Reincidente nas listas de melhores álbuns de 2014, Sentido Centro, primeiro registro fonográfico do compositor baiano Murilo Sá, líder da banda Grande Elenco, ganha agora seu primeiro videoclipe, com a canção Eis Que Tento Me Entreter. Dirigido por Lufe Bollini, com fotografia de Rafael Avancini, o vídeo remete às produções que marcaram o começo dos anos 1980. Com recursos gráficos futuristas sobrepostos a imagens captadas em cromaqui, a viagem ao passado, sugerida nos dois minutos e onze segundos do clipe, dialoga com a estética perseguida por Murilo, que também é designer gráfico. Com um amálgama de referências que vão do folk-rock, ao blues e ao psicodelismo sessentista, o multi-instrumentista não cede ao fetiche obsessivo e imprime às suas composições um frescor de contemporaneidade.
Nascido em Salvador, de ascendência inglesa por parte da avó materna, o compositor veio para São Paulo em 2006 e surgiu na cena independente como Murilo Goodgroves, sobrenome da avó. Na chegada a São Paulo, foi morar em Moema com o conterrâneo Daniel Costa, com quem montou a primeira banda em solo paulistano, intitulada Disco Dois. Depois que bifurcarem suas carreiras, Daniel fundou o quarteto instrumental Bombay Groovy, que lançou em 2013 um álbum de grande repercussão pela mistura inusitada de elementos ocidentais e orientais, acentuados com a inclusão de um sitar indiano entre os instrumentos. Daniel lidava com uma doença degenerativa, desde a infância, sofreu uma arritmia cardíaca e faleceu no começo de maio, aos 32 anos. Em fevereiro último, ocasião em que a Bombay Groovy abriu o show do ex-líder do Jethro Tull, Ian Anderson, no festival Psicodália, o contrabaixista foi entrevistado pela Brasileiros (leia).
A seguir, o “soteropaulistano” Murilo Sá faz uma retrospectiva de sua trajetória artística, estabelecida em São Paulo há quase dez anos e também revela detalhes sobre o sucessor de Sentido Centro, título que além de remeter à sua experiência de vida na região central de São Paulo, também carrega a conotação de viagem interior.
Como teve início sua carreira em Salvador, e como foi e transição da Bahia para São Paulo?
No final da minha adolescência tive algumas bandas de blues em Salvador. A última delas se chamava Associação Mr. Harry Heller e o Samba do Patinho Feio (nome que faz alusão ao protagonista do romance O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse). Fazíamos um blues improvisado e tocamos aos sábados em um mesmo bar, por um bom tempo, mas acabei vindo para São Paulo em 2006, porque eu já tinha alguns brothers por aqui. Uma galera que também desenvolvia um trabalho musical na Bahia – entre eles o Daniel, com quem vim morar em Moema.
Sua intenção foi vir para São Paulo para explorar novas possibilidades com o design gráfico e a música?
Na verdade, foi uma coisa pouco pensada. Eu estava entediado com a vida em Salvador e vir para São Paulo me pareceu uma boa ideia, porque eu tinha esses amigos por aqui. A ideia era ficar um tempo, mas acabei permanecendo e já estou aqui há quase dez anos. Em Salvador eu trabalhava como freelancer. Eu morava com minha família e não tinha despesas pesadas como aluguel e manter uma casa. Tive alguns empregos fixos, mas eles não duraram muito, porque eu tinha sérios problemas com coisas como autoridade, lidar com patrão.
Subordinação não era o seu forte?
Definitivamente, não. Mas, nos primeiros meses em São Paulo, tive de encarar uma rotina formal, claro, porque eu precisava me bancar por aqui. Não que eu sinta que esse tenha sido um tempo perdido, pelo contrário, mas a vida no escritório é, para mim, uma coisa bem deprê. Tenho sérios problemas para acordar cedo, porque eu costumo compor de madrugada. É a hora que tem mais silêncio na rua (o músico reside na Rua Martins Fontes, continuação da Rua Augusta, no centro de São Paulo, área de grande movimentação) e eu me sinto mais aberto para captar as ideias.
Na chegada em 2006, você e Daniel logo deram início a um trabalho conjunto?
Um pouco depois. Nossa primeira banda existiu entre 2009 e 2010. Chamava-se Disco Dois e, com ela, gravamos um EP. Tínhamos também outros dois integrantes, a Lara Aufranc, minha namorada, à época, e o baterista Matheus Barsotti. Gravamos esse EP com oito músicas, mas a banda durou pouco. Quando cheguei a São Paulo fui morar com Daniel, e depois, eu e Lara fomos morar juntos na Pompeia (bairro da zona Oeste da cidade). Quando terminamos a relação, depois de três anos juntos, vim morar no Centro e, depois de um tempo, passei a trabalhar nesse novo projeto autoral. Houve essa conjuntura de fatos que acabou me levando ao burburinho do Centro e à boêmia da Rua Augusta.
