A história de vida de Carolina Maria de Jesus, que completaria 100 anos no dia 14 de março, é uma das mais surpreendentes e fundamentais de serem relembradas. Catadora de papel, foi descoberta pelo mestre (e jornalista) Audálio Dantas que ajudou a publicar seu livro, “Quarto de despejo — Diário de uma favelada”. Este vendeu mais de 80 mil exemplares no Brasil, além de ter sido traduzido para 15 idiomas.
Em 1958, o repórter Audálio estava passando o dia na favela do Canindé, em São Paulo, para retratar a situação precária dos moradores do local, quando ouviu falar dos cadernos de Carolina. Ela registrava tudo o que vivenciava na favela, em folhas que encontrava no lixo. Relatos sofridos, em que é possível sentir a dor daquela mulher e seus filhos. Logo, Audálio publicou um perfil da catadora, no Jornal Folha da Noite, revelando seu talento e dor para o Brasil. Sua obra foi publicada em 1960, virou um grande sucesso editorial e transformando sua vida. Além de expor uma outra ferida latente na sociedade: o preconceito.
Há seis anos, logo que cheguei em São Paulo, publiquei (em um fascículo da revista Caros Amigos) um texto sobre esta história, onde entrevistei Audálio Dantas. Segue abaixo, para os com mais tempo.
Para os que querem discutir a história com o jornalista, hoje (14) a partir das 20h, no Instituto Moreira Salles (IMS), no Rio de Janeiro, acontece o evento “Carolina é 100”, com exibição do documentário alemão “Favela — A vida na pobreza” (1971), seguida de um debate com Audálio e a pesquisadora Marisa Lajolo. Segue!
*A cor da fome é amarela
“24 DE JULHO Como é horrível levantar de manhã e não ter nada pra comer. Pensei até em me suicidar. Eu me suicidando é por fim a deficiência de alimentação do meu estômago. E por infelicidade eu amanheci com fome. Os meninos ganharam uns pães duros, mas estavam ‘recheiados’ de pernas de baratas. Joguei fora e tomamos café. Botei o feijão pra cozinhar.” (trecho de Quarto de despejo)
Quem nunca viveu sem ter um centavo no bolso pode achar que esse trecho e a história de Carolina Maria de Jesus é mesmo uma ficção. Quem passou fome só na segunda-feira, dia em que começou aquela dieta que acabou na quarta, pode até pensar que seus escritos eram exagerados demais. Mas a verdade da pobreza é um soco no estomago e a cor da fome é amarela.
Então, foi num dia de 1958, que um jovem repórter chamado Audálio Dantas estava no Canindé. “Naquela ocasião começavam a falar do problema da favela em São Paulo, era uma coisa de 50 mil favelados na cidade, que começaram a aparecer nas margens do Rio Tietê, que era algo simbólico, estavam enterrados, sumidos na lama”, conta Audálio, que se propôs a fazer uma reportagem sobre a vida daquelas pessoas.
Conversou com os moradores, procurou fatos, observou o local. Foi aí que Audálio descobriu aquela mulher, que seria descoberta a qualquer momento. Com a reportagem ele queria contar um pouco do cotidiano daquela gente sofrida, mas encontrou alguém de dentro da favela que já havia feito isso. Carolina acontece na vida do repórter no terceiro dia de visita na favela.
“Ela sabia da minha presença. Ela anunciou que ia registrar uma cena que estava ocorrendo no livro, aí quis saber que livro e pedi pra ela me mostrar. No barraco dela, tinha uma pilha de cadernos, onde estavam registrados o dia-a-dia dela e parte da favela. Já naquele momento, eu percebi que não tinha mais nada para escrever. Na verdade ela parecia um presente. A reportagem estava feita.”
Carolina Maria de Jesus tinha 49 anos, três filhos: José Carlos, João e Vera Eunice. Era catadora de papel. Gritava em folhas que recolhia pela rua. Escreveu 20 cadernos, contando seus dias, suas noites, suas leituras, o que comprava, como era difícil trabalhar em dias de chuva e ficar em pé sem ter comido.
Dias no Canindé
Audálio leu umas três ou quatro páginas dos seus diários, o suficiente para perceber que tinha ali um tesouro: “Primeiro, era a visão de quem vivia o problema. E segundo, porque era evidente e extraordinária capacidade de narrar, tinha um estilo muito próprio”. Carolina frequentou até o segundo ano primário. Mas, foi o suficiente para ela tomar gosto pela literatura. Ela dizia que tem gente que quando não tem nada pra fazer fica bravo e grita, ela preferia escrever.
Suas páginas começaram a ser escritas em 1955. Em 1958, Audálio pediu emprestado para ela um dos cadernos, para ele selecionar trechos de seu diário para a matéria, que foi publicada na Folha da Noite em 1958.
“19 DE SETEMBRO …no frigorífico eles não põem mais lixo nas ruas por causa das mulheres que catavam carne podre pra comer”
Na noite de Natal, seu filho passa mal, ela acredita a causa foi a melancia podre que ele encontrou perto do rio, onde os comerciantes jogavam seus produtos deteriorados e comeu: “Na minha opinião os atacadistas estão se divertindo com o povo igual aos Cezar quando torturava os cristãos. Só que os Cezar da atualidade, supera os Cezar do passado. Antes o povo era perseguido pela fé. E nós, pela fome. Naquela época os que não queriam morrer deixavam de amar a cristo. Nós não podemos deixar de comer.” No dia 31 de dezembro, ela conta que uma mulher foi dar a luz a um bebê na virada do ano e seu filho nasceu morto. No dia 1º de janeiro de 1959 ela estava triste.
