Raul de Souza partiu definitivamente do Brasil em 1970. Foi para o México e, na sequência, para os Estados Unidos. Universalmente reconhecido como um dos maiores instrumentistas que o País entregou ao mundo, o carioca de Campo Grande, criado em Bangu, sempre mostrou total inquietude e completa disposição para seguir a música onde quer que ela o leve, seja Monte Carlo ou Beirute, Curitiba ou São Paulo.Trombonista com estilo único de improvisação, Raulzinho desde garoto buscava os próprios caminhos na música, emprestando solos a regionais de choro, conjuntos de gafieira, bandas militares, grupos de soul-funk, formações de samba-jazz e intérpretes como Roberto Carlos e Maria Bethânia.Nascido João José e rebatizado por Ary Barroso, tocando em bandas – como a Turma da Gafieira de Altamiro Carrilho e o sexteto Bossa Rio, de Sergio Mendes -, juntando os pontos entre músicos e gêneros, Raul escreveu um grande capítulo não só do jazz brasileiro, mas de toda nossa música instrumental. Uma conversa com ele não é só retrato de um viver riquíssimo, mas de toda uma época, da música que se fazia aqui, personagens e pensamentos da história brasileira.Com sua voz rouca e grave – não muito distante do som de um trombone -, Raul sentou-se conosco, numa tarde em São Paulo, para contar os caminhos e acasos que constroem sua história de amor e devoção à música desde quando nasceu, em 1934, até sua partida do País, aos 35 anos. Constantemente improvisando, em sons e situações, Raul de Souza viveu mais do que seria possível biografar.
Brasileiros – Você ouvia rádio quando era menino?
Raul de Souza – Não ouvia rádio nem tinha discos em casa. Eu ouvia o rádio do vizinho. Passava na rua e ele estava sempre com o rádio ligado, tocando alguma orquestra americana. Eu parava e ficava ouvindo.
Brasileiros – E você tinha experiência com música?
R.S. – Meu pai era pastor da igreja Assembleia de Deus, então eu ia à igreja desde os quatro anos de idade e ficava vendo os caras tocarem. Eu me interessava mais pelos instrumentos graves, grandes: tuba, trombone, bombardino. Com o passar dos anos, fui tocando flauta e trompete. Mas, com 14 anos, resolvi sair, por causa dessa coisa de contracanto. Quando você canta uma música, você faz um contracanto. Significa quase contra o canto, né? Na realidade, é fuga, dizendo teoricamente. Eu fazia sem saber de nada. Em uma ocasião, toquei em um bloco de Carnaval e me pegaram. Tive de sair da igreja. Fui tocar trombone na fábrica Bangu. Tocava e trabalhava como tecelão.
Brasileiros – Você tinha relação com a música ao vivo?
R.S. – Lógico. Gafieira. Essa era a história do momento. Eu comecei com regional, depois fui para a gafieira, e depois, junto com o maestro Cipó, comecei a desenvolver um sistema de improvisação que na gafieira era proibido.
Brasileiros – Era um lado mais jazzístico?
R.S. – Era proibido! A gafieira era comercial, para dançar. Tem o “papará”, se você faz “pupuru” não pode, sabe como é que é? Qualquer frase que não fosse da melodia era proibida. Não no papel, mas pelo semblante das pessoas, dos maestros, dos contratantes. E eu sempre fui rebelde nesse ponto. Como não pode improvisar? Se você tem facilidade, improvisa. Mas eu era condenado.
Brasileiros – Você ouvia choro?
