Redescoberta do Brasil

Foto: Leo Aversa - Crédito obrigatório.

“Guitarras e sanfonas,
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre trás-os-montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo…”

Na estrofe de Fado Tropical, escrita por Chico Buarque e Ruy Guerra para a trilha sonora da peça Calabar: o Elogio da Traição, o compositor brasileiro e o cineasta moçambicano alternam e enaltecem elementos das culturas brasileiras e portuguesas. Lusitanos, o cantor e violonista António Zambujo e a cantora Carminho resolveram botar mais tempero nesse feijão cozido pela dupla para fazerem em seus mais recentes álbuns, respectivamente, releituras de canções do próprio Chico e também do maestro Antônio Carlos Jobim.

Com o desenrolar dos dois trabalhos, o vento soprou sudoeste e os portugueses sentiram a necessidade de cruzar o Atlântico para, ao longo de 2016, reafirmar no País suas influências da Terra Brasilis. De ouvidos atentos ao jeitinho brasileiro de fazer canção desde pequenos, principalmente por causa das trilhas sonoras das telenovelas produzidas por aqui, que sempre fizeram sucesso em Portugal, os músicos vieram ao País para pedir conselhos a grandes nomes de nossa música, como o homenageado Chico, Maria Bethânia, Marisa Monte e Paulo Jobim, filho de Tom.

Na troca de impressões, os brasileiros foram também convidados a participar dos projetos da dupla lusitana. A mistura de fado e bossa deu samba e rendeu dois títulos de qualidade: Até Pensei Que Fosse Minha (Universal Music) e Carminho Canta Tom Jobim (Parlophone).

Em entrevista à CULTURA!Brasileiros, Zambujo e Carminho falaram sobre o processo de criação dos novos trabalhos e também reiteraram a influência da música brasileira em Portugal.

Tom, segundo Carminho

Maria do Carmo de Carvalho Rebelo de Andrade, conhecida mundialmente como Carminho, nasceu em Lisboa, em 1984, mas foi criada no Algarve. Também familiarizada com o principal gênero musical de Portugal – sua mãe, Teresa Siqueira, é uma fadista reconhecida –, mesmo frequentemente exposta ao canto sofrido de seus ancestrais, ela só começou a levar a sério a carreira de cantora aos 22 anos, depois de regressar de uma viagem de 11 meses em diferentes países. Destaque na cena musical portuguesa desde 2007, Carminho lançou seu primeiro álbum, Fado, em 2009, e logo chamou atenção pela naturalidade de seu canto. Segundo ela, não foi preciso coragem para soltar a voz, por ter descoberto que é “simplesmente feliz cantando”.

O primeiro contato da artista com a música de Tom Jobim surgiu também pelas novelas da Globo, mais especificamente a trilha do folhetim Brilhante, de 1981, que inclui a canção Luiza. “Tom é uma figura incontornável no percurso da minha aprendizagem musical. Foi uma descoberta avassaladora na minha vida. Esse disco resulta de várias procuras e aprendizagens. Cantar Tom Jobim mais a fundo é também aprender muito sobre música. Ele é um grande mestre, de fato.”

Um projeto dedicado ao maestro carioca já era aventado pela cantora há algum tempo, mas a ideia se intensificou quando, nos últimos anos, ela começou a vir ao Brasil com maior frequência para apresentar seu trabalho e também para rever os amigos que fez por aqui, com quem, além de colocar as conversas em dia, divide rodas musicais. “Nesses encontros o repertório do Tom surgia de forma muito intensa. Em uma dessas noites com um grupo de amigos, a Ana Jobim, viúva do Tom, me desafiou: ‘Por que você não faz um disco com as canções dele?’. A ideia  ganhou forma depois que conheci o Paulo Jobim e começamos a pensar que isso poderia ser uma realidade”, revela. No show que fez em São Paulo em março último, na turnê de lançamento de Carminho Canta Tom Jobim, a portuguesa declarou ao público: “Tom conquistou espaços em muitos corações, inclusive no meu”.

Para atribuir um sotaque lusitano aos registros, durante o processo de seleção das músicas, Carminho decidiu que não cantaria a palavra “você”, substituída pelo “tu”. Depois de mergulhar em mais de 300 composições de Tom, a fadista escolheu 14 canções e se deparou com essa questão em duas delas: Por Causa de Você, parceria do maestro com Dolores Duran, e Retrato em Branco e Preto, de Tom e Chico Buarque, no trecho “Eu trago o peito tão marcado/
De lembranças do passado / E você sabe a razão”.  No caso da primeira, recorreu a Don’t Ever Go Away, vertida por Ray Gilbert,  o mais respeitado tradutor de clássicos da Bossa Nova para o inglês, e registrada pelo maestro e Frank Sinatra no álbum Sinatra & Company, de 1971. Já em Retrato em Branco e Preto, consultou o coautor, Chico, para saber se poderia substituir o “você”, pelo “tu”. “Mandei um e-mail e ele me respondeu que sim, contanto que tivesse o crédito de tradutor da sua obra do português para o português”, conta, aos risos.

Como é impossível falar de Tom Jobim e não lembrar de Vinicius de Moraes, exclusivamente nos shows de São Paulo Carminho incluiu no repertório um fado do Poetinha, Saudades do Brasil em Portugal, escrito enquanto ele esteve exilado em terras lusitanas nos tempos sombrios da ditadura militar brasileira. “O sal das minhas lágrimas de amor criou o mar que existe entre nós dois para nos unir e separar”, recita ela, para enfatizar a beleza da letra.

