Durou pouco, mas a revista Realidade (1966-1976) marcou para sempre o jornalismo brasileiro. Na verdade, a grande revolução promovida pela revista na imprensa escrita, em plena ditadura militar, durou apenas 20 meses, de abril de 1966 ao final de 1968, quando o Brasil entrou nas profundezas do Ato Institucional no 5, e acabaram-se as liberdades todas.
Até hoje, porém, a Realidade continua cult, tema de incontáveis teses acadêmicas e da curiosidade dos estudantes que querem saber como o Brasil foi capaz de produzir em uma determinada época essa revista que parecia de outro mundo.
Como Realidade era uma publicação libertária em todos os sentidos, a revista foi morrendo aos poucos, depois da diáspora de dezembro de 1968, quando saiu toda a equipe que a criou. Meu grande sonho na época era trabalhar lá, mas não deu tempo.
Alguns ainda voltariam depois, em 1969, como José Hamilton Ribeiro, até hoje em atividade como repórter do Globo Rural, e José Carlos Marão, outra estrela da companhia, colaborador do Observatório da Imprensa, mas o sonho já havia acabado. Os dois são os autores de Realidade Re-Vista (Realejo Editora), um livro belíssimo, lançado no dia 20 de dezembro, em São Paulo.
Como sou amigo deles, tive o privilégio de receber antecipadamente os originais, um catatau de 432 páginas, que a gente não consegue parar de ler. Claro que ainda não li tudo, mas me deu vontade de escrever logo, antes que eu me esquecesse de dizer alguma coisa sobre o encantamento que me proporcionou essa obra-prima.
Para quem gosta de reportagem como eu, é como oferecer salsicha pra cachorro. Nem sei por onde começar, então vamos começar do começo mesmo, com um trecho da carta do editor, José Luiz Tahan, outra grande figura, de quem fiquei amigo no lançamento de um dos meus livros em Santos, onde ele tem duas livrarias e promove a Tarrafa Literária.
Melhor é deixar o próprio Zé Luiz contar como nasceu esse livro, em um encontro em 2008. “Quando tomávamos um cafezinho no centro histórico, o Zé (Hamilton Ribeiro) lançou uma pergunta que virou um desafio pela entonação. Ele falou assim:
– Zé Luiz, você encara editar um livro? Eu tenho uma ideia, mas dependo de um grande amigo, o Marão, mas não sei, não. Você vai ter de me ajudar a convencê-lo, ele tem de escrever comigo, temos de ir ao encontro dele.”
Assim surgiu o “Projeto dos Três Zés”, ao qual se incorporou Ligia Martins de Almeida, mulher de Marão, responsável pela pesquisa e edição do livro, que conta também com um making of das reportagens. Políticos, lugares, milagres, mulheres, preconceitos, jovens, costumes, medicina, gente em geral, guerras – tudo era pauta para Realidade.
As reportagens transcritas no livro são quase todas da dupla Zé Hamilton e Marão (parece nome de dupla sertaneja), trazendo alguns “artistas convidados”, todos já falecidos, com um texto de cada um: Narciso Kalili, Sérgio de Souza, Eurico Andrade e Paulo Patarra.
“As celebridades – que garantem as vendas das revistas semanais – nunca foram um prato predileto da revista”, escreve Ligia na abertura do capítulo 9 – “Gente simples, gente boa, gente brasileira” – que, para mim, é o filé do livro.
No texto de apresentação – “Por que falar de Realidade?” -, José Carlos Marão, que se aposentou e hoje vive na bela e tranquila Águas de São Pedro, no interior paulista, conta que muitos dos estudantes que procuram os jornalistas sobreviventes daquele dream team, como eles mesmos se qualificavam, “não se dão conta de que muito do comportamento atual – como a liberdade para namorar ou ficar, o desprezo pelo tabu da virgindade, a igualdade dos direitos da mulher, a possibilidade de casar, descasar, casar de novo – começou a despontar como mudança de comportamento no período 1966-1968.
Marão procura mostrar esse lado da história, porque “os trabalhos universitários estão muito concentrados em uma eventual postura de resistência da revista ao regime de exceção”. Ele explica: “A criatividade na pauta e na finalização mostrava uma revista contestadora e irreverente, mas que nunca foi para o confronto (…).”