Como se deu o processo de composição do Sentido Centro. Você é um compositor metódico, ou escreve de forma mais intuitiva?
Nesse segundo álbum, que estou começando a produzir, estou fazendo algo mais trabalhado, não metodicamente, mas com um pouco mais de disciplina na construção das composições. O primeiro disco foi meio que expurgado, as composições saíram do jeito que tinham de sair.
Mas você teve um critério de seleção das composições para tentar dar a elas a unidade do álbum?
Mais ou menos. A unidade que o álbum transparece é mais no jeito que eu trabalho as sonoridades, o tipo de melodia vocal, os timbres, o jeito de formatar as canções…
Veja o vídeo de Eis Que Tento Me Entreter
Falando nisso, como você definiu os arranjos? O álbum tem várias texturas, bem trabalhadas…
A base dos arranjos foi o trio que formei com o Felipe Faraco (contrabaixista) e o Pedrinho Falcão (baterista). Ensaiamos essas músicas para valer e quando achamos que tudo estava redondo entramos em estúdio para gravar as bases. Houve uma exceção, a faixa título, Sentido Centro, que eu gravei tudo e, curiosamente, foi a última música a ser registrada.
A propósito, quais instrumentos você toca no disco?
Guitarra, violão, contrabaixo, bateria, piano e sintetizador. Também fiz todas as vozes e coros.
Os arranjos são todos seus?
Depois de formatar os arranjos de base, comecei a pensar o que cada música pedia em termos de arranjo e trabalhar nos overdubs. Fui pensando no que ficaria melhor em cada canção e chamei alguns amigos para executar essas ideias. O Rodrigo Bourganos (sitarista da Bombay Groovy), por exemplo, toca sitar em Dias e Noites (a sétima faixa de Sentido Centro).
Nesse processo, quanto tempo levou para você se convencer de que o disco estava pronto?
Cerca de um ano. Um processo lento, porque o estúdio onde gravo é uma produtora de áudio e tenho uma parceria de trabalho com eles. Meu segundo disco também vai ser registrado lá. Quando eles têm trabalhos mais longos para entregar, tenho que dar uma segurada no meu cronograma. No meio das gravações do Sentido Centro, por exemplo, houve um período em que eles atenderam uma demanda grande de jingles por causa das eleições. Mas acho que não foi só esse fator que deixou o processo mais demorado. A verdade é que eu inventei muitos overdubs e isso demanda mais ensaios para que tudo fique perfeito. Acrescentei violinos, sax, trompete.
Mas essa morosidade tem um lado positivo, de maturar o repertório, não?
Sim e não. Tenho um problema com isso, porque eu costumo perder a certeza do quão bom a coisa está ficando. Depois de ouvir tantas vezes a mesma música é grande o risco de enjoar dela. Quase cortei uma do álbum. Comecei a pirar que ela não deveria estar ali. Se eu tivesse feito isso, hoje, tenho certeza de que eu ia me arrepender muito. Ela tinha de estar no álbum, pois não caberia no próximo e não haveria lugar que, depois, eu pudesse encaixá-la.
Que música é essa?
Nenhum Grande Herói. Não sei por que encanei, mas acho que o que me deixou em dúvida foi o fato de ter muitas músicas no disco. São 14 composições. Chegou um ponto em que comecei a ponderar e achar que era extenso demais.
E como você enxerga hoje o repertório do Sentido Centro? Ainda tem dúvidas como essa?
Não, porque essas canções são o retrato daquele meu momento e, para mim, isso é o que traz sentido a existência de um álbum. Entre outras coisas, ele precisa retratar o momento do compositor. É como uma Polaroid, um instantâneo.
Por essa mesma lógica, que Murilo está presente em Sentido Centro? Existiu no álbum a busca por uma sonoridade, a escolha de temas caros às letras?
Acho que o título é bem simbólico. Porque ele sugere autoanálise, os medos e também a questão de lidar com algumas dores transformando tudo em canção para se livrar delas. Foi um processo em que não existiu uma busca por letras. Tudo aconteceu de forma muito natural. Tem músicas que nem lembro como e quando surgiram. Fui mais preciosita com os arranjos, mas nunca descuidei das letras. Pelo contrário, acho que elas falam tudo que eu queria falar. É um disco bem pessoal. No próximo álbum estou olhando mais para coisas ao meu redor. As coisas que enxergo no mundo e a forma como eu as sinto.