Ela descrevia o ambiente, falava dos clichês soltados por padres, clichês sobre a democracia racial, brigas entre marido e mulher, de Jânio Quadros, da presença da polícia, meretrizes, brincadeiras de crianças, morte por intoxicação. Ela criticava, dizia que pobre não podia ter ideal nobre, queria publicar seu livro. Ela convive com o preconceito, ora dá a volta por cima, ora reflexiona sobre, “adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo negro mais educado do que o cabelo de branco”; ora cai: “A minha (vida), até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.” Carolina explica que quando o limite da fome passa do insuportável, as coisas do mundo ficam em um tom só, amarelado.
Quando Audálio chega à redação da Folha de S. Paulo com tais cadernos, que jorravam angústia, curiosidade, dor e um sentimento de vazio que ecoava no estômago, todos queriam fazer uma vaquinha para publicar o livro: “Logo depois, fui convidado a trabalhar na revista O Cruzeiro, e lá fiz outra matéria em cima desse diário, que fez uma repercussão maior, porque a revista era de circulação nacional. É aí que surgiram as propostas das editoras”. Elas queriam publicar um livro com aqueles escritos, Audálio editou aquelas páginas viscerais, e quando foi publicado o livro, a vida Carolina deu uma reviravolta.
Audálio estava no auge do seu entusiasmo com a profissão de repórter. Tinha 28 anos. Carolina Maria de Jesus estava com 49 anos, no auge do começo de algo diferente. Ela nasceu em 1914, na cidade de Sacramento, Minas Gerais, onde passou sua infância e adolescência, migrou para São Paulo quando as atividades econômicas passaram de extração de ouro para a pecuária, era o fenômeno do esvaziamento das populações rurais, as migrações em busca de emprego e melhores condições de vida nas grandes cidades.
Carolina nasceu apenas 26 anos depois da abolição da escravatura. O negro não tinha sido incluído na sociedade com aquela abolição. Tinha sido abandonado, depois de ser explorado todo o seu trabalho e alegria. Um tempo complicadíssimo. Para Carolina, mulher negra, que veio do interior, semi-analfabeta, que catava lixo para tentar manter os filhos, era mãe solteira com filhos de pais diferentes, naquele contexto todo, de exclusão e fome, ela venceu, mesmo antes da publicação do livro, não se deixou abater, escrevia sua dor, refletia sobre o suicídio, tinha vezes de patriota e vezes de incrédula. Para ela, escrever era uma arma, ela tinha consciência disso. “Ela era uma pessoa autoritária, forte. Com vontades de fazer grandes coisas”, diz Audálio.
Assim que o livro foi publicado e o sucesso editorial anunciado, Carolina virou uma heroína popular, as pessoas convidavam-na pra tudo. Desde jantares na casa da Dona Filomena Suplicy, a mãe do Senador Suplicy, até um convite feito pela revista americana Life para ir ao Rio de Janeiro, se hospedar no Copacabana Palace. “Eu tinha a pretensão de não deixar com que ela se perdesse, digamos assim. Mas, isso não adiantou, ela viveu o que ela tinha direito, viveu a glória, foi à coroação da miss negra, viajou para o exterior, Argentina, Chile, etc, além de outros estados”, conta Audálio, que via algumas coisas que aconteciam com ela como uma atitude cretina da sociedade de consumo. “Era uma Cinderela. Eu acho que é uma visão de elite da coisa, ‘olha essa pobre menina, tão feinha, criada no borralho, etc, e de repente ela vai pro palácio’.”
Protagonista de sua história
Ela saiu da favela de maneira precipitada. Depois do sucesso do livro, ela ainda não tinha uma casa pra ficar, mas isso estava começando a ser feito com os recursos que o livro estava dando. Então, sem comunicar a ninguém, de repente, foi morar num quarto dos fundos de uma pessoa de Osasco. Mas, ela tinha razão de querer sair, porque as personagens do livro eram reais. “Ela escreveu no livro que ‘fulano de tal é bêbado’, ‘fulana de tal vive dando em cima dos homens’, quer dizer, evidentemente o sucesso do livro fez com que ela começasse a ser hostilizada lá”, conta o repórter Audálio. Quando o caminhão foi pegar sua mudança, alguns moradores apedrejaram o caminhão.
Depois de um tempo, ela comprou uma casa no alto Santana, zona de classe média da capital. Foi o despejo da vida antiga, pra uma nova, em que ela era convidada a fazer até livros de provérbios. Um grande exemplo de mulher, batalhadora, que a mídia tentou subverter pelo luxo envolvente. E se de um lado apostavam na Cinderela brasileira, de um outro tinham as pessoas que não acreditavam que dela tivesse saído tal obra.
“O poeta Manuel Bandeira escreveu um artigo em que ele dizia que as pessoas não aceitavam que ela tivesse escrito por preconceito, como é que aquela negra favelada foi escrever isso, coisas poéticas maravilhosas nos diários dela”, conclui Audálio Dantas, hoje um senhor que tem guardado o que restou dessa história, um jornalista que teve a sensibilidade de ouvir mais que falar, que conviveu com Carolina até seu falecimento, em 1977, apesar das divergências e dos conselhos nunca seguidos, por uma mulher protagonista da sua história, que saiu da regra e decidiu falar em vez de abaixar a cabeça, fazendo a subversão necessária.
*Publicado originalmente nos fascículos Os Negros, da editora Casa Amarela.
Deixe um comentário