A onda de preconceito contra pobres e nordestinos, deflagrada após a reeleição da presidenta Dilma Rousseff, tirou do armário cidadãos como a jornalista Deborah Albuquerque Chalem, que não hesitou ao afirmar em vídeo ao alcance de milhões de brasileiros: “Eu sou rica, bem sucedida, muito bem de vida, e tentei ajudar vocês, miseráveis, imbecis e burros que votaram na p… da Dilma. Vocês são muito burros e vão depender de Bolsa Família e Bolsa Miséria para o resto da vida. Vocês vão continuar na merda. Eu não, eu tenho condições de sair desse País”.
Deborah tentou desculpar-se, no dia seguinte, em outro vídeo constrangedor, no qual pede compreensão ao lado da empregada, nordestina. Emblemático, o primeiro depoimento da jornalista, feito no calor da situação, não foi caso isolado de manifestação de ódio. Pelo contrário, durante a primeira semana pós-segundo turno, as redes sociais foram infestadas por um mar de hostilidade, canalizada em posts e em campos de comentários dos principais veículos de imprensa. Felizmente, vieram respostas à altura, serenas, como a do analista de sistemas cearense Bráulio Bessa, de 29 anos.
Desde novembro de 2011, Bessa mantém no Facebook a página Nação Nordestina. Dedicada à valorização da cultura regional do Nordeste, a comunidade virtual tem hoje quase 1,2 milhão de seguidores. Fato surpreendente, se considerarmos que seu criador reside na pequena Alto Santo, município do interior do Ceará, a 260 km de Fortaleza, com menos de 20 mil habitantes.
Se a audiência da página no Facebook impressiona, surpresa maior ele teve ao decidir gravar um vídeo em resposta às ofensas, no qual recita o bem-humorado manifesto Nordeste Independente, escrito no início dos anos 1980 pelo poeta, roteirista e escritor paraibano Bráulio Tavares e Ivanildo Vilanova, poeta e repentista pernambucano, nascido em Caruarú. Postado no Youtube, o vídeo já teve mais de cinco milhões de acessos.
Por telefone, Brasileiros conversou com Bráulio Bessa para entender como se deu a criação da Nação Nordestina e como a página se tornou um símbolo de altivez, ou melhor, de “nordestinidade”, neologismo utilizado diariamente por ele nas redes sociais.
Brasileiros – Antes de falarmos sobre a Nação Nordestina, conte um pouco como foi sua formação em Alto Santo…
Bráulio Bessa – Alto Santo fica no interior do Ceará, uma cidadezinha com 18 mil habitantes, a 260 km de Fortaleza e sempre fui apaixonado pela nordestinidade do interior. Embora Fortaleza, Salvador e Recife estejam no Nordeste, por serem capitais, a coisa se corrompeu. Por ter nascido e ter sido criado em Alto Santo, onde moro até hoje, nunca perdi a essência e essa paixão.
Como você começou a se interessar pela cultura nordestina?
Sempre estudei em escola pública e me envolvi com a cultura do Nordeste nos tempos de adolescente, na escola. Foi quando comecei a escrever cordel e fiz parte de uma companhia de teatro de rua chamado Alto Arte. Era um grupo amador, mas a coisa foi crescendo, até que um belo dia – aliás, a primeira vez na vida que tive de vestir um terno – fui a Fortaleza receber uma medalha de honra ao mérito da Academia de Letras de Municípios do Estado do Ceará. Isso foi em 2008. No ano seguinte, fui nomeado o primeiro e até hoje o mais jovem sócio-correspondente da academia. Envio meus cordéis e artigos para serem publicados pela academia.
Seu interesse por informática ocorreu de que forma?
Quando eu tinha 18 anos, ganhei um computador da minha tia Ana Lúcia. Naquela época, no interior do Ceará, só quem tinha computador era a prefeitura, as empresas e os ricos. Sou de família humilde e minha tia, que mora em São Paulo, me mandou um computador de presente. Foi então que me tornei “o menino que sabe bulir em computador”. O cabra precisava de um convite, de um cardápio, diziam a ele “rapaz, vá lá falar com Bráulio, o menino que sabe bulir em computador”. Virei referência em Alto Santo, na área da informática. Pouco depois, fiz faculdade de Análise de Sistemas em Limoeiro do Norte, que fica a 60km de Alto Santo… Aliás desculpe, deixe eu explicar, se você não sabe, para nós, bulir é mexer…
Sim, eu sei. Sou filho de baianos…
Ah, então você entende o “nordestinês”…
E quando foi que você decidiu criar a Nação Nordestina?
