Régua e compasso

Composto por Gilberto Gil em 1969, o samba-canção Aquele Abraço é símbolo de um período nefasto, o Brasil pós-AI-5. Às vésperas de partir com o amigo Caetano Veloso para um forçado exílio em Londres, Gil enumera memórias afetivas e parte, seguro e altivo, para os dias incertos no velho continente – a Bahia já havia lhe dado “régua e compasso”. Se o ocaso dos anos 1960 foi sombrio e marcado pelo medo, a aurora da década, embalada pelos dias finais da gestão modernizante de Juscelino Kubitschek, foi luminar e livre. Especialmente na Bahia, onde um grupo de jovens articulados encontrou estímulos e forte convergência de ideias no campus da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador, núcleo de um ambicioso projeto educacional defendido pelo reitor Edgard Santos.

Ao levar à capital baiana importantes intelectuais europeus – que vieram ao País, nas décadas de 1940 e 50, fugindo do pós-guerra e do Fascismo –, Santos acelerou as ambições de vanguarda da juventude soteropolitana que frequentava a UFBA. Deu régua, compasso e substanciais contribuições estéticas para a geração que tomaria de assalto a cultura do País, com o Cinema Novo e a Tropicália.

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Três dos mais expressivos compositores do País, Caetano Veloso (então aluno de Filosofia), Gilberto Gil (graduando de Administração de Empresas) e Tom Zé (aluno de Contraponto, Harmonia e História da Música), frequentemente mencionam a enorme influência dos Seminários Livres de Música, ministrados pelo alemão Hans-Joachim Koellreutter (leia mais na edição 38) e os experimentos dos também maestros Walter Smetak e Ernst Widmer, ambos suíços, para suas carreiras. As rupturas tonais do dodecafonismo de Koellreutter e o contato com compositores contemporâneos radicais, como o alemão Karlheinz Stockhausen e o americano John Cage, formaram um amálgama de informações determinantes para impregnar de liberdade criativa a trinca de ases da Tropicália.

Ícones da mesma geração, como o escritor João Ubaldo Ribeiro, o cineasta Glauber Rocha, a atriz Helena Ignez, o artista gráfico Rogério Duarte eos poetas Capinam e Waly Salomão, também não surgiram como uma manifestação voluntária do acaso. Como alunos ou frequentadores das atividades extracurriculares, eles multiplicaram a efervescência cultural da UFBA e plantaram ideias que resultaram em obras capitais para a cultura brasileira dos anos 1960 e 70. Capinam, ao lado do piauiense Torquato Neto, foi um dos principais letristas da Tropicália, autor do clássico Soy Loco Por Ti América. Inquieto e irreverente, Waly foi artífice de momentos decisivos da nascente contracultura brasileira, como seu clássico relato autobiográfico Me Segura que Vou Dar um troço e o célebre show Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, de Gal Costa, dirigido por ele, em 1971.

O controverso Glauber Rocha também foi fruto dessa rica aventura interdisciplinar. Aos 17 anos, teve a convicção de que faria cinema ao ver montada na Escola de Teatro da Bahia, pertencente à UFBA, o espetáculo A Ópera de Três Tostões, de Bertolt Brecht e Kurt Weill. A escola teatral, liderada pelo pernambucano Martim Gonçalves, nas palavras de Caetano Veloso: “Centralizou nossa visão do impulso modernizante”. Leia-se por “nossa” Caetano e a irmã Maria Bethânia, aos 13 anos. A aspa vem da apresentação do livro Avant-Garde na Bahia, do historiador Antonio Risério, assinada por Caetano. Publicado em 1995, narra com riqueza de detalhes os tempos de Edgard Santos na universidade. Longe de atribuir a ele uma estatura messiânica, Risério também joga luz sobre as controvérsias de seu personagem, um homem “com atitude kitsch, perante a produção estética, não especialmente culto, mas apenas medianamente ilustrado”, em suas palavras.

Médico formado pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1917, Santos fundou a UFBA em 1945 e foi, por dois meses, Ministro da Educação e Cultura do Estado Novo de Getulio Vargas. Abandonou o cargo dias antes do suicídio do ex-presidente e voltou a se dedicar em tempo integral à reitoria, até o começo de 1962. Seus desafetos, indignados com as tresloucadas ideias para o conservadorismo vigente da classe média branco-mestiça soteropolitana, encabeçaram protestos impagáveis contra ele, como as manifestações de um ufanista grupo de esquerda, liderado por estudantes de engenharia, contrários a invasão estrangeira da trupe de Santos, que bradava em gritos e cartazes: “Abaixo as bichas do Reitor!”.
Resistente, Glauber Rocha definiu em artigo da época: “A guerra que as novas gerações devem abrir contra as províncias deve ser imediata: a ação cultural da Universidade e o Museu de Arte Moderna são dois tanques de choque”. O “tanque de choque” do MAM, também uma extensão da UFBA, era pilotado pela arquiteta italiana Lina Bo Bardi, mulher forte e brilhante que marcou não só a formação de arquitetos e urbanistas, mas toda a intelectualidade brasileira. Sobre ela e o reitor, mensurou Caetano em Avant-Garde na Bahia: “Todos dessa geração devemos muito ao reitor Edgard Santos, mas devemos enormemente a Lina, responsável pela civilização de uma geração”.

Perseguido pela ditadura salazarista, outro que fugiu da desoladora Europa do pós-guerra foi o filósofo português Agostinho da Silva, que fundou na UFBA o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), tão decisivo para o resgate das matrizes africanas na Bahia quanto as pesquisas do fotógrafo e “etnólogo acidental” Pierre Verger, figura assídua no campus da universidade, que voluntariamente chegou à Bahia tomado por tamanho fascínio pelas religiões afro – ele logo se tornou babalorixá Fatumbi Verger.

Para esses intelectuais, que atravessaram o Atlântico e recomeçaram suas vidas no País, a visão de uma Bahia idílica, culturalmente rica, fértil, mestiça e festiva foi, como relata Risério, uma “chegada ao paraíso”. Edgard Santos almejava colocar a Bahia – que já tinha dado ao Brasil ícones como Gregório de Matos, Jorge Amado e Dorival Caymmi – novamente no mapa cultural do País. Não há dúvidas, teve grande êxito. Santos morreu há 50 anos, deixando uma lição óbvia: a educação pode, sim, transformar uma geração, um Estado e uma Nação.




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