Marão cita um dos melhores trabalhos acadêmicos, a tese de mestrado de Adalberto Leister Filho, que chama a Realidade de uma “revista de autores, em contraposição às fórmulas pasteurizadas que viriam a seguir nas revistas semanais”.
Com tanto que já foi publicado em artigos, livros e teses de doutorado, Marão se pergunta: “Por que voltar ao assunto?”. E responde: “É simples, ainda falta mostrar a influência da revista na mudança dos costumes no Brasil, a mudança na maneira de fazer jornalismo, como tratava cada tipo de assunto e o estilo individual de seus repórteres-autores”.
Os bastidores, as receitas e os segredos dessa história estão contados no texto Vida Paixão e Morte de Nossa Senhora de Realidade, que eu gostaria de reproduzir inteiro aqui, mas é coisa de livro mesmo. Mestre dos perfis publicados na revista, ninguém melhor do que Marão para escrever essa reportagem com o perfil da Realidade.
Só para dar uma palha, a parte que mais me chamou a atenção, e que eu não conhecia, mas recomendo aos jovens jornalistas, é aquela em que ele fala da relação dos repórteres com os leitores: “Paravam em todas as bancas (…) Sorridentes, os jovens jornalistas da equipe de Realidade acompanhavam a venda de revistas (…) Conversavam com os leitores, ‘sentiam’ o leitor, sem a frieza das pesquisas.
– Por que o senhor comprou esta revista?
– É boa esta revista? O que tem de bom aí?”
Sem querer colocar um disco de bolero na vitrola, mas podemos imaginar hoje em dia um jornalista indo às bancas para saber o que o leitor pensa do seu trabalho? Alguém está preocupado com isso?
Os dois autores são caipiras paulistas: Zé Hamilton, de Santa Rosa do Viterbo, e Marão, de Ourinhos. E têm a mesma origem profissional: trabalharam juntos na Folha de S.Paulo, antes de chegar à Realidade.
Na abertura do livro, coube a Zé Hamilton fazer um retrato da época em que a revista foi lançada: abril de 1966. O país só tinha duas revistas semanais de circulação nacional – O Cruzeiro e Manchete – um número muito maior de jornais diários que hoje e uma televisão ainda incipiente.
“Chegou a revista que faltava”, era o mote da campanha de lançamento. Era ano de Copa do Mundo e a primeira capa foi um Pelé sorridente, ornado com o chapéu de guarda da rainha da Inglaterra. O Brasil dançaria na Copa, mas a capa fez o maior sucesso, servindo para mostrar que Realidade era realmente uma publicação diferente de tudo o que se conhecia até então na imprensa brasileira.
“Nesse mês de abril, a Revolução (ou golpe de 1964) completava dois anos”, registrou o repórter. Já havia muitos descontentes, até entre os que haviam apoiado o golpe, como o ex-governador paulista Ademar de Barros, que falou à Manchete: “O segundo aniversário da Revolução não será data festiva. Será dia de lamentações. Lamentações no seio da família democrática brasileira. Lamentações no cemitério das liberdades extintas.”
Pouco tempo depois, Ademar seria cassado junto com Jango, Juscelino, Jânio, Brizola, Carlos Lacerda. Naquela época, não se ouvia tantos valentes defendendo a liberdade de imprensa, que ainda havia, até ser extinta por decreto no dia 13 de dezembro de 1968, quando se deu o golpe dentro do golpe, e acabou o sonho da Realidade.
É muito bom o livro relembrar o que aconteceu naquele tempo, para mostrar o papel de cada um nesta história – para que ela não se repita. Em sua última fase, quando a Editora Abril reduziu o tamanho da revista e tentou imitar o formato e o conteúdo da Seleções, do Readers Digest, Realidade já era um fantasma de si mesma, sendo enterrada oficialmente no mês de março de 1976. Não eram bons tempos, aqueles.
Vale a pena percorrer esse livro até a última página, na qual se fala sobre os septuagenários revolucionários e da amizade de mais de 50 anos, fechando com uma foto atual, que resume a dignidade de duas vidas dedicadas ao jornalismo.
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