Como tem sido os shows e com foi a experiência de cair na estrada com os músicos para o Sul do País?
Foi massa. Aliás, tem sido, porque ainda estamos tocando o repertório do Sentido Centro. Estamos agora em vias de agendar shows no Rio de Janeiro. A viagem para o Sul durou um mês, fizemos dez shows. Alguns foram cancelados, mas surgiram outros que não estavam no script. Nossa base foi Porto Alegre e ficamos hospedados na casa de um amigo, o Bino, da banda Mary O. And The Pink Flamingos. Fomos com a Belina do Pedro direto para Porto Alegre e, na volta, fizemos shows em Xaxim e Marau, no interior do Rio Grande do Sul, e depois nos apresentamos em Joinville, em Santa Catarina.
E como foi a recepção do público do Sul? Eles já conheciam seu trabalho?
A reação me surpreendeu. Como o selo 180 é gaúcho, eles divulgaram bem o trabalho por lá e conheci várias pessoas que vieram falar, com entusiasmo, como haviam gostado do disco. Fiquei feliz, porque eu não esperava esse reconhecimento, inclusive, de pessoas que também estão envolvidas com música e eu admiro. O Garras, o Rodrigo de Andrade, dono do selo, fez o disco rodar de mão em mão.
Ele atua há muito tempo na cena gaúcha?
Sim, ele conhece todos por lá. Garras é louco por fanzines, é um romântico, que enxerga a música dessa forma passional e acho isso muito louvável. Claro, há o velho problema de que romantismo não é sinônimo de grana e o selo não tem muitos recursos, mas ele faz o que pode e faz muito com o pouco que tem.
E como se deu a produção do clipe de Eis Que Tento me Entreter, que você acaba de lançar?
O clipe foi feito pelo Lufe Bolinni, um brother do Sul, que conheci no ano passado na Ouvidor 63 (ocupação cultural que existe há um ano, em um prédio abandonado da região central de São Paulo, no endereço que dá nome ao espaço). Curti muito a estética do clipe e a ideia inicial era completamente diferente dessa. Pensamos em fazer uma espécie de programa de TV, com locação e figurantes, em estúdio. Não rolou, porque a produção ficaria cara e esse vídeo foi feito com pouca grana. Mas fiquei muito satisfeito com o resultado. O clipe foi gravado na Hardhouse, uma produtora, que é também a casa do Lufe e onde mora o Guedes. Fizemos tudo sem pressa e demoramos uns seis meses para finalizar. O Lufe foi me mandando alguns frames e eu meio que sabia como ia ser, sabia que ia ter essa estética retrofuturista. Uma visão do que seria o futuro para a geração dos anos 1980. A fotografia é do Rafael Avancini.
Falando em retrofuturismo, sua estética tem esse lance proposital de revisitar sonoridades passadas, sem, com isso, perseguir um saudosismo clichê. Você procura dar à sua música uma embalagem contemporânea?
Eu tenho essa preocupação e procuro ouvir muita música atual. Jack White é um bom exemplo do que também procuro fazer. Ele bebe das fontes sessentistas, setentistas, mas faz um som pesado e não apenas um pastiche do passado. Procuro ter roupagem e personalidade própria e imprimir ao que faço minha personalidade de músico. O Beck faz o mesmo. E é isso que eu tento fazer: não nego minhas influências, mas não, por isso, fico naquela busca louca obsessiva por timbres, ou entro na pilha que tenho de gravar numa máquina de fita. Adoraria, tenho curiosidade de ouvir como meu som soaria num equipamento assim, mas não vou parar meu mundo para viver em busca disso. Acho até mais legal o esquema de mixagem moderna, pois ele permite extrair mais peso. Mas não digo com isso que estou em busca de coisas que você ouve amplificadas em baladas, como a música do Franz Ferdinand, que é super comprimida para ficar aquele som que toca na pista de dança e chega a doer no ouvido. Acho que é preciso chegar a um meio termo. As mixagens do passado tinham aquela bateria lá no fundo, algo que melhorou com o tempo. Pegue as coisas do Roberto Carlos, por exemplo, principalmente as do começo, elas têm essa característica do momento, aquele som magrinho, de baixo e bateria e aquela guitarrinha aguda e estridente.
Você já está compondo para o próximo disco?
Estou agora olhando mais para as coisas ao meu redor. Coisas banais, como, por exemplo, uma obra em frente a minha casa, que tem me influenciado muito. Tanto no beat quanto nas letras. É um bate-estaca dia e noite e tem algumas coisas que me inspiram, como em uma música que fiz chamada Monstro de Concreto.
Nesse momento transitório, que balanço você faz da trajetória cumprida até aqui com Sentido Centro?