R.S. – Lógico, porque eu tocava também. Foi quando conheci o Pixinguinha. Numa festa de aniversário em que ele estava tocando, porque o violonista que tocava com ele morava em Bangu. Tive a oportunidade de conhecer o Pixinguinha e tocar com ele. Ele falou: “Sai daqui, vá me procurar na cidade, você toca bem”. Falou para eu ir às gravadoras Continental e Copacabana, que eram uma de frente para a outra, na Marechal Floriano esquina com a Rio Branco. Legal. Um dia, botei terno e gravata e fui. Cheguei, subi lá e procurei o Pixinguinha. “O Pixinguinha morreu, faz dez anos que não vejo”, o cara falou. Aí, eu pensei: “Bom, acho que ele tá muito louco”. Pedi um guaraná no bar ao lado e vi um cara com um violão pendurado no braço que, soube depois, era o Nelson Cavaquinho. “Vê uma cerveja aí, campeão”, ele disse. Ele perguntou: “Isso é trombone? Tocar trombone é difícil, mas você tem cara de que toca bem”. Falei: “Sou lá do subúrbio de Bangu”. E ele: “Ah, sou da Mangueira”. Aí, ficou aquele negócio, virei para ele e disse: “Escuta, eu vim procurar o Pixinguinha, a gente tocou junto na semana passada”. E ele: “É mesmo? Pensei que ele tivesse morrido”. Respondi: “Morreu nada”. Ele falou: “O negócio é o seguinte, vá daqui à Rádio Nacional, tem um programa ao meio-dia, depois atravesse a rua e vá ao programa do Ary Barroso, programas de calouro. Inscreva-se e levante uma nota”. Legal, legal, salvou o dia.
Brasileiros – Você foi?
R.S. – Eu me inscrevi na semana seguinte. Fui à Rádio Nacional e empatei com um camarada. Não sei quanto era o dinheiro na época, talvez mil reais hoje. Dividi o prêmio, 500 pra mim, 500 para ele. Fiquei fazendo hora, para fazer o programa na rádio do Barroso, é isso que interessava. Ensaiei uma música de flauta que eu toquei no trombone. Difícil, muito difícil. O Ary olhou para a minha cara e falou: “Um grande prêmio está acumulado, ninguém conseguiu levar e você ganhou. Mas eu não gostei desse teu nome aí, João José. Você não tem cara de João José, nem para trombonista soa bem. Mas tudo bem, vá embora, receba seu cachê e boa sorte”. Dois dias depois, fui buscar o cachê, um bolo de dinheiro em notas, uns mil réis ou coisa assim. Aí, já fiquei malandro. Pensei: “Vou esperar esse prêmio acumular de novo e voltar”. Fui pela segunda vez e ganhei novamente e ele trocou meu nome para Raulito.
Brasileiros – Ele falou “vai ser Raulito”?
R.S. – Ele disse: “João José acabou. Agora é Raulito”. Mais tarde, eu mudei para Raulzinho e ficou assim nas gravações antigas. Quando fui para os Estados Unidos, na primeira gravação, pensei: “Como é que eu vou botar meu nome? Raulzinho não existe. Já que eu estou aqui vou botar Ralph Phillip Jones” (risos). O produtor olhou para minha cara e falou: “Não, já tem muito Ralph aqui, põe Raul de Souza mesmo”.
Brasileiros – Foi na época do Ary Barroso que conheceu o Altamiro Carrilho?
R.S. – Foi na rádio mesmo, o Altamiro tocava no Regional do Canhoto. O Altamiro toca até hoje, toda quarta-feira. No mesmo lugar, no Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes. Quase 90 anos de idade. O Altamiro é meu padrinho. Foi ele quem me abriu as portas para entrar no Regional do Canhoto. O Regional acompanhava os calouros e tinha programa ao vivo. Eu pegava uma mixariazinha, mas adorava, porque estava tocando no rádio. E veio a oportunidade de organizar um grupo com o Altamiro e a Turma da Gafieira. Eu dizia: “Ah, tem o Louis Armstrong, o J.J. Johnson, o Miles Davis”. Comecei a me infiltrar no meio do jazz com o pessoal americano. Eu não tinha conhecimento, era só charme (risos). E o Altamiro não conhecia nada desse pessoal, mas sabia improvisar. E um dia ele falou: “Pô, ajuda a montar uma banda, quero gravar um disco e vou aproveitar e fazer minhas músicas com o pessoal que improvisa”. Era assim, toca a primeira parte, a segunda parte. Gravou? Se sair errado, não vai repetir.
Brasileiros – E o Sergio Mendes, como o conheceu?
