Teatro em movimento

Sérgio no CCBB-RJ antes de uma das apresentações de O Pão e a Pedra em janeiro. Foto: Jamyle Rkain
Sérgio no CCBB-RJ antes de uma das apresentações de O Pão e a Pedra em janeiro. Foto: Jamyle Rkain

Consolidado no meio teatral por seu trabalho com a Companhia do Latão, Sérgio de Carvalho acaba de completar 50 anos. O paulistano, de ascendência portuguesa, se aventurou em outras profissões até a criação do grupo, mas o teatro falou mais alto: neste ano, a trupe dirigida por ele completa duas décadas de atividade.

O pai, de quem herdou o nome, era entusiasta da poesia e se dedicava ao ofício de vendedor. A mãe, Marly, sempre foi professora primária, trabalho que foi adotado pela única irmã, a caçula Marili. Sérgio casou-se com Helena Albergaria, atriz do Latão e também de cinema – ela está, por exemplo, em Que Horas Ela Volta? (2015) e Mãe Só Há Uma (2016), ambos de Anna Muylaert. Tiveram dois filhos, batizados em homenagem a heróis do casal: Carlos (Karl Marx), 16 anos, e Rosa (Rosa Luxemburgo), 11.

As discussões políticas, aliás, fazem parte da rotina familiar. Vícios de linguagem preconceituosos, por exemplo, não são permitidos nem mesmo pela filha, que está sempre atenta para qualquer escorregão machista. Segundo ele, muito dessa orientação à esquerda vem de Helena, também uma influência forte na Companhia do Latão. Sua vivência como filha de militantes comunistas trouxe subsídios a um processo que já estava em curso.

A reportagem da CULTURA!Brasileiros conversou com Sérgio no centro do Rio de Janeiro. “É um lugar que eu adoro, estudo e conheço bem”, revela, passeando o olhar pelo Paço Imperial e outras edificações do Brasil Colônia, uma de suas paixões. Recentemente, estudou o Auto de São Lourenço, de José de Anchieta, para um artigo publicado na revista Sala Preta, da Universidade de São Paulo, onde leciona como professor de Dramaturgia e Crítica, na Escola de Comunicação e Artes. O período colonial também marcou sua estreia profissional no teatro, em 1992, com o Teatro da Vertigem. Ele fez a dramaturgia da primeira peça do grupo, O Paraíso Perdido, baseada na obra de John Milton, de 1667.

Típico homem moderno, porém, viu-se logo cedo no limbo da indecisão: fez graduação simultânea em Administração Pública, na Fundação Getulio Vargas (FGV), e Jornalismo, na Cásper Líbero. Não satisfeito, decidiu prestar vestibular para Artes Cênicas na USP e, por um momento, esteve matriculado nos três cursos. “Fui para o teatro acidentalmente. Eu não faria faculdade de teatro em condições normais”, avalia. A “culpada” pela transição, explica, foi a professora de um curso sobre tragédia grega, ministrado no Mosteiro de São Bento. Por causa das excelentes aulas, sentiu-se mais atraído pela área, ele que já era frequentador assíduo da cena do teatro alternativo em São Paulo.

Só se formou mesmo em Jornalismo, tendo exercido a profissão por um bom tempo, e pulou para o mestrado em Artes Cênicas. “Meu período na imprensa foi uma delícia porque só tinha pessoas com as quais dá prazer trabalhar”, referindo-se, especialmente, ao trabalho na revista Elle e no Guia Rural.

Cena de O Paraíso Perdido (1992), primeira peça do Teatro da Vertigem,  que marcou a estreia de Sérgio na dramaturgia de grupos profissionais. Foto: Eduardo Knapp
Cena de O Paraíso Perdido (1992), primeira peça do Teatro da Vertigem, que marcou a estreia de Sérgio na dramaturgia de grupos profissionais. Foto: Eduardo Knapp

Depois do Vertigem, fez dramaturgia para Cacá Carvalho e Ivaldo Bertazzo. “Comecei como dramaturgo. Até hoje acho que sou dramaturgo mais do que qualquer outra coisa”, reflete. Anos antes, porém, havia sido convidado para ser crítico de teatro do jornal O Estado de S.Paulo e acabou se aventurando na seara de Rubem Braga. “Uma coisa surreal. Eu, um moleque de 21 anos, fui ser crítico de teatro e virei colunista”, brinca.

