Em entrevistas concedidas separadamente à CULTURA!Brasileiros, Eloar Guazzelli e Rodrigo Rosa, responsáveis pela adaptação para os quadrinhos de Grande Sertão: Veredas usaram repetidas vezes palavras como “responsabilidade”, “compromisso”, “coragem” e “empenho” ou, de modo mais contundente, “medo”, “angústia” e até mesmo “pavor”. Todas elas em referência ao enorme desafio que foi para ambos transpor para a HQ um dos maiores clássicos da língua portuguesa, escrito por João Guimarães Rosa (1908-1967) em 1956, com todos os riscos que isso envolvia. “É uma das grandes obras da literatura do mundo, não só do Brasil, e em uma adaptação o comum é as pessoas repararem nas falhas, não no que ficou positivo. Então eu estava preparado para tomar porrada. Achei até que ia ter que voltar para a terapia, mas, felizmente, não precisei, porque a reação foi muito melhor do que eu esperava”, brinca Guazzelli, 53, anos, que assina o roteiro da versão em quadrinhos. “As pessoas podem ter críticas, mas percebem que tem uma dignidade ali, tanto minha quanto do Rodrigo. O empenho dos dois está evidente”, segue ele.
De fato, o livro – publicado inicialmente no fim de 2014 em edição limitada e agora em versão mais barata, com tiragem maior – não só obteve boa repercussão com o público como foi ganhador do Troféu HQ Mix, o mais importante da categoria no País, e segundo colocado no Prêmio Jabuti, na categoria adaptação. Se isso tranquiliza os autores, ambos gaúchos, não faz com que deixem de ressaltar os grandes desafios enfrentados ao longo do processo de trabalho: para Guazzelli, resumir o texto original, transformando o livro de mais de 600 páginas em uma versão de menos de 180 páginas, entre texto e ilustração; para Rosa, que assina a arte, dar cara para alguns dos personagens mais célebres da literatura brasileira, como Riobaldo e Diadorim, além de colocar em ilustrações o universo de jagunços, vaqueiros e mulheres do sertão.
“Muita gente não sabe que trabalho com roteiros, com textos”, diz Guazzelli, mais reconhecido como ilustrador e desenhista ou por seus trabalhos com animações. “Então foi uma honra ser chamado para fazer essa parte, ao mesmo tempo que cortar Guimarães Rosa é uma tarefa inglória. Tem histórias maravilhosas dentro da história maior, e eu tive que manter só a essência. Às vezes eu me sentia um assassino”, completa. Por escolha tanto do autor quanto da editora e dos familiares do escritor mineiro, a adaptação foi feita de modo extremamente fiel ao texto original e à sua linguagem particular. Até mesmo a dedicatória a Aracy Moebius de Carvalho, segunda esposa de Guimarães Rosa, foi mantida no início dos quadrinhos. E foi no texto original, justamente, que Guazzelli buscou a confiança que precisava: “Tive que cortar trechos enormes, mas aí eu fui atrás do poeta, das frases isoladas que são magníficas e que eu quis destacar. ‘Deus mesmo, quando vier, que venha armado!’ ou ‘quando bala raciocina’, essas eu tinha não só que preservar, mas comecei a garimpá-las em meio à obra. Então é cortar, mas é também achar o ouro”, afirma.
Para poder contar toda a história em espaço reduzido, o roteirista precisou também priorizar a narrativa principal e, muitas vezes, deixar de lado não só histórias “paralelas”, mas também descrições longas e um viés mais intimista da obra de Guimarães. Ainda assim, esse lado não está ausente e surge com força em ocasiões onde um só desenho, com pouco texto, ocupa uma ou duas páginas inteiras do livro. De certa forma, essa quase ausência de palavras dá mais relevo ao drama psicológico dos personagens e abre espaço para a ressonância das emoções.
Desenho em cor de terra
Para Rodrigo Rosa, 44, anos, responsável pelos desenhos, o trabalho não foi menos difícil. Se, por um lado, a narrativa de jagunços e conflitos em meio a paisagens desérticas e de vilarejos se mostra altamente “cinematográfica” e propícia para ser transformada em quadrinhos – “tem um clima épico, é um pouco o nosso faroeste filosófico brasileiro” –, por outro, criar os traços dos personagens foi um tiro meio no escuro. “Cada um tem um livro dentro da sua cabeça. Então é preciso saber que você nunca vai conseguir agradar a todos”, diz Rosa. “Dá medo, mas também é instigante.” Nesse sentido, Guazzelli ressalta o alto grau de subjetividade do processo: “Afinal, esse é o sentido de se ter um desenhista, com traços próprios”. Ao que emenda: “É um desafio gigantesco. Às vezes eu até ria, e pensava: ainda bem que não sou eu!”, brinca. “Mas o Rodrigo tem uma técnica e um repertório muito maduros, e claro que fui solidário nessa angústia. É um trabalho que precisa ser feito, e você tem que pagar o preço de estabelecer um padrão que, evidentemente, nunca vai ser unânime”.
Quanto às feições dos protagonistas, que tinham que passar inclusive pela aprovação da família de Guimarães Rosa – zelosa do legado do escritor –, a de Diadorim foi a mais complicada. “Eu já tinha quase 100 páginas rascunhadas e a gente ainda não tinha definido a cara de Diadorim”, conta Rosa. Já para o aspecto mais geral, a escolha do ilustrador foi por uma tonalidade amarronzada e “terrosa”, lembrando por vezes características da gravura. Utilizando apenas lápis, nanquim e carvão, além de um tratamento com cores sóbrias no Photoshop, o autor criou uma textura fosca e coloração escurecida que perpassam todo o livro. “Eu queria mesmo essa coisa meio de terra, de sertão. Até uma ideia meio nostálgica, de tempo, que vem com isso, com o tratamento das páginas”, diz ele.
O bom acabamento do livro, de capa dura e impressão em páginas grossas, faz com que mesmo a nova versão – mais barata que a anterior, que era de R$ 199,90 – tenha um valor razoavelmente elevado, de R$ 79,90. Mas Guazzelli relativiza: “Sinceramente, me incomodo quando chamam de caro. Evidentemente eu gosto de uma versão mais barata, que alcance um público maior, acessível para estudantes, por exemplo. Mas muita gente que reclama do preço é gente que gasta isso em um jantar, e não considera que vai ficar com o livro para sempre; um livro que envolveu grande esforço e que é um trabalho único. É claro que defendo edições baratas, mas acho que tem que dessacralizar essa ideia sacana de gente que acha normal pagar uma fortuna em um jantar, mas reclama para comprar um livro”. Apesar da crítica, Guazzelli conclui a conversa em tom positivo. Citando nomes como Marcello Quintanilha, André Kitagawa, Rafael Sica e o próprio Rodrigo Rosa, ele diz: “Eu acho que o quadrinho brasileiro vive, em certo aspecto, o melhor momento de sua história, independentemente da crise econômica. Houve um tempo em que era um território de grandes autores, mas era latifúndio. Meia dúzia de grandes nomes podia viver disso e uma legião de autores independentes, como eu, não tinha espaço. Hoje acho que uma maturidade foi atingida e que ela veio para ficar”.
Grande Sertão: Veredas – adaptação Guazzelli e Rodrigo Rosa – Globo Livros Graphics, 180 págs.
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