnesto. Não sou Arnesto.

– É AR-NES-TO. E teu nome dá samba. Eu vou te fazer um samba. Você aduvida?
Ernesto o olhou meio assim, de lado, e depois concordou:

– Já não aduvido mais.

O dono da voz rouca que cantou os sambas mais paulistanos de São Paulo sela a promessa com um abraço no novo amigo.

– Pode me cobrar o samba, Arnesto. Mas, cartão, este eu não tenho para te dar.

Naquela época Adoniran ainda não fazia sucesso. Pondo a mão no buço, Ernesto imita imponente o sambista, fazendo a boca apertada e mostrando o bigodinho.

– Não. Não. Era um pilantrão, coitado. Fumava feito maluco e bebia cachaça alucinadamente. Cachaça mesmo, pura. Mas era uma bela figura, o Adoniran.

Em 1936, Adoniran Barbosa gravava o seu primeiro disco em 78 rotações, Agora podes chorar (Colúmbia, número 8171). Disputava um lugar profissional e de destaque nas rádios da época, sobretudo como ator de rádio. Mas só fazia pontinhas ou papéis secundários. Nos bares do centro paulistano, onde estavam as principais rádios, Adoniran estava atento a tudo que podia dar samba.

A promessa ao amigo Ernesto ficou guardada. Foi cumprida 17 anos depois.

Adoniran Barbosa

Fã de futebol
Ernesto Paulelli é o Arnesto do samba. Está sentado na mesa de centro de sua sala, o lugar mais próximo que conseguiu colocar-se para não perder um só lance da semifinal de futebol entre Itália e Espanha (campeonato europeu 2008), que acaba de ir para a prorrogação. Seu Ernesto tinha desmarcado a entrevista inicialmente agendada às 16h. Mas, como não dá furo em compromisso, pediu à filha Valéria que ligasse e marcasse às 18h. O motivo, não justificou. Decerto queria assistir a uma de suas diversões preferidas sem amolações. Nos pênaltis, a Itália perde de 4 a 2. Vagarosamente, seu Ernesto se levanta.

– Vamos começar?

Seu andar é lento e arrastado do lado esquerdo, seqüela de um derrame que o acometera três anos antes. Ele senta-se na grande poltrona amarronzada, que faz combinação com o relógio cuco de três cordas, colocado na parede perpendicular à poltrona para avisar os moradores e as visitas, a cada quarto de hora, que o tempo corre.

O patrono do samba de Adoniran é um senhorio de traços maturados e rosto longilíneo harmonizado com lábios e nariz aguçados. Tem estatura mediana e cabelo já descolorido, que ainda resiste na cabeça apenas dos lados e atrás.

Vestido assim, de blusa de lã cinza sobre uma camisa azul xadrez para se proteger do recém-chegado inverno sem garoa, seu Ernesto mais parecia uma folha de outono. Só a seguir eu descobriria que a folha envelhecida ainda não se desprendera da árvore construída. A árvore do samba e a de seu personagem, Arnesto.

Vendedor de chuchu
Quando pequenino eu engraxava sapatos. Até assobiava enquanto esfregava o couro. E ganhava um dinheirinho para ir à matinê. Meu pai tinha o ofício de sapateiro. Não era uma pessoa abastada. Em 1920, eu ainda morava no Brás, na Rua Melo Barreto. Em 1922, mudamos para a Mooca. Havia muito chuchu no nosso quintal. Eu saía com duas cestas de chuchu andando pela vizinhança e perguntava à freguesa:

– Como chama a sua vizinha, dona Matilde?
– Essa daqui é a Margarida.

Aí eu ia até lá:

– Dona Margarida, a senhora quer chuchu?

– E como é que você sabe que eu sou a Margarida?

A curiosidade feminina é uma coisa fantástica. Aí eu explicava:

– É que a vizinha aqui do lado, a dona Matilde, fala tão bem da senhora. Que a senhora é uma vizinha maravilhosa…

– E quanto é meia dúzia?

Enquanto embrulhava, eu já perguntava o nome da outra.

– Dona Dália, bom-dia, a senhora precisa de chuchu?

A mesma pergunta vinha em seguida. Assim eu vendia as minhas duas cestas. E os bolsos ficavam cheios de níqueis.

O personagem Arnesto na não-ficção figurou em vários papéis. Além de chuchu, vendeu secos e molhados, miudezas, trabalhou com jogo do bicho e tocou violão em cantinas. Em 1973, Ernesto aposentou-se como vendedor de produtos químicos. Mas não sossegou. Aos 60 anos, formou-se em direito pelas Faculdades Integradas de Guarulhos (FIG). Antes, fizera o supletivo para adultos – o curso de Madureza – para concluir o ginásio e o colegial. Trabalhou como advogado na área de Direito Civil por 30 anos e só parou em 2005 devido ao AVC, que hoje o obriga a praticar fisioterapia todos os dias, tempo que divide com o estudo diário de música, regras gramaticais e matemática.

Encostado na poltrona, seu Ernesto mergulha em lembranças. Em 94 anos, a memória o acompanha lúcida e rápida. Não que não dê mancadas. É quando seu Ernesto coloca a mão direita sobre a testa, arqueia o sobrolho, bagunça o cabelo, e o olhar passeia por toda a sala sem focalizar nada. Não vencendo o lapso, ele recorre à sua memória externa: sua filha do meio, Valéria Paulelli, 60 anos, que mora com o pai e o marido.