Ficou intimidado de fazer parte do mesmo time que incluía Rachel de Queiroz e João Ubaldo Ribeiro: “Eram aquelas figuras marcadas da cultura nacional e eu”. Acredita, porém, que não se saiu mal. Foram muitos textos para o jornal, alguns de ficção, outros descrevendo situações do cotidiano e até sketches de teatro. Para ele, a melhor crônica foi a primeira, escrita em 1993. Decálogo de Cascudo Para Nortear a Vida falava sobre o potiguar Luís da Câmara Cascudo, de quem tinha memória, porque havia ficado hospedado na casa do escritor quando criança.

Como crítico, impôs-se logo uma barreira: “Tinha vergonha de fazer crítica sobre peças brasileiras, então fazia de estrangeiras. Eu já era do meio teatral, não me sentia à vontade de ficar malhando os colegas”. Ao deixar o jornal, foi chamado para colaborar com outro veículo, que prefere não citar. A experiência não foi boa e o afastou de vez do jornalismo tradicional. “Foi por isso que eu acabei ficando no teatro. Aqui consigo bancar formatos diferentes.”

Para ele, o gênero não deve ser definido a priori e a atitude em cena deve ser livre em relação ao tema. “Isso é o que me faz amar o teatro. É um lugar em que você tem chance real de experimentação formal, de trabalho coletivo e de atitude livre diante do real e do processo de representação simbólica”, salienta.

O jornalismo, porém, ficou na pele de alguma forma. “Quando fui para o Latão, não aguentei matar o jornalista e fundei a revista Vintém, que teve só sete números”, comenta com orgulho sobre o periódico dedicado ao teatro, que publicou entrevistas com Ariano Suassuna e Fernando Haddad, entre outros. “Percebi que se eu não fizesse, ninguém faria. O teatro já estava ficando na periferia das artes no sistema cultural.” Hoje, acredita que o teatro virou uma coisa de nicho, assim como o resto da cultura. “Tudo virou gaveta de mercado.”

Sérgio no colo da mãe, Marly, em imagem retirada de um antigo álbum de fotografias da família. Foto: Arquivo pessoal
Sérgio no colo da mãe, Marly, em imagem retirada de um antigo álbum de fotografias da família. Foto: Arquivo pessoal

O Latão, por sua vez, deu os primeiros passos quando Ney Piacentini, ator do grupo até hoje, o convidou para dirigir pela primeira vez como profissional. Aceitou, com a condição de ser um trabalho coletivo. “Não queria impor, mas criar junto. E aprender com os que estavam criando comigo.” Assim, o Sérgio dramaturgo percebeu que também teria que dirigir os próprios textos. “Minha dramaturgia não é só da palavra, mas também da cena.”

Adorador de Georg Büchner, escolheu A Morte de Danton como base para uma peça metateatral, batizada de Ensaio para Danton. O espetáculo foi montado em 1996, com sucesso. Sérgio diz que tomou gosto por encarar o teatro de forma politizada quando, durante um dos ensaios, uma atriz questionou se, afinal de contas, eles deveriam estar contra ou a favor de Danton.

Depois foi a vez de encarar o incontornável Bertolt Brecht. Sérgio montou, então, uma peça com escritos teóricos do dramaturgo alemão, Ensaio sobre o Latão (1997). Foi nessa ocasião que decidiram assumir-se como um grupo sólido. O batismo veio com o próprio título da peça. Nascia a Companhia do Latão.

