São mais de quatro décadas de produção fotográfica reunida em nove salas de um casarão que também tem muita história. No centro de São Paulo, a construção do século 17 teve entre seus moradores Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos. Agora sede da Casa da Imagem, o espaço abriga até o dia 7 de fevereiro de 2016 a exposição Por Debaixo do Pano, da fotógrafa Nair Benedicto. Nela, imagens feitas a partir dos anos 1970 mostram de retratos populares a manifestações políticas, passando por símbolos do afeto e da miséria humana. Aos 75 anos, a fotógrafa abre ao público uma espécie de diário, no qual revela suas mais diversas experiências, por diferentes cantos do Brasil. Trata-se de um processo em construção. Há registros icônicos, como os de trabalhadoras do sisal na década de 1980, mas também imagens inéditas, captadas há poucos meses. Aliás, era com entusiasmo de principiante que Nair recentemente fotografava a montagem da exposição, que tem curadoria de Diógenes Moura.
Um dos trabalhos mais instigantes mostrados em Por Debaixo do Pano é a série Índios Molhados, criada a partir de material produzido em Altamira (PA), em 1989, durante o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, aquele que contou com a presença do cantor inglês Sting. Vinte e quatro anos depois, um vazamento no telhado da casa da fotógrafa provocou a entrada de água em imagens que não haviam sido selecionadas originalmente. “Eu tinha de brecar a água. Ela é muito rápida. Fiquei tentando recuperar o que dava para recuperar”, conta Nair. “Depois, usei água para fazer umas intervenções. Quis mostrar o branco entrando nos índios.”
Descendente de italianos, nascida e criada em São Paulo, Nair teve desde sempre agudo interesse pelas questões sociais e pelas manifestações populares. Em São Paulo, marcou época ao fotografar o forró do acordeonista Mario Zan, no bairro do Jabaquara, que atraía casais de todos os lados da cidade nos anos 1980. Imagens de pares exalando tesão no forró integram a mostra, assim como fotografias tiradas na Parada Gay deste ano. “Uma das paredes mostra só pernas”, diz o curador. “Ela é sempre muito bem recebida na passeata.” Nair vai além. E conta o antídoto que usa contra o baixo-astral: “Sempre digo para minhas amigas: quando estiverem se sentindo feias, o melhor a fazer é se arrumar e ir para uma passeata gay. Vão ganhar muitos elogios. É maravilhoso”.
Sensível e de bem com a vida, Nair circula com a mesma desenvoltura em outras partes do País. Há seis anos, por exemplo, ela acompanha o Carnaval de Pernambuco, mas não se limita aos desfiles no Recife. “Comecei a me interessar muito pela função social do Maracatu. No passado, a mulher era proibida de participar”, diz a fotógrafa, referindo-se à manifestação da cultura tradicional da Zona da Mata de Pernambuco. “Hoje existe um grupo formado só por mulheres. Consegui fotografá-las em um engenho desativado.” Quando soube que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também mantinha a tradição, ela não teve dúvida: “Fui ao local deles. Não fiz na avenida”.
Acompanhar de perto as pessoas e esperá-las se aprontar faz parte da rotina de trabalho de Nair, que chegou à fotografia quase por acaso. Seu plano original era trabalhar com documentários, mas as possibilidades de atuação na área ficaram muito restritas depois que ela foi presa, em outubro de 1969. Então casada com o industrial francês Jacques Breyton, Nair era mãe de três filhos pequenos e estudava Rádio e TV na Universidade de São Paulo (USP) quando a casa da família foi invadida pela polícia política. Eram homens do delegado Sérgio Fleury, do Dops, atrás da rede de apoio da Ação Libertadora Nacional (ALN) em São Paulo. Como Nair, Breyton, que havia recomeçado a vida no Brasil depois de integrar a resistência francesa contra o nazismo, foi jogado em seguida nos porões da ditadura.
A tortura, associada aos tempos que passou na prisão, marcou Nair a ponto de hoje influenciar a seleção de fotos para a exposição. “De repente, vejo pessoas pedindo a volta dos militares. Eu não esperava passar novamente pelo que passei. Estava fora de cogitação”, comenta. Uma das salas de Por Debaixo do Pano é dedicada ao período da ditadura. Nela, encontram-se duas fotos da estudante de Psicologia Aurora Maria Nascimento Furtado, a Lola, que Nair conheceu. Militante da ALN, ela foi morta na tortura no Rio de Janeiro, em novembro de 1972. Em outro núcleo da exposição, em uma das quatro vitrines com imagens e objetos que marcaram a trajetória da fotógrafa, um documento assinado por 32 mulheres no dia 3 de julho de 1970 também remete à ditadura. A segunda a assinar é Dilma Vana Rousseff Linhares. Como as outras presas políticas, a hoje presidenta desejava boa sorte a Nair no Mundão que a fotógrafa estava prestes a desfrutar, depois de quase nove meses no presídio.