– Valéria, como era o nome da rua onde ficava a loja do seu Afonso Barbato?

– Valéria, como é o nome do hospital da Rua do Oratório?

– Valéria!

– Mas, o que eu estava contando mesmo?

Foto: Luiza Sigulem
Foto: Luiza Sigulem

O samba na rádio
Quando jovem, Ernesto também trabalhou como gerente de uma loja de miudezas e inventou de vender lá as ceras Recorde (famosas, naquele tempo). Esperto, ele próprio negociou com Salvador Basile, o dono da fábrica, e conseguiu a mercadoria consignada. Montou uma pilha de ceras do chão ao teto na entrada do estabelecimento e anunciou um preço menor que o da concorrência. O sucesso foi tão grande que Basile lhe preparou uma caixa com todos os produtos que vendia: cera, lustra-móvel, inseticida. E deu de presente ao vendedor:

– Ernesto, te dou 500 mil réis por mês e vou te dar interesses na firma. O senhor vai ter uma porcentagem sobre o meu lucro.

Em 1941, casou-se com Alice. Seu chefe, Salvador Basile, foi o padrinho de casamento e de batismo de sua primeira filha Vanda, nascida em 1942. Na seqüência, vieram o José Carlos, Vicente, Valéria e, por último, o Zé. Eram cinco filhos.

Sobre o samba de Adoniran, Ernesto nem se lembrava mais do prometido quando o escutou pela primeira vez no rádio.

– Foi em 1955. A minha patroa, Alice, estava entretida na máquina de costura, botando botões na camisa, quando ouvimos na Rádio Bandeirantes:

O Arnesto nos convidou… PUM!
Prum samba ele mora no Brás… PUM!
Nóis fumo e não encontremos ninguém.

– Alice! Alice! Essa peteca é minha!

– Ernesto, que peteca?

– Esse samba aí, Alice, o Adoniran me prometeu. Eu não falei que ele tinha me prometido? Faz quase 20 anos!

E Alice chorou abraçada ao marido. Seu Ernesto confessa:

– Eu também. Pra dizer a verdade, não deu pra segurar. Diz que homem não chora. É mentira. Chora de emoção, de alegria, de tristeza. Eu chorei de alegria.

Só dois anos mais tarde é que Ernesto se encontrou com o amigo Adoniran. Estava trabalhando no escritório da Cera Recorde quando Lívio Delmare, músico de canções italianas, foi convidar Ernesto para participar de um programa na TV Record, todas as quartas e quintas à tarde. Ele foi. Enquanto afinava seu violão, ouviu uma voz grave:

– Arnesto, que achou do samba? Você gostou?

– Ô Adoniran, se eu gostei? Você me abriu no meio, rapaz. Eu adorei teu samba!

– Então me dá um abraço, que agora você é meu compadre.

O sambista considerava suas composições como filhas. Ainda hoje, depois de contar inúmeras vezes o episódio, seu Ernesto se comove:

– Muito obrigado, compadre.

Adoniran Barbosa deu a Ernesto não apenas uma afilhada. Deu-lhe outro nome e a fama de furão. Mais de 50 anos depois de a música ser composta e entrar em todas as casas pela voz dos Demônios da Garoa, muitas pessoas ainda acreditam que a história é verídica e que Arnesto, realmente, deu um “bolo” nos convidados:

– Mas, então, o senhor não deu mancada, não?

Ernesto costumava se encontrar com Adoniran e certa vez, reclamou:

– Ô Adoniran, você me meteu numa treta. Por que você foi colocar que eu te dei um bolo, rapaz?

– Arnesto, se não tivesse mancada não tinha samba. Segura essa pra mim!

Como “recompensa” pela saia-justa Adoniran o presenteou com a partitura 001 dos irmãos Vitale: a primeira de “Samba do Arnesto”, impressa pela editora dos irmãos. Adoniran deu a partitura autografada a Ernesto, e Alocin, parceiro do músico, assinou com um “de acordo” ao lado da homenagem. Hoje, está pendurada em seu quarto. E ainda tem dedicatória:

“Ao acadêmico Ernesto Paulella, a quem dediquei esta composição quando do seu lançamento, em 1955. Homenagem do autor, Adoniran Barbosa”.

O cuco dá a badalada das nove. Seu Ernesto levanta-se, sacode as pernas para fazer o sangue circular e lentamente vai até a pia do corredor lavar as mãos. Antes, parara a entrevista para ligar a televisão. Seu neto Paulo Paulelli iria se apresentar na TV Cultura tocando seu violoncelo no grupo musical liderado pela cantora Rosa Passos. A mesa do jantar está italianamente farta. Sopa de legumes com fusili e pão. Lagarto e salada de rúcula. Como sobremesa, manjar de coco e sfogliatella. Para seu Ernesto, em especial, uma banana e dois pedaços de batata-doce, que ele misticamente põe à mesa desde os cinco anos de idade. Na frente do sobrado na Rua Tagi – ruela da Mooca perto da Rua dos Trilhos -, um grupo de jovens gargalha ao redor da fogueira. A noite finda. Seu Ernesto, agora com a vida contada, despida e interpretada, pega a boina marrom, guardada na estante da sala. Assim, sela a conversa como personagem. Arnesto, do “Samba do Arnesto”. Que mora na Mooca. E sempre deixa um recado na porta. Nóis semos leão, não tatu!


Comentários

Uma resposta para ““O Arnesto nos convidô prum samba, ele mora no Brás””

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.