Mas, para eles, não bastava apenas estudar Brecht e seu teatro épico. Era necessário contextualizar tudo aquilo com a realidade brasileira. Evocaram a obra de nomes como Sergio Buarque de Holanda, Celso Furtado e Roberto Schwarz, chamados pelo diretor de “intérpretes do Brasil”. Desses estudos surgiu a terceira peça do Latão, O Nome do Sujeito (1998). Em meio ao governo de Fernando Henrique Cardoso “e sua corrida para modernizar a República”, era uma crítica às posições do presidente.

No mesmo ano, continuaram pelo mundo brechtiano, em Santa Joana dos Matadouros, com a dramaturgia adaptada por Sérgio e Márcio Marciano. Para a surpresa do diretor, a peça que falava diretamente sobre política e luta de classes havia despertado a atenção do público como nenhuma outra. Começaram a aparecer no teatro pessoas ligadas a movimentos estudantis, à Igreja progressista e movimentos sociais. “Uma hora pensei: quero conversar com essas pessoas da militância, elas são mais legais do que os consumidores de teatro”, lembra.

Com uma dramaturgia própria, crítica e de base dialética voltada às condições do Brasil, o Latão definiu sua personalidade questionadora. O contato com um público envolvido com a militância fez o diretor construir, por meio de experimentações, um vínculo com essa cena, mas sem deixar de ocupar todos os espaços que podia.

Cena do espetáculo Santa Joana dos Matadouros.
Cena do espetáculo Santa Joana dos Matadouros (1998). Foto: Reprodução/CompanhiadoLatao.com.br

A Comédia do Trabalho (2000) foi feita para ser encenada em sindicatos, na rua e para o MST, sendo apresentada até mesmo em portas de fábricas. Ao mesmo tempo, estreou no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, um dos espaços que Sérgio considera mais “chiques” em São Paulo. Até hoje, o público da trupe é misturado. “Não é coisa de nicho, não é só o pessoal do teatro político, como a imprensa pinta. Nas peças do Latão, se mistura intelectual e moçada, gente de áreas variadas.”

Certa vez, Augusto Boal foi assistir a uma peça do Latão na capital paulista e resolveu enviar alguns de seus livros para Sérgio. Ficaram amigos, até a morte do criador do Teatro do Oprimido, em 2009. “Só fui ler Boal depois. Apesar de termos muitas afinidades, mais de pensamento do que de estética. Ele era uma pessoa incrível”, diz. Transformou alguns dos textos do teatrólogo, principalmente da peça Revolução da América do Sul (1960), na montagem Os Que Ficam (2015), que con­tou com o filho de Boal, Julian, como assistente de dramaturgia.

“É uma arte que vive em precariedade. Parte disso é vantagem também. Ser precário é o que torna a arte resistente à mercadoria”, comenta sobre a forma como Boal fazia teatro, conseguindo produzir tanto, mesmo com todas as dificuldades para conseguir se manter. O comentário também serve para Sérgio, afinal, que se equilibra como diretor de um grupo de teatro com mais de 20 integrantes e como professor universitário.

Nascido em plena ditadura, Sérgio cresceu num ambiente propício à politização. Na escola, lembra que teve de decorar até o Hino ao Soldado e que o tempo todo se sentia submetido à alienação. Uma cena marcante, carregada de simbolismo, lhe vem à memória: em 1979, está no aeroporto com seu pai e testemunha a chegada de exilados políticos que retornavam ao País com a Lei da Anistia, entre eles o ex-governador pernambucano Miguel Arraes.

A ideia de transformação coletiva, tão presente no meio cultural do País durante a redemocratização, foi espelhada por Sérgio em seus procedimentos dramatúrgicos. “A prática do teatro te obriga a trabalhar em coletivo, te obriga a perceber que tem que agir para desmercantilizar as relações das pessoas”, diz.

Premiado, em 2008, pela União dos Escritores e Artistas de Cuba, Sérgio afirma que ao aprofundar seus estudos sobre o marxismo passou a compreender melhor seu papel para o teatro do País. Para além das convicções ideológicas, sua politização se deu sobretudo no fazer teatral. Esse posicionamento, no entanto, não alienou o Latão à esquerda. “Eu aprendi a desconfiar da ideologia, a formação de pensamento tem suas consequências”, explica.

