Em entrevista, concedida por telefone, de sua casa, em Nova York, o pianista, compositor e arranjador, Dom Salvador, que vive nos Estados Unidos desde 1973, esmiuçou a memória, durante duas horas, e se lembrou dos percalços da sua formação musical, os dias de samba-jazz à frente do Copa Trio e do Rio 65 Trio, a estreia de Elis Regina no Beco das Garrafas, e a trajetória efêmera do Abolição, o noneto de músicos negros liderados por ele que, há 40 anos, lançou seu primeiro e único álbum. Sem grande repercussão, Som, Sangue e Raça propôs o encontro de ritmos brasileiros e americanos – uniu choro, samba, baião e bossa, com soul, jazz, funk e afins – e tornou-se um divisor de águas para a música instrumental do País. Capitulada a Era do samba-jazz, era a vez de alçar novos voos.
Mesmo com o fim precoce do Abolição (motivado por problemas pessoais, como o pianista revela), graças à garra de alguns remanescentes do grupo, que continuaram levando adiante os ideais estéticos de Salvador, depois de sua partida – como o saxofonista Oberdan Magalhães e o baterista Luiz Carlos Batera, que fundaram o grupo Senzala e depois a Banda Black Rio -, os novos rumos esboçados em Som, Sangue e Raça abriram largos caminhos para o Movimento Black Rio que agregou bandas, como a União Black; compositores, como Carlos Dafé, Gerson King Combo, Miguel de Deus, Serginho Meriti; e lendários DJ’s, como Big Boy e Ademir, em shows e bailes que reuniam milhares de jovens no subúrbio e na zona sul do Rio para celebrar sua negritude ao som de muito funk e soul.
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Em 2010, Salvador lançou, nos Estados Unidos, o CD The Art of Samba Jazz, com clássicos do gênero, como Meu Fraco é Café Forte, de sua autoria, e apresentou o repertório do novo álbum com seu sexteto no Copa Fest, festival de jazz no Copacabana Palace Hotel. Em outro encontro histórico em 2010, o pianista reuniu os remanescentes do Abolição e o amigo Toni Tornado, na Praça da República, durante a Virada Cultural. A seguir, divididos em temas, trechos da aprazível conversa com Salvador da Silva Filho ou, melhor, Dom Salvador.
Primeiro piano
“Comecei tocando bateria aos 6 anos, mas meu irmão mais velho, o Paulo (grande incentivador musical dos 11 irmãos, que tocava saxofone, bateria e contrabaixo) queria que eu lesse música e fui estudar piano. Comecei tarde, aos 9 anos, mas tive muita afinidade com o instrumento. Estudei um ano sem ter um piano, até que meus irmãos compraram um, bem ruinzinho, mas que dava para avançar nos estudos.”
Racismo
“Fiquei sem minha primeira professora, Liselotte – alemã, que se casou e partiu para Campinas -, que recomendou que eu fosse procurar um conservatório recém-aberto por alemães, mas não consegui entrar. Não me deixaram estudar lá por puro racismo, pois não havia outra explicação. Uma coisa muito intrigante, se considerarmos que eles saíram da Alemanha para imporem esse tipo de situação justamente no Brasil, que os acolheu de igual para igual.”
Primeiro trabalho profissional
“Entrei na Orquestra Excelsior sem que minha professora Ofélia soubesse. Eu tinha um apelido de família, Toim, e ela só me conhecia por Salvador. Saíam fotos minhas com a orquestra no jornal, mas meu nome era creditado com o apelido. Com aquele monte de gente, demorou para ela descobrir que o tal Toim era eu. Um dia, ela chegou brava e disse: ‘Pensa que eu não sei que você está tocando música popular, Salvador?!’. Nos entendemos e, quando ela menos se deu conta, já estava tocando chorinho comigo!”