VENTOS NA SUPERFÍCIE DO OCEANO (Por Nair Benedicto)
O que eu sempre quis na vida foi ser protagonista. Nasci em São Paulo. Meus primeiros dez anos vivi no bairro da Liberdade. Os vizinhos eram descendentes de italianos como eu, ou espanhóis, negros, japoneses, árabes. Meu primeiro namorado foram dois irmãos japoneses. Sem drama! Num dos primeiros boletins de avaliação da ótima escola pública que eu frequentava, tentei transformar minha nota 3 em 8. Minha mãe foi chamada. Não fui punida pela escola nem pela minha mãe (já viúva), mas percebi que estudar e aprender eram oportunidades que não deviam ser desperdiçadas.
Adolescente, arrumei correspondentes em vários países da América Latina, Europa e Ásia. Alguns deles conheci pessoalmente. Infelizmente, a polícia dos anos 1960, quando invadiu minha casa, apreendeu fotos e cartas desse período bonito da minha vida, como comprovantes de minha subversão. Formei-me em Rádio e TV cursando a Faap e a USP. A ditadura dos anos 1970 tornou impossível o exercício da profissão nos canais normais. Tornei-me fotógrafa!
Tenho nojo ao ver pessoas empunhando bandeiras nas ruas e nas redes sociais pela volta dos militares. Mas é fácil de entender: 30 anos de ditadura, matança generalizada de lideranças rurais, operárias e estudantis. Exílio de cabeças pensantes como Paulo Freire, Oscar Niemeyer, Celso Furtado, Darcy Ribeiro e outros. Cargas tributárias sobre consumo e produção. Uma elite vivendo sem trabalhar, apenas administrando heranças e o próprio capital, habituada a tratar o bem público como se fosse privado, socializando dívidas e privatizando ganhos. A Constituinte de 1988 não chegou sequer a arranhar alguns problemas básicos: revisão das concessões dos meios de comunicação, reforma política, reforma agrária, imposto sobre fortunas. A Nova República nasceu morta, aglutinando os remanescentes da ditadura. Deu no que deu!
Sou contra a corrupção. Mas ela precisa ser atacada sem cinismo nem hipocrisia. Corrupção é corrupção! Corrupto precisa deixar de ser apenas o OUTRO: o outro indivíduo, o outro partido, o outro time. Mensalão, trensalão, Banestado, Metrô de São Paulo, Vale do Rio Doce, compra de votos, sonegação de declaração do Imposto de Renda, subornos de guardas. A corrupção acaba com a noção do bem comum. Acaba com a política. Além da crise econômica e social, vivemos um momento de falta de representatividade. Na periferia, entre outras coisas aprendi que não existe bala perdida. A bala é artefato feito para matar. Não temos lei da pena máxima na legislação, mas ela existe na prática. A polícia em São Paulo e no País todo está matando: índios, líderes rurais, negros, mulatos e pobres de qualquer cor.
UM UNIVERSO PARA UM TEMPO INTERMINÁVEL (Por Diógenes Moura, escritor e curador de fotografia)
Na sala da sua casa, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, Nair Benedicto me diz que nunca fez uma fotografia para ser a mais importante de todas as imagens: “Quero que seja a melhor representação do que estou vendo. Se você se liberta de tudo, a fotografia acontece. Determinadas fotos me dão tanta querência que não me preocupo com o ‘estilo’ em que ela poderá ser definida”. Foi dali, próximo à janela, que foram feitas as duas últimas imagens que estão em Por Debaixo do Pano: uma cena impregnada de cinza, paulistana entre fuligem e capitalismo, com quase nenhum reflexo do janelão vazado por onde se vê o lado de fora da rua invertido, os prédios de cabeça para baixo. A fotografia foi pensada para finalizar a série sobre a ditadura militar. Foi daquela forma, presa ao pau de arara, que Nair Benedicto foi torturada, em 1969. Lá, sem nenhuma chance, ela enxergava o mundo ao redor virado ao contrário. Assim é Por Debaixo do Pano, um título que diz tudo nesse momento perverso e cínico que estamos vivendo. O pensamento de uma artista diante dos seus dias: a mulher que se põe (despida) diante da nossa avassaladora existência humana. Esse, o contorno estupefato e ao mesmo tempo aveludado que conduz sua criação nas últimas cinco décadas. Nada em suas imagens vaza para limites exteriores. Sabendo disso a fotógrafa olha adiante como olha para si mesma. Escreve numa exposição o que lhe perturba nos tempos atuais: a fatura do processo de decomposição no qual estamos todos inseridos. Seguindo esse raciocínio tão urgente Por Debaixo do Pano não é apenas fotografia: é também navalha na carne, a noite dos tempos, o corpo líquido, o músculo em chamas, um poema nascendo, a carne que sangra, a garganta das coisas.
Nair Benedicto: Por Debaixo do Pano
Casa da Imagem.
Rua Roberto Simonsen, 136, São Paulo (SP).
De terça a domingo, das 9h às 17h. Gratuito.
Até 7 de fevereiro
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