Quem o conhece empunhando sua guitarra semiacústica, com os acordes riquíssimos e as melodias imaginativas que obrigam Zezo Ribeiro, seu parceiro e também guitarrista, a se contorcer para segui-lo, não imagina estar diante de um dos heróis da Jovem Guarda. Mas o jeitão sério e disciplinado serve apenas para blindar o humor ferino de Olmir, o Alemão, imortalizado no panteão erguido durante as jovens tardes de domingo por ter composto O Caderninho, uma das poucas canções do período que tinha mais de três acordes. Gravada por Erasmo Carlos, a canção foi feita tendo a voz de Wilson Simonal em mente e poderia ter sido batizada de Garota da Casa Verde, bairro da Zona Norte de São Paulo onde o autor sempre morou. A Helô Pinheiro do Alemão era filha de um técnico de televisão do bairro e nunca soube da homenagem.
Devido à longa carreira, Alemão tem sido alvo de homenagens que não raro dão oportunidade a jam sessions, no mínimo, históricas. Levado pelo incansável Zezo, o músico tem dividido palco com nomes como Guinga, Hermeto Pascoal, Proveta, Renato Borghetti, Arismar do Espírito Santo, Yamandu Costa e muitos outros. Mas não se trata de uma consagração. Alemão está tocando com seus pares. Na virada dos anos 1970, Hermeto Pascoal integrou a banda de Miles Davis, vindo de um grupo revolucionário brasileiro, o Brazilian Octopus. Quem era o guitarrista do BO? Alemão.
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Quem não viveu os anos 1960 não tem ideia do que foi o surgimento do rock’n’roll, dos Beatles e da Jovem Guarda para os músicos brasileiros e de todo o mundo. De repente, os instrumentos musicais se limitaram a baixo, guitarra e bateria. Quando muito, acrescentava-se um piano, um par de maracas, um pandeiro (mas sem o couro!). Um tocador de oboé tinha tanta utilidade quanto um secador de gelo. Chuck Berry ensinou-nos que um hino pode ser feito com três acordes, se tanto. Como sempre ocorre em épocas de crise no mundo moderno, a música menos óbvia se refugiou no jazz, e lugar de jazz é inferninho, boate. E foi em um inferninho que Wanderlea garimpou Olmir Stocker para seu grupo, os Wandecos. Mas um guitar hero não se faz em inferninhos.
Olmir nasceu em um circo que estava se apresentando em Taquari, interior do Rio Grande do Sul. Sua mãe pertencia ao clã alemão Hofacker. O pai dela pertencia a uma família proprietária de vários imóveis no centro de Frankfurt. Individualista e excelente ginasta, mesmo antes da febre olímpica de 1936, quando Hitler cismou que todos tinham de ser perfeitos, o avô brigou com todo mundo, entrou em um circo e se mandou para o Brasil. Antes, capturou na Itália uma bela mulher que lhe daria 24 filhos. A metade morreu com a gripe espanhola e, entre os sobreviventes, todos trabalhando no Circo Hofacker, um dos primeiros se não o primeiro a chegar ao Brasil, estava a mãe de Olmir. A equilibrista despertaria a paixão de um colono igualmente descendente de alemães que era marceneiro e fabricava carroças, o Stocker. Ao invés de raptá-la, o amante entrou para o circo. Logo, ele faria dupla com Pedro Eberle, membro da família que mexia com cutelaria. Formaram o Goiaba Preta e João Goiaba.
Olmir é o caçula dos irmãos que alcançaram a fase adulta. Sua mãe “fez arame”, ou seja, equilibrou-se naquela coisa, até o oitavo mês de gravidez e Olmirzinho, orgulha-se, foi durante 12 anos recordista da maternidade de Taquari: nasceu com 6,3 kg, após seis horas de parto. Naquele tempo, 1936, só se recorria à cesariana em casos extremos. Logo que pôde, o menino entrou para a trupe. A vida era uma constante viagem e Olmir falava mais castelhano que português e alemão, de tanto se apresentarem nos países vizinhos. Foi no Uruguai que aconteceu algo que mudaria sua vida. Seu pai, que era ligado em astrologia e misticismo, ficou muito amigo de Valdomiro Lorenz, um dos fundadores do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento. O marceneiro fabricava bitter, uma bebida amarga de alto teor alcoólico. Mergulhado em questões insondáveis com Valdomiro, não percebeu Olmirzinho, então com um ano, engatinhar até o tonelzinho, pegar a mangueira e enfiar na boca enquanto abria a torneira. Tomou um porrão, trauma alcoólico que o levou para o hospital e o faz ter enjoo com o simples cheiro de bebida – o que o tornou uma testemunha confiável, já que sempre foi o único sóbrio por onde andou.
Foi no Uruguai também que começou a tocar violão. Certo dia, aos 7 anos, enquanto os irmãos estavam tendo aula de violão no dia de folga do circo, Olmir corrigiu um acorde, algo do tipo: “Aí não é Lá menor, é Dó”. O pai lhe deu um tapa e o uruguaio reclamou: “El niño es cierto!”. Foi o que bastou para ganhar seu primeiro violão. Alemão fuçou, fuçou e começou a tocar umas milongas no circo e a plateia, para demonstrar aprovação, atirava moedas para ele. Recolhidas pelos irmãos, lógico.
Quando os pais se separaram, Olmir foi morar com a mãe, sozinho em Pelotas. Tinha 9 anos. Ela era parteira e fazia ondulação permanente em cabelos, enquanto o menino empurrava carroça e engraxava sapatos. Aprendeu a fazer “pano molhado” e tinha entre outros fregueses o artista Aldo Locatelli, considerado “o novo Michelangelo”, que pintou várias catedrais e o Aeroporto Salgado filho. Às artes do violão, somou as do cavaquinho e, aos 12 anos, estreou na PRH4, Rádio Cultura de Pelotas, cantando a Canção do Jornaleiro (“Olha a noite, olha a noite, eu sou um pobre jornaleiro…”, canta). Com o tempo, o pai que ampliara o Circo Stocker com um parque de diversões, se reaproximou e lá foi Olmirzinho para o palco novamente. Segundo ele, na Paixão de Cristo fez todos os papéis masculinos, menos o de Cristo. Não dava para dizer que faziam sucesso. Os gaúchos olhavam desconfiados. Olmir se lembra de que estavam em Arroio Grande e a programação do dia era “primeira parte, no picadeiro: atrações e variedades”; “segunda parte, no palco: o drama em três longos atos, de Amaral Gurgel, Os Transviados“, uma peça encenada com a minha família. “Um dia eu estava na frente do teatro e chegaram três ou quatro gaúchos a cavalo”, diz Alemão. Um puxou um cigarro, acendeu e perguntou: ‘O que é que os burlantim (artistas de circo) vão apresentar aí?’. Nenhum sabia ler. O que sabia mais ou menos falou: ‘Pelo o que estou vendo aí, eles vão pegar uns três veados, botar no picador e dar umas voltas aí pra levar os pilas da gente!’.”
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Confira na próxima edição A Influência do Jazz, a segunda parte da história de Olmir Stocker
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