Oliveira e seus Black Boys e um amor inseparável
“Fui convidado para tocar em um grupo só de negros, em São Paulo, liderado pelo saxofonista Oliveira, chamado Oliveira e seus Black Boys. Inauguramos a boate Black & White, no réveillon de 1962. Além do grupo do Oliveira, havia o do Calixto, baixista, muito bom, que liderava um quinteto. O conceito da casa era reunir um grupo de brancos com uma cantora negra, e um grupo de negros com uma cantora branca. A Mariá (mulher de Dom Salvador, há quase 50 anos) cantava com o grupo do Calixto e foi nessa noite que nos conhecemos.”
Piano paulista no Beco das Garrafas
“Muito tímido, nunca me oferecia para tocar em jams, mas acabei dando uma canja no Baiúca, em uma noite em que estavam lá a cantora Flora Purim e o baterista Dom Um Romão, casados na época. Eles faziam uma temporada em São Paulo, e ficaram super entusiasmados quando me viram tocar. A Flora me chamou e disse: ‘Se você quiser morar no Rio, meu marido tem um conjunto, o Copa Trio, e o pianista está saindo’. Em 15 dias, eu estava morando lá. Uma virada na minha vida. Não sei o que seria de mim, se não fosse esse encontro e o convite da Flora.”
A estreia de Elis no Beco
“Almoçávamos eu e o Mané Gusmão – baixista do Copa Trio, com quem fui morar logo que cheguei ao Rio -, e ele comentou que havia acompanhado uma jovem cantora de Porto Alegre, na TV Rio, que o deixou muito impressionado. Gusmão deu seu telefone para Elis. Queria apresentá-la a um dos donos do Bottle’s. O telefone tocou e a Helena, mulher do Gusmão, atendeu, dizendo que era a ‘tal’ Elis. Combinaram de ir ao Beco das Garrafas, à noite. Lembro da Elis chegando, muito caipira e nervosa. O Dom Um, tentando acalmá-la, levou-a para o palco, tocamos, mas, por pura insegurança, ela não rendeu o que era capaz. O Giovanni não gostou do que viu e ouviu, mas o Dom Um e o Gusmão o convenceram a produzir um show para a Elis. Foi aí que tudo começou…”
As águas quentes do Rio 65 Trio
“Quando o Dom Um foi embora e passei a tocar com o Edison Machado, o lance, que já era muito bom, virou um casamento. O Edison era muito espontâneo, saía tocando e pronto! Uma noite, demos uma canja no Bottle’s e o Armando Pittigliani, produtor da Elis, vendo a euforia do público, o Simonal dançando, e a tremenda gritaria, nos convidou para gravar pela Philips. Corremos para ensaiar e compor novos temas, mas ainda não tínhamos um nome. Como era aniversário de quarto centenário do Rio, o Edison sugeriu Rio 65 Trio. O disco saiu no final de 1965 e, no ano seguinte, essa cena toda de samba-jazz havia morrido e as noites do Beco tinham acabado. Roberto Carlos e iê-iê-iê para todos os lados. O disco vendeu pouco, mas passou a ser cultuado e resistiu ao tempo. É, inclusive, estudado na Berkley’s (conceituada escola musical americana).”
Hélcio Milito e a influência dos soul brothers
“O Hélcio tinha saído do Tamba Trio para ir aos Estados Unidos e, quando voltou, começou a plantar novas ideias. Nos reencontramos na CBS, onde ele foi trabalhar como produtor. Hélcio tinha ouvido o Sly and The Family Stone, James Brown, Blood Sweat & Tears, Kool & The Gang, e trouxe muitos discos americanos na bagagem. Entre o intervalo de um trabalho e outro, eu ia até a salinha dele e ficávamos ouvindo esses discos, até que um dia ele propôs: ‘Salvador, acho que você devia fazer uma jogada dessas. Pode dar um pé danado!’. Fiz um disco solo em 1969, produzido por ele e muito influenciado por esses sons. Foi, inclusive, o Hélcio quem me deu esse nome. Ia sair somente Salvador e ele disse: ‘Bicho, você precisa de um nome mais forte’. Propôs Dom Salvador e gostei!”