Gostei da experiência de ter feito um promo com quatro faixas do Sentido Centro. Lancei o EP em janeiro e somente em outubro é que saiu o álbum. Foi uma escolha muito boa, porque o promo me permitiu marcar muitos shows. Eu sou um estudioso dessas coisas, porque não tenho grana para ficar pagando assessoria, leio muito para tentar sacar a melhor forma de gerenciar a minha carreira.
Vai repetir o expediente no segundo disco?
Penso que sim. Minha ideia é lançar um promo do novo disco no segundo semestre deste ano, também com quatro músicas novas, para lançar o disco no começo de 2016.
Que mudanças deve haver nesse novo trabalho? Aliás, você acha que haverá mudanças?
Com relação à sonoridade estou procurando explorar beats e climas diferentes do primeiro álbum. Será diferente, mas parecido na essência. Tenho ouvido coisas como Connan Mockasin, um loucão lá de fora, Ty Segall, Mac Demarco. Caras que fazem um som moderno, mas com influências parecidas com as minhas, e acho interessante perceber como as pessoas processam influências de forma diferente. O que fiz até aqui tem altos climas. Quero, de novo, poder entrar em estúdio e fazer um disco com muita tranquilidade. Acho legal lançar um disco por ano, mas também não quero atropelar o primeiro. Penso que uma boa média, para qualquer artista, é lançar um disco a cada dois anos. Não entendo como alguns artistas ficam cinco, seis anos sem gravar.
Até mesmo pela trajetória similar que vocês empreenderam como artistas, inevitável perguntar sobre como a morte repentina do Daniel pode, eventualmente, influenciar esse trabalho…
Daniel lidava com a morte sem tabus e não tenho problema algum de falar sobre isso. O lance mais difícil é que a nossa trajetória musical já tinha sido bifurcada anos antes, quando eu comecei a gravar esse disco e ele montou a Bombay Groovy, e estávamos em momentos parecidos e felizes da carreira. Tanto eu quanto ele tentando consolidar nossos trabalhos e a gente compartilhava muito essas coisas boas que estavam acontecendo em nossas vidas. Ele estava muito realizado com tudo que vinha acontecendo com o Bombay. É foda pensar nisso, pois sei que ele estava feliz. Mas para além da perda no contexto musical, em termos de amizade, tínhamos essa irmandade que foi rompida, uma enorme perda.
Quando você chegou a São Paulo usava o nome artístico Murilo Goodgroves, porque decidiu muda-lo?
Goodgroves é o sobrenome da minha avó materna, Maria Lucia Goodgroves. Ela nasceu na Bahia, tem ascendência inglesa, mas minha mãe, que decidiu não usar o sobrenome, me batizou Murilo de Sá Menezes. Adotei o Sá como nome artístico e fiz essa mudança por várias questões. Primeiro, porque a galera achava que era um nome inventado. Segundo, porque é um nome difícil de pronunciar e a grafia também é complicada. Outra razão é que comecei a pensar que toda entrevista que eu fizesse ia começar com “por que esse nome?”. Tem outro fator que me incomodava, o Goodgroves poderia remeter a groove, que era uma gíria dos anos 1960, “groovy”, e depois ganhou essa conotação da coisa funky, do soul. Achei que isso poderia gerar muitas associações equivocadas e tomei essa saída minimalista.
O Sá, inclusive, casa melhor com Grande Elenco, não?
Sim. Aliás, quem deu a sugestão foi o Pedro Pastoriz (o compositor que integra o grupo Mustache e os Apaches). O nome surgiu meio de brincadeira, mas acabou pegando. Pedro é bom nisso. O nome Mãos ao Alto, a dupla que tenho com ele, também foi ideia dele.
Quase dez anos depois da sua chegada, hoje, como é a sua relação com São Paulo?
Como diria o Daniel, sou um soteropaulistano. Não me sinto muito abalado negativamente com essa loucura que é São Paulo, embora eu adore campo, mas curto esse ritmo de megalópole. Curto muito ter coisas pra fazer, gente pra encontrar, várias coisas rolando ao mesmo tempo. O que mais piro na cidade é o fato de São Paulo não ser dos paulistanos. Embora muitos deles relutem em aceitar isso, São Paulo é do mundo. O charme da cidade é construído dessa fusão. Uma diversidade que me atrai muito. A cidade está sempre fervendo, embora a vida noturna esteja sofrendo um pouco das pernas. Quem frequentava a Rua Augusta há alguns anos sabe que a coisa mudou muito e ficou mais careta. Nesses dez anos, houve fases muito melhores do Centro de São Paulo.
MAIS:
Ouça e baixe gratuitamente o álbum Sentido Centro
Deixe um comentário