Foi em dezembro de 2011. Eu já tinha todo esse envolvimento com a cultura nordestina e, como eu também tinha conhecimento na área de informática, decidi unir as duas coisas. Era um momento em que o preconceito passava por uma crescente e eu decidi criar esse projeto para ajudar a combater essa intolerância, mas não atacando e, sim, mostrando o que a gente tem de melhor.
Preferiu não pagar na mesma moeda…
Exatamente. Penso que a melhor maneira de combater qualquer tipo de preconceito é mostrar o que o atacado tem de bom. E o Nordeste tem um universo de qualidades para se defender. Eu tinha certeza que conteúdo não ia me faltar. Temos uma culinária incrível, um artesanato lindo, temos fartura de belezas naturais, uma cultura riquíssima, uma literatura que não há em nenhuma outra região do País e uma herança musical indiscutível. Além disso, algo que eu sempre digo, temos o que há de melhor no Nordeste que é o povo nordestino.
E como se deu a repercussão inicial da Nação Nordestina?
Comecei em um formato ainda amador e não sabia exatamente o que ia acontecer. Para minha surpresa o projeto, aos poucos, foi se tornando um fenômeno. Em poucos meses, havia mais de cem mil pessoas seguindo a página.
Você sempre utilizou as redes sociais como plataforma?
A plataforma principal é a página do Facebook, porque o foco do meu trabalho é atrair as pessoas para multiplicar a valorização de nossa cultura, e o Facebook é onde tenho maior alcance de compartilhamento e envolvimento delas. Quando comecei havia um receio maior do nordestino assumir suas origens nas redes sociais. A prova maior do que estou dizendo é que, antes de criar a página, eu procurei e não encontrei nenhuma com conteúdo similar. Acabei criando um perfil pioneiro em passar para as pessoas a mensagem de que assumir sua nordestinidade é uma questão de personalidade, de mostrar que você valoriza o lugar de onde veio e que tem orgulho de suas raízes. O que eu acho mais bacana dessa história é que eu consegui fazer isso usando justamente a tecnologia e a informática, coisas que são apontadas por muita gente como um vilão para a nossa cultura. Pensei diferente. Olhei para o computador e conclui “rapaz, vou é usar esse danado aqui como arma”.
Você consegue mensurar quais foram os principais estímulos para o crescimento do número de seguidores?
Sempre que algum caso de preconceito aparece na mídia, percebo que há crescimento. Mal sabem os preconceituosos que sua intolerância é a maior vitamina para a altivez de ser nordestino. Muitas vezes o cabra está lá, bem quietinho, daí vem um caso de preconceito e ele sente a necessidade de dizer “rapaz, eu sou nordestino, com muito orgulho”. Isso faz aflorar.
Você acha, então, que está havendo uma mudança de comportamento com relação a reação ao preconceito?
A nordestinidade nunca esteve tão em alta. Até bem pouco tempo, o nordestino sofria preconceito e abaixava a cabeça. Hoje, não. O cabra pode estar em qualquer lugar do Brasil e, se chegar alguém com essa conversa, ele levanta o cangote e diz “meu amigo, você está pensando que é quem pra falar assim do meu povo?!”.
A criação da Nação Nordestina foi motivada por algum episódio específico envolvendo preconceito?
Eu era recém-casado – aliás, recém-“amancebado”, porque aqui quando o cabra não casa na Igreja ele é amancebado –, estava conversando com a minha esposa, Camila, enquanto assistíamos um telejornal que anunciou mais um desses casos rotineiros de preconceito. Falei para ela “vou criar uma página para a gente tentar ajudar o maior número de nordestinos a darem uma resposta para essas pessoas”. Então, o que fez nascer o projeto foi o preconceito, sim, mas a coisa foi amadurecendo, pois não posso estar vinculado somente a isso.