R.S. – Em 1958, fui para Curitiba, porque prestei concurso para sargento da Força Aérea. Todo final de semana eu vinha a São Paulo para fazer bar sexta, sábado e domingo. Um dia, recebi um telegrama, dizia: “Venha urgente. Assinado ‘M’”. Venha urgente? Mas para onde? Pensei: “Ah, é do Maciel Maluco”. Voltei para o quartel, peguei minhas coisas e fui para o Rio. Aí, o Maciel me apresentou ao Sergio, ele estava organizando a banda.
Brasileiros – Você foi viajar para a Europa nessa época?
R.S. – Fiz excursão pela Rhodia, que era em São Paulo. Desfile de moda. Fiz com o Sergio Mendes, nós fomos para o Líbano, Portugal e Itália. Já estávamos preparando o grupo, mas era antes do sexteto Bossa Rio.
Brasileiros – Quanto tempo você tocou com o sexteto Bossa Rio do Sergio Mendes? Só na época do disco Você Ainda não Ouviu Nada?
R.S. – Só. Isso durou um ano. O disco foi bem-sucedido, vendeu muito para um disco instrumental, acho até que foi disco de ouro. E depois começaram as gravações, discos do Edison Machado, Tenório Jr., Eumir Deodato, Os Cobras. Foram três anos de ótimas oportunidades para o músico que improvisava.
Brasileiros – Foi novamente para a Europa?
R.S. – Quase no mesmo ano, já com o Luiz Carlos Vinhas, duas bailarinas, o Simonal e o Lennie Dale. Fomos para a Alemanha, Líbano, Espanha, Portugal e Itália. Passamos dois meses viajando. No ano seguinte, voltei a Monte Carlo para trabalhar nos cassinos. Fiquei quatro meses, onde troquei meu trombone e passei a tocar o de vara.
Brasileiros – E depois você passou um tempo em São Paulo?
R.S. – Quando voltei de Monte Carlo, montei uma banda. A gente tocava na boate Cave, na Rua da Consolação, toda quinta-feira. Um belo dia, fui convidado para organizar o grupo do Roberto Carlos, o RC-7. Levei o Nestico, saxofone tenor, e o Maguinho, trompete. Trabalhei com o Roberto Carlos só uns dois meses, eles ficaram lá. Mas gravei o filme, Roberto Carlos em Ritmo de Aventura. Sei lá como era a história, tinha uns bandidos querendo matar a gente, com metralhadora, tinha de ficar correndo mesmo, faz tudo de novo, era loucura. Uma hora eu estava lá agoniado, corre pra cá, corre pra lá, vejo o Roberto em uma cena com um carrinho. Pensei: “Eu vou pular nesse carrinho, não vou correr mais porra nenhuma!” (risos). Quando ele passou, eu pum, corri e o abracei. Falei: “Vamos nessa, compadre, não vai fazer cara feia, rapaz, tá filmando”. Falei qualquer coisa para o Roberto e filmaram, ficou assim mesmo (risos).
Brasileiros – Como foi parar no México?
R.S. – Recebi um convite, em 1970, para fazer parte de um trio. Ensaiei uns dois meses, arrumei 100 dólares emprestados e fui. Fiquei três anos.
Brasileiros – Como entrou na cena americana?
R.S. – Foi com a Flora Purim. Aquele outro negócio foi acabando, acabando… Quando vi, já estava com outro grupo, mexicano-americano. Então, a Flora me convidou. Fui do México para os Estados Unidos para excursionar durante um mês. Fiquei por lá. Só voltei ao Brasil depois de oito anos para um festival em 1978.
Brasileiros – Nunca considerou voltar ao Brasil nesse período?
R.S. – Pensei, mas sempre vendo a possibilidade de evolução cultural. Não posso voltar para um lugar que está a mesma coisa há 540 anos. Não é possível. Se tem festival de jazz, o cara vai porque tem músico americano. O que importa é que o cara é americano, não o que ele toca.
Brasileiros – Quando morou lá, teve o diferencial de ser um brasileiro tocando?
R.S. – Perfeitamente. Eu me considero embaixador da música instrumental no Universo. Não nos Estados Unidos, no Universo.
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