Abolição – Negritude x AI-5
“Em 1970, inscrevi uma composição minha com o Arnoldo Medeiros no 5o Festival Internacional da Canção (FIC). A música era Abolição 1860-1980 e formei o Abolição, somente para participar desse festival. Ficamos em quinto lugar. A fase era pesadíssima, mas não havia nenhum interesse político entre nós. Se você prestar atenção na capa do disco solo de 1969, verá que estou com o punho direito fechado. Ideia do Hélcio, em referência aos Black Panthers. Eu nem desconfiava que estava brincando com fogo! Fomos interrogados, no festival de 1970, por causa de nossas roupas e por estarmos descalços. Perguntaram para Mariá o porquê daquele monte de negros vestidos daquela forma e nenhum branco na banda. A resposta dela? ‘Por que vocês não fazem a mesma pergunta para o Antonio Adolfo?! A banda dele não tem nenhum negro e todos eles também vestem roupas extravagantes!’.”
Som, sangue e raça
“Recebemos tantos estímulos para continuar o Abolição que fechei uma formação ainda maior, com nove músicos. Passamos a ensaiar mais, compor, e veio o convite da CBS para gravar o Som, Sangue e Raça, em 1971. O disco foi produzido pelo Ian Guest, um tremendo músico húngaro, e tivemos toda a liberdade. Quando o disco ficou pronto, foi uma grande alegria! Fizemos uma primeira audição na CBS e o Chiquinho do Acordeon, que havia escutado a gente gravar algumas faixas, ficou desconcertado com o resultado. Lembro que ele chegou a ligar para o Radamés Gnattali e disse: ‘Maestro, o Salvador gravou um lance genial com essa nova banda dele… nunca ouvi nada igual!’.”
Funk, desbunde e dissolução. Bye, bye, Brasil
“Fizemos shows memoráveis, como o Tudo que Vai Vem, por dois meses, com o Jorge Ben Jor e o Trio Mocotó, no Teatro da Praia, e tocávamos também no Number One, uma casa chique de Ipanema. Tocamos lá por um ano e era um contraste danado! Nós, no palco, com aquelas roupas e cabelos afro, e aquele público super formal. Foram dias de muito sacrifício, mas também de muita garra. A coisa desandou, porque eles eram muito jovens, vivíamos aquela fase em que era ‘normal’ abusar de drogas e álcool – muito naquela onda do Woodstock e da contracultura – e não deu para segurar a barra. Eu era o responsável por tudo, cedo ou tarde me daria mal, e fiquei desiludido. Trabalhava para a Odeon e me deram férias. Eu tinha uma sobrinha que morava aqui, minha ideia era vir passear, mas decidi ficar. Cheguei em março de 1973. A Mariá veio em setembro, e meus dois filhos – Marcelo, que hoje tem 45 anos e é psicanalista, e a Simone, que hoje tem 40 e é socióloga – chegaram somente dois anos depois.”
Jazz in USA
“Logo que cheguei, fiz vários trabalhos como músico de jazz, mas o dinheiro não dava para sobreviver. Foi então que, em 1976, fui convidado pelo Charlie Rouse, saxofonista do Thelonious Monk, para fazer um álbum chamado Cinnamon Flower. Com a morte do Thelonious, o Charlie decidiu formar outro grupo, chamado Sphere, e parti para outra. Fui convidado para inaugurar o River Café, aqui em Nova York, em 1977, mas ainda cheguei a trabalhar dois anos como diretor musical do Harry Belafonte. O River é um lugar de referência para mim. Sempre me deu muita flexibilidade e é por isso mesmo que eu ainda toco lá quatro, cinco vezes por semana. Conheci muitas estrelas no River. Tive o prazer de tocar para o Frank Sinatra, a Liz Taylor e o Paul Newman.”
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