E como é seu dia a dia? Como se dá a interação com esse público, de mais de um milhão de pessoas?
Para você ter uma ideia, a Nação Nordestina virou tamanha referência nas redes sociais que, todo santo dia, eu recebo dezenas de mensagens de gente pedindo para eu dar conselhos de como se defender. Se um cabra famoso falar no Twitter que nordestino é feio e burro, em cinco minutos minha caixa de mensagens entope de gente denunciando. Infelizmente, essa ainda é uma questão cotidiana. Se eu fosse postar tudo que me falam, a página estaria completamente poluída com essa coisa horrível. O que eu procuro fazer é ter uma conversa no reservado, com a pessoa, para aconselhar. Inclusive, é bom lembrar que têm muita gente que sofre preconceito, mas não só nas redes sociais. Não são poucos os nordestinos que moram fora do Nordeste e também sofrem agressão. Tenho a consciência de tratar as pessoas com carinho e procurar ouvir cada história que chega para mim.
Você também deve receber mensagens de pessoas incomodadas com seu posicionamento…
Recentemente, fui até ameaçado de morte. Apareceu um caboclo dizendo que ia vir aqui no Ceará me matar. Claro, no reservado e com perfil falso. Mas, até isso eu prefiro não revidar. Teve outro sujeito que disse “eu odeio o Nordeste, vocês são um bando de lixo!”. Aí eu respondi para ele, de forma irônica, “você pode me passar seus dados, CPF, RG, nome completo, que eu vou comprar uma passagem com acompanhante para você vir passar um final de semana em Fortaleza? Garanto que você vai mudar de opinião!”. Comprar a briga é pior. A gente já apanhou demais, mas eu tento lidar com isso de forma bem-humorada para não alimentar polêmica e nutrir ainda mais ódio.
Como se deu a progressão da audiência da Nação Nordestina, até chegar aos quase 1,2 milhão de seguidores atuais?
Houve uma explosão a partir de 2012, quando cheguei a meio milhão de seguidores. E detalhe, eu nunca investi um centavo no Facebook para impulsionar a audiência. O público da Nação Nordestina é orgânico, real e espontâneo, porque se identifica com o conteúdo. Em 2013, a página seguiu na crescente e, neste ano, cheguei a mais de um milhão de seguidores.
Você previa que, com a reeleição da presidente Dilma Rousseff, a reação de ódio aos nordestinos, já manifestada nas eleições de 2010, se repetiria?
Confesso que não fiquei surpreso e sabia que ia ser pior, pois, hoje, o envolvimento dos brasileiros com as redes sociais é bem maior do que era em 2010. Os preconceituosos de hoje, deram as mesmas declarações naquele ano, mas em casa, entre os amigos, na mesa do bar. Não se expuseram como agora. Mas, apesar de previsível, é algo que me entristece. Quando vejo isso acontecer penso que o sujeito não está batendo só em mim, mas em meu pai, em minha mãe, em meus irmãos, em meus avós e em milhões de pessoas honestas, trabalhadoras e de coração bom.
Como se deu a escolha do manifesto Nordeste Independente para o vídeo em resposta aos preconceituosos?
Li e ouvi coisas horríveis. Quando vi pessoas nos chamando de miseráveis, vagabundos, bando de lixo, me senti à vontade para gravar um vídeo e demonstrar minha revolta. Quando pensei em fazer isso, veio a ideia de recitar o manifesto Nordeste Independente. E houve quem não entendeu a ironia do texto. O próprio Bráulio Tavares teve de explicar para muita gente que ele não era a favor do separatismo. E isso é claro. Nordeste Independente foi uma forma debochada, brincalhona e irônica de dizer aos preconceituosos que eram eles que pregavam a separação. Quando ele diz “imagine o Brasil ser dividido e o Nordeste ser independente”, está dizendo isso diretamente para quem quer que o Nordeste seja excluído do Brasil. Está olhando no olho do cabra e dizendo “meu amigo, pense bem o que seria do País se isso acontecesse?”. Ele não está sugerindo, ele está respondendo à sugestão. O manifesto é da década de 1980 e, infelizmente, continua atual. Apesar desses poucos que não entenderam, fiquei muito surpreso com a resposta dos internautas. Até o momento, o vídeo foi visto por mais de cinco milhões de pessoas.
