Depois de sair de uma gafieira, no centro do Rio de Janeiro, por volta de 1962, Pelão topou com um tipo simpático, de cabelos brancos e voz rouca, que chamava todo mundo de “meu filho”. O tipo era Nelson Cavaquinho. Naquele dia, nascia uma amizade que duraria até 1986, ano em que o músico morreu – se estivesse vivo, teria completado 100 anos em 29 de outubro. Um dos frutos desse encontro foi o principal disco da carreira de Nelson, o LP homônimo lançado em 1973 pela Odeon.
João Carlos Botezelli, o Pelão, é um dos principais produtores musicais do Brasil. Seus discos são registros únicos das principais vozes da música brasileira – além de Nelson Cavaquinho, ele produziu discos de Adoniran Barbosa, Cartola e Donga. Paulistano, Pelão, que mora no bairro de Perdizes, relembra-se da gravação do álbum de seu amigo Nelson.
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“Eu estava na Avenida Rio Branco, no Rio, e resolvi ir à Odeon para cumprimentar amigos e pedi que me apresentassem ao Milton Miranda, diretor artístico da gravadora”, diz. Para sua surpresa, Milton o recebeu com festa e perguntou qual disco ele gostaria de fazer. Prontamente, respondeu: “Nelson Cavaquinho”. Miranda topou na hora. “Quase caí duro, nunca tinha produzido um disco antes e nem sabia se Nelson iria aceitar.”
O músico aceitou o convite, mas impôs uma condição: se o disco saísse, Pelão teria de raspar o volumoso bigode, sua marca registrada na época. A gravação foi feita na sede paulistana da gravadora. “Não fazia ideia de como as coisas funcionavam, mas quis fazer tudo do meu jeito”, diz Pelão, que dispensou palpites do técnico de som. “No final, deu tudo certo.” E o bigode? “Raspei, não teve jeito.”
O LP se transformou no principal registro da música de Nelson e a ousadia de Pelão rendeu-lhe o prêmio de melhor álbum do ano. Na época, o crítico José Ramos Tinhorão escreveu no Jornal do Brasil: “Apesar da lenda criada em torno da figura do curioso trovador de cabelos brancos, faltava uma prova em disco. É essa prova que a Odeon vem oferecer agora com o seu LP Nelson Cavaquinho, que constitui, mais do que um documento de genialidade, uma obra de amor”.
Antes do disco, Nelson já havia gravado dois álbuns solo: um pela Castelinho e outro pela série Documento, da RCA. O primeiro, produzido em 1970, só chegaria ao mercado alguns anos depois, sob o selo da Continental – a Castelinho nunca chegou a existir comercialmente. O da RCA é um disco feito sem os cuidados que a música de Nelson exigia.
O álbum lançado pela Odeon, ao contrário, é um marco. Tinhorão ainda escreveu: “A Odeon pode contar com o entusiasmo (e o amor) de um produtor paulista de vocação carioca: J. Botezelli, conhecido como Pelão”.
No LP, Nelson foi gravado tocando seu instrumento, o violão, e essa foi só uma das decisões do produtor. Em Caminhando, terceira faixa do disco, ele toca cavaquinho, instrumento que lhe rendeu o apelido. Convidar Guilherme de Brito, que divide a autoria das principais músicas de Nelson, foi outra sacada de sensibilidade de Pelão. “Quero apresentar a vocês meu parceiro Guilherme de Brito que, pela primeira vez, está cantando ao meu lado. Nós somos compadres, amigos e parceiros. Graças a Deus”, diz Nelson Cavaquinho na oitava faixa. Os dois cantam juntos as músicas A Flor e o Espinho, Se Eu Sorrir, Quando eu me Chamar Saudade e Pranto do Poeta.
Em 1974, Pelão produziu, pela Marcus Pereira, um álbum de Cartola, responsável por tirar o sambista do ostracismo em que tinha caído. O sucesso da produção despertou ciúme em Nelson Cavaquinho. “Você não colocou cordas, né?”, quis saber. “O grande status para eles era ser gravado com orquestra, por isso perguntou das cordas. Quando disse que não, ele se acalmou”, lembra-se Pelão. O diálogo revela mais uma vez a sensibilidade do produtor, que optou por registrar Nelson e outros grandes sambistas como eles eram.
Na capa do álbum, Nelson Cavaquinho dedilha o violão só com o polegar e o dedo mínimo, como sempre fazia. “Essa foto do disco fui eu que tirei durante um show no Teatro Opinião. Ele estava num porre danado, acabou enroscando os dedos e estourou umas três cordas do violão, mas continuou a tocar”, diverte-se Pelão.
Vida simples
Escorado em um botequim e circundado por amigos, Nelson Cavaquinho conserva um olhar perdido, que não se sabe se é de tristeza ou efeito do copo de cachaça pousado em sua mão. Nas próximas cenas, ele anda distraidamente pela Lapa carioca, proseia com os amigos, fuma, bebe, canta e toca. As imagens são do documentário Nelson Cavaquinho, de Leon Hirszman, filmado cinco anos antes do lançamento do disco produzido por Pelão. Recém-restaurado pela Cinemateca Brasileira, o filme tem pouco mais de 13 minutos. Embora breve, talvez seja o registro audio-visual mais fiel ao músico da Mangueira. O documentário mostra cenas cotidianas do mundo de Nelson. Assim como outros artistas populares, ele foi um homem de vida simples, afastado do jogo comercial.
As letras de Nelson, assim como suas melodias, são carregadas de melancolia. Mas, no documentário, ele diz: “Gosto muito de palestrar com os amigos e brincar, tristeza só nas músicas”. As “palestras” entre os amigos foram inúmeras. “Nelson era um grande sujeito. Quando vinha a São Paulo, bebíamos no Alemão. Fechamos e abrimos as portas do bar várias vezes”, diz Pelão.
O produtor ainda frequenta o mesmo botequim que ia com Nelson. A simplicidade da sua rotina e seu relativo anonimato são semelhantes a do amigo. Além das memórias, fotos e gravações, Pelão guarda dois fios de cabelo do músico. Não se sabe ao certo se foram os anos de amizade ou os fios guardados com tanto cuidado. Mas, por causa do jeito simples, da voz rouca e do talento, é possível enxergar um pouco de Nelson em Pelão.
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