Um parto tumultuado em plena Praça da Sé. Um ambiente familiar impregnado de música. Um piano amarelo e um infarto. A paixão ortodoxa pelo jazz e a “tutela” artística de Johnny Alf. O samba-jazz elegante do Sambalanço Trio e as intermináveis jams na boêmia da Praça Roosevelt e do Beco das Garrafas. Conselhos de Eumir Deodato e a superação dos vícios de autodidata para se tornar arranjador. A “pilantragem” do Som Três e de Wilson Simonal. O fascínio por Elis Regina e os tumultuados dias de produção de Elis & Tom em Los Angeles. Um encontro emocionado com Herbie Hancock e o refúgio na música instrumental. Esses e outros flagrantes de momentos áureos saltam aos olhos na deliciosa leitura das memórias do pianista Cesar Camargo Mariano. Compiladas em um catatau de quase 500 páginas, publicado pela Leya, Solo – Memórias de Cesar Camargo Mariano é a cereja do bolo que celebra os 50 anos da carreira profissional do músico que vive em New Jersey desde 1994, e volta ao País em setembro para uma série de shows em São Paulo e no Rio de Janeiro. Amantes da melhor música produzida no Brasil ao longo das últimas cinco décadas ou aqueles que definem Cesar como “o ex-marido da Elis, pai do Pedro Camargo Mariano e da Maria Rita”: corram já para as livrarias!
Do piano amarelo à Pilantragem
Primogênito de Miro, contador formado em piano clássico que ganhava a vida vendendo seguros de porta em porta, e de Beth, professora primária apaixonada por música, o menino Cesar cresceu rodeado dos irmãos, Beto, a caçula Helena, e de incontáveis músicos que frequentavam as casas em que viveu com a família em São Paulo e em São Vicente.
Miro, ou “Careca” como era carinhosamente chamado pelos músicos, nasceu em uma família de posses, com fazenda e negócios de café, que foi à bancarrota com a Revolução de 1932. Casou-se com Beth aos 21 anos e, a convite da seguradora, mudou-se com a esposa, grávida aos 18 anos, de Rio Claro para São Paulo.
Na capital paulista, horam morar em uma pensão na Praça da Sé. No dia da chegada de Cesar, assim que a bolsa rompeu, às três da manhã, Miro, sem um centavo no bolso, teve como única saída pagar os honorários de uma desconfiada parteira alemã penhorando um relógio de ouro dado pelo pai de um grande amigo, aviador amador como ele, que morreu em um acidente aéreo na véspera de seu casamento com Beth.
Cesar e os irmãos cresceram em meio a certas privações – em um dos capítulos, ele narra que, eventualmente, a única refeição que chegava à mesa era o arroz e o tomate cultivados no quintal -, mas estiveram sempre fartos de um ambiente harmonioso e repleto de estímulos. Os LP’s, as canções que ouvia no rádio da mãe e as aulas que o pai dava para músicos experimentados que queriam aprender a ler e escrever, logo fizeram com que a paixão pela música também passasse a consumir os dias do menino.
Aos 13 anos, uma surpresa de aniversário com desfecho trágico: um piano amarelo, que embora tivesse uma preciosa estrutura alemã, era produzido aqui por uma fábrica chamada Pianos Brasil. Ao ver o menino percorrer como um prodígio as teclas brancas e pretas, Miro, kardecista convicto, acreditou estar diante da reencarnação de algum gênio musical e enfartou, se recuperando somente 48 dias após o incidente.
Tempos depois, como era recorrente receber e acolher músicos na casa em que viviam para jam sessions e pequenas estadias, Miro foi surpreendido com a chegada de Johnny Alf – de óculos escuros e vestindo um moletom com o termo Playboy em letras garrafais – acompanhado de dois táxis pretos que traziam sua “mudança”.
Na noite anterior, Alf esteve na casa dos Mariano, convidado para conhecer o tal pianista precoce que tantos comentavam. Chegou embriagado, e não viu o menino tocar uma de suas composições, Vento, especialmente ensaiada por Cesar para a ocasião. Alf Caiu no sono, em pleno sofá, e só despertou mais de cinco horas depois, quando a noite da Praça Roosevelt o aguardava para uma nova jornada musical no Golden Ball.
Johnny conviveu com Miro e sua família por oito anos, e passou a cuidar das crianças quando Beth precisou trabalhar para engordar o orçamento, não sem cometer deslizes, como mergulhar em dispersão com Cesar ao piano, ouvindo música, discutindo afinidades cinematográficas, e esquecendo de buscar a caçula Helena na escola.
Cesar conviveu com Alf dos 14 aos 22 anos, e desconfiava que o compositor ignorava sua paixão pelo piano, algo que, concluiria tempos depois, não passava de um estímulo para evitar que ele enterrasse seu talento em soberba: “Johnny era dotado como poucos. Graças a ele, compreendo que a arte é algo muito maior do que eu”.
Personagem central da narrativa de Cesar, Sebastião Oliveira da Paz, o Sabá, exímio contrabaixista e aluno de Miro, foi uma espécie de anjo da guarda e conselheiro para toda a vida. Morreu em fevereiro do ano passado, aos 83 anos, e, não por acaso, a autobiografia é dedicada a ele. Conheceram-se quando Cesar, aos 13 anos, “invadiu” um dos ensaios do grupo Os Modernistas, do qual Sabá fazia parte.