Composto de 14 faixas, Carminho Canta Tom Jobim conta com a participação de Maria Bethânia em Modinha (Tom e Vinicius), de Marisa Monte em Estrada do Sol (Tom e Dolores), de Chico Buarque em Falando de Amor e do conterrâneo Zambujo em Sabiá (Tom e Chico). Além dos duetos, a cantora está muito bem acompanhada por uma banda de peso, composta por Paulo Jobim, violão, Daniel Jobim – neto de Tom –, piano, Jaques Morelenbaum, violoncelo, e Paulo Braga, bateria. A atriz Fernanda Montenegro também foi convidada para integrar o projeto e abre o registro declamando parte do poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias.

Carminho não poupa elogios aos parceiros de projeto. “Chico foi uma das pessoas que mais me falaram sobre Tom, contou diversas histórias. Marisa é uma grande amiga, uma irmã na música, que consegue fazer uma ponte entre as gerações. Fernanda é uma inspiração. E Bethânia é, para mim, uma das maiores intérpretes do Tom, além de uma grande fadista, que dá força à palavra e escolhe suas interpretações de forma muito cuidadosa”.

Feliz com a troca cultural entre as duas nações, Carminho diz considerar nosso País sua segunda casa. “O Brasil é um grande paraíso. A música sempre a perfumar os ambientes. Passando o oceano inteiro, encontramos um povo totalmente diferente, mas que fala a mesma língua que nós. É muito atraente interpretar novos poemas, novas canções com a nossa língua. O Brasil representa pessoas concretas, que eu admiro, e isso deixa de ser só um paraíso para ser uma casa”.

Neste mês de abril, Carminho leva as canções do “maestro soberano” ao público da França, de Marrocos e da Suíça.

Chico, segundo Zambujo

Em 2016, em uma das viagens feitas por Zambujo ao Brasil, o cantor encontra o ídolo Chico Buarque. Foto: Tiago Cação
Em 2016, em uma das viagens feitas por Zambujo ao Brasil, o cantor encontra o ídolo Chico Buarque. Foto: Tiago Cação

Nascido em 1975 em Beja, no Alantejo, como a maioria de seus conterrâneos Zambujo começou a escutar fado ainda criança e logo se encantou com as vozes marcantes de Amália Rodrigues, Maria Teresa de Noronha e Alfredo Marceneiro. Aos 8 anos de idade, começou a estudar clarinete e iniciou uma carreira musical que, oito anos depois, após ele vencer um concurso de jovens músicos, o fez mudar para Lisboa. Logo passou a fazer parte do tradicional Clube de Fado e a conviver com grandes nomes do gênero.

A partir de 2002, quando lançou seu primeiro álbum, O Mesmo Fado, sua carreira ascendeu e ele passou a ser uma das vozes mais populares da música portuguesa no século XXI. Em 2008, ocasião em que divulgava no Brasil o álbum Outro Sentido, por sua sutileza vocal e os maneirismos de seu violão, Zambujo foi comparado por Caetano Veloso a ninguém menos que o inventor da Bossa Nova, João Gilberto.

Atualmente na estrada para divulgar o repertório de Até Pensei Que Fosse Minha, com shows agendados em Portugal, no Reino Unido, na Espanha, na França e no Japão, Zambujo lançou o álbum em setembro de 2016, com repercussão positiva de público e crítica. No jornal francês Le Monde, o trabalho foi elogiado por seu “requinte, sua elegante sensualidade e grande classe”. No Brasil, depois de apresentada ao público do Rio de Janeiro e de São Paulo, a turnê de Até Pensei Que Fosse Minha entrou no ranking dos dez melhores shows de 2016 dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo.

Atribuindo ao fado o valor de uma influência de primeira infância, Zambujo conta que sua paixão pela música brasileira também remete aos dias de menino. “Meu primeiro contato foi pelas novelas brasileiras que passavam aqui. Desde muito cedo escutava sem saber quem cantava. O interesse maior chegou quando ouvi João Gilberto pela primeira vez. As maiores referências que tenho são ele, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Cartola, Lupicínio Rodrigues e Noel Rosa.”

A ideia de gravar um disco para celebrar a obra de Chico, revela Zambujo, surgiu em uma das viagens que fez ao Brasil em 2016. “Achei que fazia todo sentido homenagear um dos meus maiores ídolos. Até porque essa ideia coincidiu com a honra de o ter conhecido pessoalmente. Isso fez crescer a vontade de o cantar.” Foi então que o samba e a bossa de Chico começaram a ser transformados pelo cantor e violonista lusitano, que, juntamente com o músico Marcelo Gonçalves, redesenhou arranjo por arranjo até fazer com que as composições do brasileiro ganhassem o tom condizente com sua estética.

Composto por 16 faixas, o álbum traz releituras de clássicos como Cálice, Geni e o Zepelim, Futuros Amantes, Folhetim e João e Maria, contando com as participações de Roberta Sá em Sem Fantasia, de Carminho em O Meu Amor e do próprio Chico na canção Joana Francesa. Além de participar desse último registro, Chico colaborou na escolha das músicas e, segundo Zambujo, deu dicas valiosas para o processo de gravação. “Foi uma alegria muito grande para mim sentir que ele estaria disponível não só para cantar mas para estar em todo o processo. No final, escutamos tudo e ficamos felizes.”

Zambujo também celebra o fato de seus conterrâneos terem recebido com entusiasmo esse novo projeto. “O público português adora e conhece bem a obra do Chico. Os concertos que fizemos têm sido fantásticos e o disco está na lista dos dez mais vendidos em Portugal desde o dia em que saiu.” No fim da conversa, o português insiste na importância da troca musical entre os dois países lusófonos. “Quanto mais houver esse intercâmbio melhor será para todos.”

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