Joan Baez cantou seus versos, inúmeros filmes foram baseados em seus livros, Picasso e Sartre defenderam sua liberdade. Nâzim Hikmet (1902 -1963) não foi apenas o maior poeta turco do século 20, mas também uma figura histórica, icônica. Introduzir o verso livre na poesia de seu país e utilizar a linguagem e os temas do dia a dia, em oposição ao lirismo derramado que se praticava na Turquia, foram alguns de seus feitos literários. No campo da vida pública, o poeta participou da Guerra da Independência, denunciou o genocídio armênio – atitude até hoje temerária –, viveu o começo da Revolução Russa ao lado de amigos como Maiakóvski e Meyerhold e revelou os desmandos de governos autoritários turcos por meio da imprensa alternativa. Entre 1929 e 1938, com o Partido Comunista banido, teve várias passagens na prisão, muitas vezes sob acusações forjadas. Finalmente, em 1939, com a morte do primeiro presidente da República da Turquia, Atartuk, Nâzim é mandado para a penitenciária em Bursa, onde fica até 1950, quando é libertado depois de uma greve de fome e de manifestações internacionais a seu favor. É nesse período que escreve a maior parte deste Paisagens Humanas do Meu País. Sem a mulher e o filho, proibidos de ir com ele, passa a viver na União Soviética. Morre em Moscou, de um ataque fulminante no coração.
É uma biografia de tirar o fôlego. Parecem muitas vidas numa só. Não é de espantar, portanto, que ele tenha conseguido colocar tantas vidas, tantas vozes, tantas histórias, de origens as mais diversas, nos seus livros e em particular neste Paisagens. E tudo começou quando escreveu seu primeiro poema aos 13 anos. Um incêndio próximo a sua casa foi o tema. Era, talvez, o prenúncio da sua trajetória, forjada a ferro e fogo. O elemento incendiário surgiu primeiro, na forma de tiros e bombas, quando se alistou na Guerra da Independência, em 1920, para a retomada da autonomia perdida no conflito mundial de 1914-1918. Kemal Atartük era o líder. O grande herói turco dizia-se discípulo do avô materno de Nâzim, o militar, filólogo e historiador Enver Paxá. Mesmo assim, depois de destacado para dar aulas aos soldados, o futuro poeta teve de se exilar uma primeira vez na Rússia, por conta de suas convicções políticas. Foi lá que formou-se em Sociologia e, às leituras juvenis de Omar Khayyam e Baudelaire, adquiriu uma forte influência de Maiakóvski e da vanguarda russa.
O elemento “ferro” teve um peso mais dramático e está intimamente ligado a Paisagens Humanas do Meu País, tida como a obra-prima de Nâzim. Pois foi atrás das grades que ele escreveu o livro, um trabalho único, composto por cerca de 20 mil versos, escritos nos mais diferentes registros: diário, história, teatro, roteiro cinematográfico, conto, reportagem, folclore, canção, emissão radiofônica e, claro, poesia. Sua intenção era enciclopédica. Queria retratar o homem comum da Turquia, o trabalhador, o camponês, o artesão, o comerciante. E também os criminosos com os quais conviveu por 13 anos, nos dois presídios por que passou. Mas também foi feliz ao retratar as classes mais abastadas, nas quais ele mesmo tinha sido criado.
Trepidantes como sua vida, os versos seguem um ritmo ferroviário: as paisagens mudam rapidamente, mas o eixo é sempre o mesmo. O efeito é proposital, já que Nâzim escolheu o trem como elemento a ligar todos os seus múltiplos personagens, de assassinos a ricos comerciantes. É dentro de seus vagões, na terceira, segunda ou primeira classes, que se passam os diálogos, que conhecemos as trajetórias mais improváveis e ficamos conhecendo a história sangrenta da Turquia, das batalhas pela independência à sua participação na Segunda Guerra. Mas também há, e como, os conflitos de ordem pessoal, traições, ciúmes doentios, roubos de terra, deserções, tudo contado como se estivéssemos sacolejando no trem, em frente ao narrador, ou sentados na estação, esperando a próxima partida em meio à balbúrdia generalizada. É, sem dúvida, um verdadeiro épico moderno, que, como muitos disseram, só encontra paralelo em obras como a Odisseia, de Homero, e Guerra e Paz, de Tolstói (não por acaso, traduzido por Nâzim para o turco).
Admirado por personalidades como Picasso e Sartre, que se uniram a outros artistas e intelectuais para exigir sua soltura, Nâzim começou a redigir Paisagens em 1939, no início de sua pena em Istambul, e só terminou – se é que terminou – em 1961, dois anos antes de sua morte. Na avaliação do ótimo tradutor Marco Syrayama de Pinto, finalista do prêmio Jabuti, a experiência na cadeia foi essencial para forjar o estilo tardio de Nâzim, que a essa altura buscava uma forma e dicção “apoéticas”. Ele escreve, no texto de apresentação, que “a prisão conferiu a sua poesia uma textura social e histórica que o autor nunca teria alcançado se estivesse envolvido com o cenário dos escritores profissionais e suas polêmicas literárias.”
Deixe um comentário