Apesar de o baixista ser mais velho, e um experiente músico na noite de São Paulo, nasceria do encontro uma parceria invejável. Sabá foi determinante para a decisão de Cesar em formar com o baixista Humberto Clayber e o baterista Airto Moreira o Sambalanço Trio, seu primeiro grupo e um dos combos mais quentes do samba-jazz paulistano.
Com o fim do Jongo Trio, grupo de Sabá que escoltou Elis Regina em seus primeiros dias em São Paulo, e um colapso do Sambalanço – depois de quase dois anos de extenuantes apresentações com o coreógrafo Lennie Dale, que ainda rendeu o clássico álbum da Elenco, Lennie Dale e o Sambalanço Trio – enfim, Sabá e Cesar se reuniram no Som 3, grupo que ganhou acentos de soul e funk, e acompanharia Wilson Simonal em sua fase de maior popularidade, quando ele abdicou do papel de um insuspeito crooner da bossa-nova, para enveredar pelos caminhos da Pilantragem, termo cunhado por Carlos Imperial para definir a malemolência daqueles novos e arejados horizontes que a mistura de Simonal e o Som 3 propunham à MPB, em clássicos despretensiosos, como Mamãe Passou Açúcar em Mim, Nem Vem que Não Tem e Vesti Azul.
|
Paixões, dentro e fora dos palcos
Se a autobiografia passa alheia a polêmicas, como a acusação de colaboração estreita de Simonal com os militares e a controversa morte da ex-mulher – Cesar e Elis estavam separados havia pouco mais de um ano -, o pianista revela um domínio narrativo que seduz o leitor. Ao expor os bastidores de seu intenso envolvimento com Elis, valoriza aspectos nobres, como a profunda sensibilidade musical, a constante preocupação política da cantora e a generosidade da Pimentinha.
O ápice das experiências de direção musical e elaboração de arranjos para Elis surge em 1975, quando partem para Los Angeles ao encontro de Tom Jobim. Cesar enfrenta dias difíceis, pois Tom confessa, de cara, que preferia entregar a direção e os arranjos de Elis & Tom ao maestro alemão Claus Ogerman, que cumpriu os dois papéis em The Composer of Desafinado Plays, lançado pela mítica Verve Records, em 1963.
Ogerman não teria agenda disponível e Tom ainda tentou contatar Don Sebesky, superprodutor da CTI Records que, em 1970, lançou Stone Flower, outro clássico de sua discografia americana. Por fim, o maestro concordou que Cesar daria conta do recado, mas a cada 20 minutos ligava para ele para saber a quantas andava o trabalho, praticando um inusitado monitoramento remoto, no conforto de sua banheira e a companhia de copos de uísque.
À medida em que avança para os anos 1980, Cesar direciona cada vez mais sua carreira à música instrumental e às novas descobertas tecnológicas. Experiências que começaram a apontar direções já no final dos anos 1970. Lançado em 1978, resultado de um espetáculo exibido com grande êxito no Teatro Bandeirantes no ano anterior, São Paulo.Brasil foi uma ode à cidade e trouxe arranjos repletos de sintetizadores e programações eletrônicas.
É também no começo dos anos 1980 que Cesar, aos 38 anos, descobre-se apaixonado por Flávia, estudante de comunicação social, 17 anos mais nova que ele. A despeito da diferença de idades, do fato de Cesar enfrentar um turbilhão emocional com a morte de Elis e a responsabilidade de criar os dois filhos, Pedro e Maria Rita, Flávia correspondeu à paixão de tal forma que abandonou a faculdade para conviver com ele e as crianças. Tempos depois, tornou-se sua produtora, papel que exerce até hoje. O casal tem uma filha, chamada Luisa, hoje com 25 anos, que se formou na Berklee College of Music e trabalha para a Sony Music.
Repleta de boas lembranças e momentos de superação, as memórias de Cesar também registram um episódio traumático, que culminou na decisão de partir com Flávia e os filhos para os Estados Unidos: um assalto. Um dos três ladrões o reconheceu e ameaçou cortar suas duas mãos caso não abrisse o cofre que havia na residência. Saudoso do País que se sentiu obrigado a deixar, Cesar encontrou refúgio em clubes de jazz, onde foi recebido com entusiasmo – como os mitológicos Blue Note e Birdland, em Manhattan – e descobriu novos parceiros, como o saxofonista japonês Sadao Watanabe, o violonista carioca Romero Lubambo e o violoncelista Yo-Yo Ma, com quem produziu, tocou piano e registrou duas de suas canções, Curumim e Samabaia, no espetáculo e álbum Obrigado Brazil, em 2003.
Em entrevista por telefone, o pianista falou sobre a expectativa dos shows e os eventos de lançamento da autobiografia e revelou que apresentará composições inéditas: “Ao escrever o livro, mergulhei em um processo muito parecido com meus momentos de composição. A cada nova lembrança, via as imagens, sentia os cheiros dos lugares e podia até ouvir a música. Inspirado nesses estímulos, corria para o estúdio, desenhava (a autobiografia é repleta de belas ilustrações de Cesar, que serão expostas no show) ou compunha. Escrevi uma série de novas músicas e montei um concerto com essas composições. Na minha cabeça, elas são a ‘trilha’ do livro. Escrever foi algo completamente novo para mim, mas logo me identifiquei por conta do trabalho solitário. Gosto do isolamento criativo e, talvez por isso, o livro acabou se chamando Solo“. Um solo memorável, diga-se de passagem.
Deixe um comentário