Do contato com movimentos de militância, Sérgio crê que ele e o grupo recebem muito mais do que oferecem. Afirmação exagerada, uma vez que ele sempre colaborou com diversos setores da esquerda. Seu trabalho tem influenciado, inclusive, companhias estrangeiras, como uma trupe argentina, que é ligada ao Teatro do Oprimido e tem uma escola de teatro político em Buenos Aires. Excitada com a montagem de O Pão e a Pedra (2016), a mais recente de Sérgio com o Latão, convidou o diretor brasileiro para dirigi-la em uma peça.

De camisa azul-clara, Sérgio posa para foto com os amigos do Latão nas apresentações de  O Pão e a Pedra, no teatro do CCBB carioca. Foto: Jamyle Rkain
De camisa azul-clara, Sérgio posa para foto com os amigos do Latão nas apresentações de O Pão e a Pedra, no teatro do CCBB carioca. Foto: Jamyle Rkain

O diretor também é convidado para outros eventos ligados ao teatro. O que mais o marcou foi uma palestra em 2007, na Casa Brecht – onde o alemão viveu seus últimos cinco anos. Defendeu ideias do “projeto de realismo dialético” desenvolvido pela Companhia do Latão. “Sinto que o Latão tem um Brecht próprio, usa o pensamento dele de uma maneira livre e independente. Não posso reclamar: somos um grupo com 20 anos, mas que não está reproduzindo fórmulas. Acho que é isso que mantém o Latão vivo.” Essa dinâmica do grupo, segundo Sérgio, dialoga com preceito brechtiano de “criar movimento”.

Ao afirmar que às vezes se sente estrangeiro no meio do teatro, o diretor especula que pode um dia migrar para a literatura. Por enquanto, segue amando a forma compartilhada de fazer dramaturgia. O Pão e a Pedra, exemplifica ele, foi uma peça escrita na sala de ensaio, com a colaboração de outros colegas, método chamado por ele de “escrita de viva-voz”. A produção editorial de Sérgio também reúne títulos como Introdução ao Teatro Dialético (Expressão Popular, 2009) e Companhia do Latão – 7 Peças (Cosac Naify, 2008).

As intersecções praticadas pela Com­­panhia do Latão coincidem com o perfil de Sérgio, que valoriza todas as formas de arte. A companhia realizou uma série de produções audiovisuais e musicais, acrescidas aos espetáculos, todas coordenadas e dirigidas por ele. Mesmo com essa polivalência, não hesita em afirmar: “Sou um guardião da ficção. Amo a ficção, mesmo sabendo que vencer o real é quase impossível”.

Sempre atento às produções atuais, o diretor julga que o chamado teatro contemporâneo – mais performativo, com corporalidade exposta e narrativa fragmentada – existe há décadas. O Latão, por sua vez, é criticado por fazer um teatro antiquado e careta, apesar de o grupo não transitar por um gênero específico. “O esforço de classificar é para reduzir. É para dizer que, por exemplo, isso é uma representação épica antiga. Não é. Na verdade, é o antigo voltado para o futuro, não é o estereótipo do contemporâneo”, defende-se.

No segundo semestre de 2017, Sérgio pretende realizar um novo projeto com o Latão, mas quer fazer alguns experimentos antes com música narrativa e avalia a inusitada proposta de dirigir uma ópera.

Devido ao grande sucesso de O Pão e a Pedra na capital paulista, também gostaria de anunciar outra temporada na cidade, mas ainda não é certo. Por enquanto, o grupo confirmou duas apresentações da peça no Festival de Teatro de Curitiba, nos dias 7 e 8 de abril. Outro desejo de Sérgio é um dia ter um teatro próprio. Sem grandes pretensões, antecipa um requisito: prefere o palco de arena.


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