E como foi que você passou a atuar como palestrante?
Cai nesse mundo de palestras no final de 2012, meio que por acidente. Com o aumento da audiência, a Nação Nordestina passou a ser noticiada em jornais e revistas locais e um belo dia um rapaz me ligou e disse “Bráulio, você tem um grande case de sucesso!”. Eu disse “é mesmo, rapaz?!”. Achei aquilo muito chique, pois eu nem sabia que diabo era case. Daí, ele explicou “A partir de uma cidadezinha de 18 mil habitantes, do interior do Ceará, conseguir atingir milhões de pessoas é algo muito impressionante. Você não tem uma palestra para apresentar?”. Matuto, eu disse “claro, que tenho!”. Acontece que eu nunca tinha sequer assistido uma palestra. Ele me chamou para um congresso em Maceió, com estudantes de Administração vindos de todo o Nordeste. O congresso aconteceria em duas semanas. Nesses 14 dias, uma vez que descobri que tinha um case de sucesso, fui então descobrir o que era uma palestra. Foi engraçado, pois, no dia seguinte ao convite, ele me ligou e disse “Bráulio, confirmei a palestra, está tudo certo, mas tenho um detalhe importante pra te avisar, devido à grade de horários do evento, sua palestra tem de ter uma hora e meia de conteúdo”. Eu disse a ele “rapaz, minha palestra tem duas horas, mas vou cortar meia hora para poder adequá-la ao congresso”.
Você tirou de letra e, a partir daí, vieram outros convites?
Mostrei confiança desde o começo, e não poderia ter agido diferente, afinal eu estava ali para contar minha trajetória. Posso estar longe de ser o melhor palestrante do Brasil, mas, para contar minha história, pode ter certeza que sou o melhor. Fui aplaudido de pé e minha palestra foi eleita pelo público a terceira melhor do evento. Como foi um congresso para universidades de todo o Nordeste, sai de lá com vários convites para outras palestras e não parei mais. Já palestrei para o Sebrae, Coca-Cola, a Feira do Empreendedor do Ceará, a Feira do Empreendedor da Paraíba. Do jeito que a coisa vai, espero rodar o Brasil inteiro.
A página do Facebook gera alguma receita financeira?
Procuro não envolver publicidade com a Nação Nordestina, pois, com esse trabalho, acabei me tornando espécie de referência da cultura local. Com a página e as palestras, fui convidado para prestar assessoria em ações e eventos voltados para o público nordestino. Como eu tenho esse domínio e essa facilidade com o assunto, se a Coca-Cola, por exemplo, pretende desenvolver uma ação de marketing para o público daqui, ela me procura para fazer trabalhos na internet. Também prestei assessoria para o café Três Corações, para a Cajuína São Geraldo, para o Guaraná Jesus. É daí que vem minha receita, além das palestras.
Por fim, que mensagem você gostaria de deixar para os brasileiros que ainda têm preconceito com o povo nordestino?
Anteontem, eu fiz uma participação via internet, no programa Encontro, da Fátima Bernardes, e ela foi muito feliz quando encerrou o bate-papo comigo. Eu falei que defender o povo nordestino era uma causa nobre e “Fatinha” disse que quando estou defendendo o povo o nordestino estou defendendo todo o povo brasileiro. Exatamente o que eu penso. Somos um só povo. Defender sua cultura regional não significa que você não possa apreciar e, principalmente, respeitar as demais. Isso vale não só para o Brasil, mas para o mundo todo. Então, essa relação de amor depende de uma coisa só, o respeito às diferenças. O gaúcho pode respeitar e admirar a cultura nordestina, da mesma forma que o nordestino pode respeitar e admirar as tradições gaúchas. Antes de qualquer coisa, todos somos brasileiros. Tenho tatuado em meu braço um poema de Patativa do Assaré e, nele, tem a frase “sou brasileiro / filho do nordeste / sou cabra da peste do Ceará”. Digo o mesmo que Patativa, com muito orgulho. As pessoas precisam de mais amor, de mais respeito e de compreender o próximo. Quando a gente somar a cultura do Sul com as do Norte, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, a gente só vai ter a ganhar. Vamos fazer um Brasil muito mais rico.
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